Querido diário, hoje eu peguei minha ansiedade e transformei em cake pop. Sim, aqueles bolinhos no palito. Dizem que nosso ego é nosso inimigo, mas, na maioria das vezes, ele só quer nos proteger e tem mecanismos fortes para isso. Um deles é a sublimação, quando a gente transforma um sentimento “ruim” em algo melhor. Minha ansiedade é generalizada. Não tem como eu dar voz a ela porque sei que ela é infundada e não vai me levar a lugar nenhum. Não é uma fuga.
Hoje, peguei ela e transformei em arte culinária, realizei um dos meus maiores desejos. Hoje estou vendo um filme repetido que está passando na TV, mas é um dos meus preferidos. Estou ansioso por amanhã também, tenho reunião no trabalho. Que eles venham dispostos a serem legais, ou nem venham.
Hoje, o Pirata esteve o dia todo comigo. Hoje, chegaram as cadeiras da minha mesa e ficaram lindas. De manhã, comprei uma samambaia para decorar a sala. É bom demais ter a nossa casa, sabe? Estou feliz e só quero que essa ansiedade pela reunião de amanhã passe logo.
Hoje, fiquei emocionado porque ganhei um presente da minha dentista. Ela soube exatamente a escova que era melhor pro meu dente e comprou pra mim. Ela lembrou, sabe? Isso fez meu dia e deu uma acalmada na ansiedade que eu estava sentindo. Fui na academia, fiquei mais tranquilo. Conforme as palavras saem aqui, esse sentimento vai embora junto e dá espaço para um sentimento melhor, de paz, calma e alegria. Quase pós-terapia.
Não consegui fazer tudo o que precisava hoje, mas paciência. Amanhã tento de novo. Vou voltar a assistir meu filme e acho que vou ler um pouquinho antes de dormir. Talvez eu grave alguns vídeos, talvez não. Preciso escrever no Beco.
Querido diário, às vezes sinto que sou incerto e que minha vida é cíclica. Que a minha ansiedade vem junto com o surto, tudo ao mesmo tempo e que não sei o que fazer. Minha analista vive me dizendo que preciso sair de cena quando isso acontece, que posso só esperar passar. Como esperar passar nessa onda de produtividade que tenho dentro de mim? Preciso produzir, mesmo sendo tão incerto.
Quando decido alguma coisa, no dia seguinte faço tudo cair por terra. Eu derrubo os castelos de areia que eu mesmo construí, diário. Como que pode isso? Por que a gente é tão incerto assim, hein? Porque eu não consigo simplesmente decidir. Dizem que sou multidisciplinar e meu talento está na conexão. Mas nunca dizem o fardo enorme e incerto que é ser bom em várias coisas ao mesmo tempo.
Você pode achar que estou me vangloriando, diário. Mas não. Realmente não é legal sentir muito quando muitos sentem pouco. Realmente não é legal saber de todas as coisas ao mesmo tempo. Eu queria ser bom em uma coisa só e fim. Eu não precisava ter esse poder de escolha tão incerto. E olha que eu nem sou geminiano, hein?
Não sei com que intuito te escrevo isso hoje. Não sei onde quero chegar, não sei onde vou chegar, nem sei se quero chegar em algum lugar ou só quero ficar aqui, vegetando, fingindo que nada acontece. Minha analista defende essa versão, mas ela me incomoda tanto. O ócio me incomoda demais.
Hoje resolvi mudar meus ares. Vim trabalhar na mesa da sala, estou assistindo ao meu filme preferido, desmarquei minhas reuniões e desmarquei até a minha analista. Hoje cansei de mim. Não quero. Estou incerto demais. Quero ficar em paz dos meus próprios pensamentos. Hoje não, Gabriel.
Eu sempre te ajudei. Me lembro como se fosse hoje quando você me chamou no chat e perguntou se podíamos marcar um encontro. Topei, fizemos coisas lindas juntos. Fomos ao infinito e além em direção daquilo que a gente sempre sonhava. Até que chegou o dia que chamo de dia da ingratidão. Até hoje não entendi o que aconteceu, nem o porquê, se quer saber a verdade.
Eu confiava minha vida em você e você veio, em tom seco e ríspido, cortando meu barato dizendo que eu tinha te decepcionado. Parecia uma projeção. Era de mim mesmo que você estava falando? Hoje, sei que não. Você não se referia a mim. Você estava com seus próprios problemas, mas, chegou com a faca afiada e enfiou dentro do meu peito. Sangrei por dias e noites, sem entender a sua ingratidão. Você não me deu a chance de entender.
