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Aquilo (não) foi real
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Aquilo (não) foi real

“Pode parecer que não, mas eu tô com saudade”, e eu também estava. E meu coração palpitava ao ler isso. Dava aquele famoso pulo e ameaçava sair pela boca. Mas não ia admitir, não podia, óbvio que não.

Mas então, te vi de longe e o sorriso apareceu sozinho, abriu, como o sol abre após a chuva. E minhas pernas aumentaram o ritmo, sem que eu pedisse. Simplesmente foram, e eu não tentei impedir. Fui, me deixei.

Te abracei, então. Seu braço ao redor da minha cintura naquele pufe dentro da biblioteca antiga. Sua letra parecida com a minha na ficha branca. “Deita aqui”, era a deixa que eu precisava e hoje penso que eu parecia um cachorro. Deitei apoiando no seu braço e de repente eu estava de novo no país das maravilhas, me perdendo mais uma vez. Me perdendo e perdendo… E você sabia.

+ Entre as nuvens cinzas de paranóia

E o beijo logo depois, com seu gosto, aquele gosto que eu era incapaz de esquecer ou encontrar em qualquer outra boca. Porque era único, exclusivo. Tudo único. E então, você me puxa pela mão por entre as árvores com poucas folhas por conta do inverno. Eu parecia um boneco nos seus braços. O chão também estava cheio delas, secas pelo frio. Os coelhos brancos e pretos saltitavam ao redor. Os patos, observavam como os cúmplices que jamais me fariam esquecer de que aquilo havia sido real, apesar de eu preferir que tivesse sido apenas um devaneio erótico e doido da minha mente.

Eu havia finalmente chegado ao país das maravilhas, estava perdido nele, fingindo que seria eterno, ou eternamente numerado, limitado. Sabendo que, apesar de perdido ali, era só um escape da minha realidade inútil. Do real nojento.

Os coelhos dali observavam ainda, cúmplices de que aquilo era real e não algo da minha cabeça. Mais provas de que nunca me deixariam esquecer por mais que eu quisesse. Cúmplices de que eu estava, mais uma vez, me deixando perder nas suas linhas tão cuidadosamente escritas do país das maravilhas.

Embaixo daquela árvore, nada mais importava, de qualquer jeito. Nada. Só o que eu estava concluindo, como um fotógrafo de retratos.

Sempre disse que amava fotos porque elas eram a prova de que tudo era perfeito, mesmo que por um milésimo de segundo. Mas, além delas, as nossas lembranças provam isso. Ou tentam. A lembrança primitiva é da sensação boa, que aos poucos é envenenada pela sua presença nojenta. Meus olhos estavam fechados, não tenho lembranças visuais. Todos os sons do mundo sumiram. Não tenho lembranças auditivas. Mas há a lembrança do toque sutil seguido dos apertos montanhosos nos meus braços. Quase agressivos.

Há a lembrança do seu cheiro de amaciante nas roupas. O mesmo cheiro daquela primeira vez. Há a lembrança do sabor, aquele que só você tinha. Não, não me refiro à menta de cereja, que era de morango. Me refiro ao seu sabor mesmo, aquele que é só seu. Aquele, mesmo, que conheço tão bem e que hora e outra volta à minha boca e me deixa desperto. “É o sabor dele”, o cérebro diz para o coração em uma descarga de adrenalina contínua. Hoje sei que isso é um alerta.

Não sei se isso tem explicação científica além de síndrome de Estocolmo. Sinceramente, como seu gosto volta à minha boca, assim, do nada? Cérebro, o senhor está cúmplice do coração? Até você?

O sol baixava conforme o céu se alaranjava. Ainda entre as árvores do país das maravilhas, você disse “Pula”. Pausa. “Não confia em mim?” Pulei, de olhos fechados, como havia pulado desse penhasco de sensatez em direção a maré dos meus sentimentos. Pulei, sem pensar. Pulei.

Você me segurou. Literalmente, e mais uma vez, como todas as outras. Você me prendeu. Fisicamente. Metaforicamente. Você me segurou. Será que eu estava seguro com você?

E então, veio o beijo lento, devagar, lento, lento… Explorador. Cuidadoso, como jamais havia sido. Calmo, sem aquela pressa ou urgência. O tempo no país das maravilhas passava mais devagar. Era um efeito contrário à você, afinal, você o fazia correr.

E o que fiz de novo era sorrir. Porque eu soube que não importava quantas vezes perdêssemos o caminho para o país das maravilhas, sempre o encontraríamos, de uma forma ou de outra.

Hoje, me pergunto: quero mesmo encontrar? Aquilo (não) foi real?

Amor é dor
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Amor é dor

Aviso de gatilho: Pensamentos suicidas, codependência

Querido diário,

Não sei o que te escrever hoje. Acho que só busco um refúgio, uma válvula de escape que não me seja prejudicial como as outras eram. Te escrevo aqui, desesperadamente, de caneta azul, fugindo dos meus padrões, ao som de Troye Sivan porque dói. Aquela dor que te reduz ao tamanho de um grão, que você se encolhe tentando reprimir. Será que não existe felicidade abundante? Não, não existe. Ainda mais pra mim. Porra, o que eu estava pensando? Que eu seria aquele sorteado que se fodeu a vida toda só para se dar bem no final? Ha-ha. Jamais, né.

+ Gosto de começar as coisas

Tô preso. Desesperado. Ávido por uma resposta. Meu infinito tem numeração e Deus, como eu queria mais números. É doloroso porque posso tê-los. Mas estou preso e impedido de pega-los. Porque eu não merecia isso?

É muito para o meu final feliz. Sempre soube. Estou fadado à amargura. Ao fim solitário. E eu sou só mais um nesse turbilhão de sentimentos. Não sou o primeiro, nem o último. Quedas doem muito. Muito mais do que eu gostaria. Mas eu não sei viver fora dos excessos. Não sei não sofrer por antecipação. Não sei.

Eu só queria poder pegar mais números para o meu infinito. Mas estou preso. Cansado. Cansado da dor. E o meu medo só aumenta. Sim, medo de mim mesmo. Do que posso me tornar sem você. Medo do que posso voltar a ser. Os fantasmas assombram crianças fracas e amedrontadas. E eu temo ser uma delas. Porque eu sei quem eu sou com meu travesseiro.

Só ele sabe os pensamentos suicidas que me visitam todas as noites. Só ele, além de você, consegue acalmar minhas madrugadas de tormenta. Mas ele não pode ser você. Já você, pode muito bem ser ele. Dormir com a sua respiração talvez seja a melhor coisa do mundo.

E temo estar perdendo, junto com a minha sanidade que se esvai a cada lágrima caída.

Por que amor é dor?

Tive que fazer antes de saber se fariam por mim
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Tive que fazer antes de saber se fariam por mim

Esses dias minha terapeuta disse que me criei sozinho. Tive que fazer as coisas antes de saber se fariam por mim. Tive que resolver muita coisa sozinho. E talvez seja essa a raiz da minha ansiedade hoje em dia. Eu vou lá e faço o que eu quero, seja a hora que for. Eu não gosto e não consigo esperar.

+ A volta do que jamais deveria ter partido, por Gabu Camacho
+ Resenha: Os sete maridos de Evelyn Hugo, Taylor Jenkins Reid

Eu não tive como esperar ou cogitar contar com ninguém. Se eu quisesse algo, precisava fazer. Muitos podem achar que isso é uma qualidade, mas eu te garanto: não é. O ser humano precisa do outro. O que nos torna humanos é o relacionamento. A gente precisa precisar.

E eu não consigo precisar. Eu vou lá e continuo fazendo.

Nesse caminho de aprender a resolver as coisas por mim paguei muitos preços. Perdi amizades boas. Perdi momentos incríveis. Perdi fases da vida. Eu sempre estive uma fase além da minha. Quando eu tinha 18 anos e devia estar na balada, eu estava preocupado com o faturamento da empresa que eu criei. Quando eu tinha 23 e devia estar focado em terminar a faculdade, estava me desdobrando em cinco pra conseguir me sustentar sozinho.

Deixei muitos pratos caírem. Hoje vejo quantas vezes fui omisso. Quantos churrascos de família perdi, quantas festas infantis, quantos papos com meus primos que estiveram comigo e me fizeram ser quem eu sou…

Tive que deixar cair.

Me desculpa, mas…

Tive que fazer antes de saber se fariam por mim.

E eu faria tudo de novo. E eu não sei se acho justo me desculpar por isso. Aprendi que temos que fazer a melhor escolha, mesmo quando ela não é a coisa mais certa.

Mas, afinal, quem diz o que é certo e o que não é?

25 lições que aprendi aos 25 anos
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25 lições que aprendi nos meus 25 anos

É, hoje eu faço 25 anos. Como eu gosto de falar, mais 25 anos e eu tenho 50. Mas, nesse tempo, que parece que passou rápido, mas nem tanto, aprendi algumas coisinhas. Algumas mais sérias que outras e, por isso, resolvi compartilhar com vocês.

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Se você é mais novo, provavelmente vai duvidar de algumas coisas. Se você é mais velho, é provável que você veja que também posso estar equivocado. No entanto, essa é a graça da vida, certo?

Vamos para as lições:

  1. Morar sozinho é difícil. Parece que vai ser um mar de rosas todos os dias e que a gente vai ter uma geladeira cheia de chocolate. A realidade é outra e tem dias que a gente só quer deitar, dormir e sumir de todas as responsabilidades.
  2. Seus pais não são seus inimigos. Eles são seres humanos que também erraram tentando acertar. E, talvez, você perceba que seus jeitos, costumes e personalidades são totalmente diferentes, mas que vocês ainda sim, vão encontrar uma forma de se amar – cada qual na sua linguagem.
  3. Relacionamentos são complicados e dependem muito mais de uma escolha do que de sentimentos fortes e loucos, como fizeram a gente pensar nos livros.
  4. Julgue menos as pessoas. Cada um lida uma batalha interna que a gente não conhece e cada pessoa se compensa de uma forma diferente. Tenha empatia.
  5. Seus amigos estarão com você, mas vocês não conseguirão estar juntos todo o tempo do mundo. Por isso, aproveite ao máximo os momentos de companhia e descontração.
  6. Muita coisa vai dar errado. As pessoas vão te testar, te julgar, te tirar do sério. E está tudo bem, faz parte da vida.
  7. Cuide da sua alimentação e faça exercícios físicos. Mesmo que você não goste, assim como eu, seu corpo vai sentir o peso do tempo e vai mudar aos 25 anos. Cuide bem da sua saúde.
  8. Não abra mão das suas diversões. Coma fritura, beba e aproveite a vida. Tudo precisa ter um equilíbrio.
  9. O dia seguinte após uma bebedeira com os amigos vai ser mais pesado. Você não vai estar tão “pronto pra outra” aos 25 anos como estava aos 18 anos.
  10. A menos que você seja uma pessoa noturna, você vai sentir sono mais cedo e não vai aguentar tanto tempo nas baladas.
  11. Sua casa é seu templo. Você vai se ver atravessando distâncias enormes só para dormir no conforto da sua cama.
  12. Família a gente escolhe. Escolha bem quem são as pessoas que estarão ao seu lado nas trincheiras da vida e não dê tanta importância para aquela tia chata que só sabe te menosprezar.
  13. Às vezes, precisaremos nos afastar de pessoas que amamos para ir atrás dos nossos objetivos.
  14. Dialogue. Converse, exponha todos os seus sentimentos, fale o que você está sentindo. Diga que amou a saída dos seus amigos, diga que não gostou tanto da forma como te trataram. Fale!
  15. Você vai perder pessoas. E está tudo bem. Alguns ciclos precisam encerrar para que outros possam começar.
  16. Não se apegue tanto ao “trabalhe com o que você ama”. Aos 25 anos, você vai entender que precisa ter uma afinidade com seu trabalho, mas não precisa amar. Ele é uma parte da sua vida e não define quem você é.
  17. Faça um planejamento financeiro e poupe dinheiro para o futuro próximo e para o futuro distante. Na vida adulta, acontecem muitas emergências e precisamos estar preparados.
  18. Seus amigos vão se casar, ter filhos… E outros ainda estarão vivendo a fase adolescente da vida. Acostume-se a ter os dois tipos de pessoa por perto.
  19. Adote um pet. Eles estarão do seu lado na alegria e na tristeza e enchem nosso coração de amor.
  20. Aprenda a não ter nojo da comida molhada no ralo da pia. Você vai ter que colocar a mão nela todos os dias. Aprenda a trocar um chuveiro quando a resistência queimar (tem vídeo no Youtube).
  21. Faça terapia e análise, e também cuide de sua espiritualidade. Todos os perrengues ficam mais fáceis quando a gente está bem com nós mesmos.
  22. Vão partir seu coração e vai doer tanto quanto você tinha 15 anos. Mas, aos 25 anos, você vai ter que continuar seguindo com a vida, mesmo com o coração partido, então, aprenda a curar e a acolher você mesmo.
  23. Você vai ter que engolir muito sapo. De chefe, de cliente, de amigos. Faz parte.
  24. Não deixe que definam quem você é, mas não se torne uma pessoa fechada para mudanças. Aprenda com os outros e leve toda crítica de forma construtiva, mesmo que a intenção da pessoa não seja essa.
  25. Você vai encontrar muita gente má e que quer passar a perna em você. Saiba ser firme e também a defender os seus próprios interesses.

E aí, qual dessas você já aprendeu e quantos anos você tem? Me conta nos comentários se tiver mais alguma coisa a acrescentar! 🙂

Inspirado no post do Entre todas as coisas, 25 lições que aprendi aos 25 anos.

Textinhos para sua melhor amiga
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6 textinhos para você enviar para sua melhor amiga

Precisando de criatividade para desejar feliz aniversário ou algum outro sentimento bom para a sua melhor amiga? Seus problemas acabaram! Nós, do Beco Literário, nos reunimos e separamos alguns trechos de textinhos nossos que você pode copiar e enviar para sua melhor amiga em datas comemorativas (ou em momentos de declaração de amor).

Os textinhos abaixo são retirados de outros textos já postados aqui no blog e, ao clicar no nome do autor ou da autora, você pode conferir o texto completo. Ah, e não se esquece de dar os créditos ao autor ou autora que escreveu e de recomendar o Beco Literário para sua melhor amiga, viu?

Vamos aos textinhos:

No amor se sonha e se acorda acompanhado. Há quem diga que o amor é muito mais sobre como a gente se enxerga ou tem guardado em um potinho no coração, descrito como o sentimento mais precioso que se pode ter. Essa preciosidade precisa ser moldada e bem cuidada. Tesouro em mãos erradas vira frangalhos. Mas amor também é afrouxar o laço e deixar ir mesmo que a vontade de ter por perto seja maior. No fim, amor é mais contradição que qualquer outra coisa.

Milênia Aquino

Eu poderia citar agora, inúmeras ocasiões em que você me fez rir nos momentos em que eu estava na pior, mesmo sem você saber disso. Obrigado, sério, mas essa não é uma carta sobre mim, então vou só comentar.

Gabu Camacho

Um belo dia, nos mares que navegamos e nas ondas que nos deixamos levar, a tormenta em nossa vida vai embora e começamos a navegar em um oceano que jamais imaginaríamos estar.

Fernanda Rafaela

só desejo que de todos os amores, o próprio seja o mais tranquilo. mais afetuoso. em maior quantidade. que jamais você se diminua para preencher espaços apertados, onde o amor seja pouco. e que o próprio crie inquietação para ir embora desses lugares que não cabem sua imensidão. que você não tenha medo da descoberta. em si descobrir, principalmente, em si amar. a jornada pode ser longa, mas quando nascer as primeiras sementes do cultivo de amor próprio e posteriormente,as flores, nunca mais vai olhar para trás e sentir culpada. vai saber o que merece, por onde e quanto tempo ficar.

Milênia Aquino

A nossa história define quem nós somos e como tal, não é perfeita. Não é feita de acertos, nem só de erros. Ela é plural, tem vários lados, vários participantes, vários itens…. O que eu faço agora pode não me definir no futuro, ou pode. Pode esclarecer para mim o que eu devo e o que não devo fazer. Os erros podem ser acertos quando a gente faz as pazes com a nossa história.

Gabu Camacho

Pela primeira vez podemos ser nós mesmos, mostrarmos sem rodeios para o que viemos e não termos medo de mais nada, pois o medo já se foi há algum tempo e junto com ele foi-se também toda a tormenta dos mares, aqueles mesmos mares que nos prendiam desde o começo.

Fernanda Rafaela

E então, qual desses textinhos você acha que tem mais a cara da sua melhor amiga? Deixa ai nos comentários e conta pra gente qual foi a reação dela ao receber!

 

Tédio faz parte das relações saudáveis
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O tédio faz parte da relações saudáveis

O tédio faz parte das relações saudáveis. É ingenuidade dizer e acreditar que aquela paixão obsessiva de início de relacionamento vai sobreviver às rotinas de um relacionamento com altos e baixos. Preocupante seria se só existissem os altos.

+ Sou ruim no amor
+ Futuro ex-namorado

A rotina é tediosa, mas o amor, além de ser uma escolha, é uma construção. E ele se constrói no tédio das rotinas. Uma relação saudável tem euforia, alegria, tristeza, momentos bons, momentos ruins e ele, o tédio. Assim como a vida é uma montanha russa, com altos e baixos.

São nos relacionamentos que temos que entramos em contato com o nosso melhor e o nosso pior. Dizem que todos nós precisamos fazer terapia e sim, é verdade, mas um relacionamento é uma espécie de laboratório que vai colocar todos os seus aprendizados e suas capacidades em prova. É nele que você vai se deparar com suas luzes e suas sombras, enquanto precisa lidar com as luzes e sombras da pessoa que está ao seu lado.

Além de tudo, ainda é preciso aprender a linguagem de amor da pessoa que com quem se escolhe (ou se precisa) relacionar. É necessário saber como consolar sua criança interior e lidar com a criança interior do outro. Sim, é um tédio. Nem sempre os dias serão ensolarados, cheios de euforia e de vontade de incendiar o mundo. A maioria deles serão mornos, amenos e muitos deles serão cinzas, azuis, tristes.

É imprescindível entender que fantasias e expectativas acontecem dentro do nosso coração. E aqui dentro, tudo parece mais bonito, mais animado. E a vida… bom, a vida é ordinária e acontece na normalidade. Nem no oito, nem no oitenta. A vida acontece ali, no cinquenta. Na mediocridade. No tédio.

É papo furado de coach dizer que devemos fugir da média, que devemos buscar sempre além da mediocridade. O que precisamos mesmo, é aprender a conviver com ela e saber que essa é a normalidade de uma vida humana. Extremos nunca são bons.

A vida acontece no tédio e por isso, o tédio faz parte das relações saudáveis.

Estopim do fim
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Crônica: O estopim do fim

O fim chegou. Tão temido, tão louco. Mas, ele chegou em um estopim sintomático. Tudo é sintoma de uma doença que acomete o organismo silenciosamente.

Uma comorbidade que não dialogou com o outro. Não entrou no jogo da vida. Não se enturmou com o balanço dos órgãos. O sintoma veio servido como banquete em taça de cristal.

https://youtu.be/2_zUE_stWOg

De onde veio? Pra onde vai? Quem me passou essa maldita praga? Não sei. Não tem culpados. Eu não conseguia lembrar se tinha sido aquela ida ao supermercado ou aquela festa clandestina no bar de portas fechadas.

De que adianta culpar alguém agora, sozinho, no leito de morte? O estopim foi o sintoma. O sintoma indicou a doença. A doença levou tudo como enxurrada. Foi-se. Ninguém ficou.

Enquanto me vou, festejam-se clandestinamente nas ruas, nos becos, nas coberturas, nos porões… Festeja-se clandestinamente. A importância enevoa-se conforme o álcool sobe. As desculpas aparecerão quando o eclipse passar e o dia amanhecer.

E então, já estarei do outro lado. Talvez não todos os pedacinhos vermelhos, mas certamente que a maioria deles estará ao meu lado. O tempo sabe ser fiel, mas também sabe ser cruel.

O universo não dá segundos. Ele dá primeiros. Os segundos passam, se vão. Fogem das nossas mãos. Escapam das nossas tentativas. Parece que estão zombando de nós. Mas, não, não estão.

Estão apenas vivendo os primeiros, enquanto abrem mão dos segundos. Segundos estes que eu já quis. Hoje, me vou com meus primeiros.

“-pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver.” — Clarice Lispector

Tenho os meus primeiros e não preciso dos teus primeiros. Tampouco quero os segundos. Deixe com que eles se vão… Deixe com que os segundos voem, com os minutos e as horas.

Cada voo que ele dá fora de nossas mãos, é um voo que eu dou em direção aos meus cristais estilhaçados para começar de novo.

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Algoz, por Milênia Aquino

Casa- escola; escola- casa. Fiz isso durante o ensino médio, mesmo ônibus, mesmo caminho até chegar em casa. Uma caminhada de uns trinta minutos com pouca iluminação, passava por casas conhecidas da minha família e isso nunca me preocupou, sentia alívio por estarem no trajeto. De certa forma, reconfortava meu retorno solitário.

O mal de toda situação que nos deixa assim é fazer perder o medo e confiar. Eu confiei demais. Não devia. Errei.

Numa dessas noites, voltando da escola, senti que alguém me seguia. Virei-me, mas não vi sequer vestígios de quem ou o que seria. Apesar disso, a sensação de perseguição me assombrava. Segui o trajeto por mais uns quinze minutos, até alguém me agarrar por trás.

Naquele momento, gelei, fiquei impassível de reação. Com uma mão percorria meu corpo, com a outra mantinha minha boca fechada. Ele sabia o que queria, havia um ponto fixo e desejado, sabia que o tempo era curto e precisaria ser ágil e certeiro nos próximos movimentos.

Parou a mão livre onde queria, desceu minha calça jeans e me virou para vê-lo. A pouca luz da lua que iluminava a noite, revelou traços conhecidos, um homem por volta dos seus cinquenta anos. O medo crescia em ritmo acelerado, sua vontade que eu soubesse meu invasor, a minha de escapar o quanto antes.

Aquilo fez forças surgirem de onde outrora o pavor tomava conta. Reagi então, empurrei-o e corri, o quanto e o mais que pude. Trêmula, ofegante, traumatizada, cheguei em casa. Sem acreditar na sorte que tive.

Contei o ocorrido para minha família, meus pais contataram a polícia. Ele negou, sua palavra contra a minha. No final não ficou preso, eu abandonei a escola. Mudei o rumo e minha vida por ele, ex amigo dos meus pais, que frequentou por anos minha casa e parecia confiável.

Carrego as consequências daquela invasão e ele continua vivendo como se nada tivesse acontecido.

florada de recomeços
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Florada de recomeços, por Milênia Aquino

recomeçar, verbo que significa começar de novo. junção de ré e começar, por vezes temos que voltar um passo ou dois para retomar caminho. acalmar o coração e tentar outra vez, duas ou três. é andar três léguas e decidir depois por outro lugar. é se destemer. encerrar ciclos. escrever em folha branca.

ir sem medo, se aprende muito mais pelo desconhecido que por aquilo que já se é sabido. nunca sinônimo de fraquejo, recomeçar é coragem mesmo para quem tem medo. querer mais uma vez, é ir catando os pedaços para transformá-los em coisa nova e assim ser gente nova. são os erros com cara de aprendizado.

é não pensar muitas vezes e ir logo fazendo. quando o nadador toma fôlego para mais uma braçada, porque sabe que no final há medalha. é fazer curva numa reta. é ver arco íris logo depois da tempestade.

é ser florada para cultivo de outros frutos. poder acordar todos os dias com vontade em fazer diferente. viver mil quatrocentos e quarenta minutos em um dia e saber que o relógio começará a contar a cada amanhecer os minutos mais uma vez. ser agradecimento pelas novas oportunidades.

é isso que estou fazendo agora, depois de muito tempo. por mim. por você.

finge que não me conhece
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Você fez o que fez e finge que não me conhece

Muito tempo já se passou desde que você fez o que fez. Agora você finge que não me conhece e que eu nunca cruzei sua existência. Desculpa quebrar essa pra você: eu cruzei e tem sido mais difícil que eu pensava.

Eu me mudei. Mudei de cidade, também. Mas, resolvi passar vinte dias na casa nova da minha mãe. Sabia que ela comprou uma casa enorme pra morar com a minha irmã? Pois é. Fui passar férias lá e minha irmã me chamou pra ir nessa festa onde tudo foi meio atravessado.

Leia ouvindo: Processed Beats, Kasabian

Eu relutei, mas depois eu topei. Sei que meu noivo ia querer ir junto, mas ele estava em outro país, viajando a trabalho. Fui com a minha irmã na festa, com uma roupa meio ralé e minha bolsinha de ombro. Sim, aquela de tantos anos que a gente comprou juntos na viagem do décimo terceiro. Esperei por horas naquela fila. Você se lembra de todas as vezes em que estivemos juntos nessa fila? Eu me lembro, mas não queria. Claramente não tenho mais idade pra isso. Acho que você não se lembra, afinal, você fez o que fez e agora finge que não me conhece.

Quando chegou minha vez de pagar e entrar, eu precisava muito ir no banheiro. Deixaram que eu entrasse e voltasse para pagar depois. Corri para a cabine… Tudo estava tão diferente de quinze anos atrás, quando a gente era adolescente e nos beijávamos na fila para o mesmo banheiro. O banheiro não era o mesmo. Eu não era o mesmo. Será que você lembraria das coisas caso viesse aqui da forma que estou lembrando?

Saí e voltei para a recepção. Minha neurose continua a mesma. Preciso das coisas certinhas. Droga, esqueci a bolsa no banheiro, pendurada atrás da porta da cabine. Voltei e você estava lá, dentro da cabine. Você sabia que a bolsa era minha e que eu precisaria falar com você para pegar. Você me olhou maliciosamente como se eu não fosse falar.

Mas eu falei e peguei a bolsa. Você ficou estático, não respondeu. Me olhei no espelho antes de sair e eu não estava tão bem vestido quanto você, e você percebeu. Me olhou da cabeça aos pés. Socorro, eu estou preso! Você quebrou meu diálogo interno, gritando no banheiro.

Um menino que estava ao lado correu para a sua cabine e sua cabeça estava meio presa entre a porta. O que você estava tentando espiar do lado oposto da cabine? O seu novo crush da vida fazendo xixi? É, deve ser isso.

Eu fui mais perto, tentando ajudar o menino que te puxava e você gritou mais uma vez. Não deixa ELE se aproximar de mim. Demorou um pouco mas eu entendi. Você se referia a mim. Eu não podia me aproximar para te ajudar. Então, parei, estático. Eu posso ajudar, ele não vai conseguir te soltar sozinho, te respondi, mas você não se dignou a me dirigir a palavra.

Deixa qualquer um entrar, menos ele. Ele não pode me ver assim. E eu entrei na cabine, mesmo contra sua vontade, para tentar ajudar aquele que te puxava antes que tivéssemos que chamar uma ambulância. NÃO, EU TÔ PELADO!

De todas as coisas, você só pensava nisso. As coisas não mudam. Não tinha nada ali que eu não tivesse visto de todas as formas possíveis. Em todos os ângulos e com todos os meus sentidos. É, você fez o que fez e finge que não me conhece. Finge que não conhece cada centímetro da minha pele. Finge que nunca transamos em cada pedacinho daquela cidade de todas as formas possíveis.

A gente conseguiu te soltar. Você se vestiu e eu me afastei, me arrumando no espelho. Eu precisava voltar, pagar e tomar uma bebida. Parecia inacreditável tudo aquilo. Qual é a chance do seu ex-namorado da adolescência entalar a cabeça na cabine do banheiro da balada que vocês iam, ainda por cima pelado? Certas coisas só acontecem comigo, mesmo.

É, parece que só um de nós melhorou o estilo. Você me mediu de cima aos pés, disse isso com desdém e saiu porta afora. Você fez o que fez e se esqueceu. Se esqueceu de que já te vi em todos os ângulos, de todas as formas, com roupa ou sem.

É. Você fez o que fez e finge que não me conhece.