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Eu recebi a facada com a faca que eu te ajudei a construir e depois, de tão bom grado, te ajudei a afiar. Como se eu fosse uma pessoa qualquer que sequer sabia como afiar ou fazer uma faca, sendo que, eu que tinha aberto as portas para você passar. Como você pôde? “Eu não confio mais em você”, falou de forma ríspida, como se fizesse terapia à fio por anos, como se fosse analisado e estivesse colocando limite em alguém que fora abusivo.
Depois disso, sem falar comigo, você usou as facas que aprendera a construir na minha oficina e jogou fora aquelas primeiras que fizemos juntos, mal feitas, quanto estávamos nos aperfeiçoando. Ingrato. Sim, você fingiu que era um ferreiro profissional e que tinha aprendido tudo sozinho, há anos, quando na verdade tinha me esfaqueado com a minha própria faca. Que fiz com minhas próprias mãos.
Hoje, você sequer tem uma faca para afiar. Você veio e me pediu uma emprestada. Eu até emprestaria, mas sei que não preciso e não quero fazer isso porque, meu anjo, eu nunca precisei esfaquear ninguém para ser um ferreiro de primeira. Posso ter tido recaídas, mas ainda estou aqui e, nessa oficina, você não pisa nunca mais.
É, anjinho. Nunca precisei esfaquear ninguém, mas também não sou um santo, não. Além de facas, sei afiar um bom tridente para te empurrar nos mármores mais quentes do inferno. Você e sua ingratidão.
Algumas semanas aparecem pra gente lembrar o quão valente a gente é. E com grandes responsabilidades e realizações, vem grandes dores e sofrimentos também. Nada é tão quentinho fora da nossa zona de conforto. Essa foi uma semana daquelas e eu me peguei dando voltas pra responder “por quê?”.
Será que tudo isso vale a pena mesmo? Será que mereço tudo isso? Será que não posso só deitar na cama, chorar, desistir e esperar que as coisas aconteçam? Assim, pelo menos eu vou ter o controle, nem que seja na sabotagem. Quando eu me saboto, eu não realizo o que eu quero, mas pelo menos escolho meu destino. Quando vivo, levanto da cama e dou às caras, eu não tenho controle do que vai acontecer. E se eu não for tão valente assim?
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Eu sei que sou. Eu sei que consigo. Mas preciso? Será que quero? Será que é autossabotagem ou será que é só falta de vontade? Ou será que excedi no ponto? Quantas perguntas sem respostas girando nessa mente ansiosa que voz fala. Eu sei que a gente tem que sentir tudo: alegria, tristeza, tudo é importante. Mas pra quê? Vale a pena mesmo?
Esse é o preço de ser humano, eles dizem. Que preço caro a se pagar só porque nos anos 90 duas pessoas resolveram se entender no Carnaval e que ocasionou meu nascimento. Eu pedi pra nascer? Meu Deus, agora tô sendo ingrato? Será que tô sendo ingrato com tudo o que eu conquistei?
Será que vou perder tudo isso se eu questionar? É, eu não sou tão valente assim. Eu não sei se consigo ser tão valente assim, eu não sei se consigo sorrir agora que vejo que tudo deu certo. Não foi fácil. Quem disse que seria fácil?
Saí da minha analista hoje parecendo que eu posso enfrentar o mundo. Eu até diria que ela me deu uma surra, mas não quero relacionar coisas boas com agressão. Diria então que ela chegou e despejou um caminhão de luz solar sobre mim. “Você tem muitos gatilhos, eu sei. Todos temos. Muitos sintomas. E a gente continua enfrentando todos esses gatilhos e todos esses sintomas na gente porque a gente ama. Pelo amor”, ela disse. Claro que eu rebati. Eu não o amo.
Sim, eu amo. E o amor nos força a olhar para um espelho. Ele nos força a chegar e ver no outro tudo aquilo que temos dentro da gente. Por isso incomoda tanto. Porque a gente não quer que o outro seja assim mas, ao acusar, nós relevamos aquilo que temos de mais importante em nós mesmos. Sim, a gente enfrenta os nossos gatilhos por amor. A gente enfrenta tudo aquilo que incomoda, que tira o sono e nos faz chorar em nome desse sentimento. Amor.
Calma, não estou falando de aguentar tudo em nome do amor. Isso é discurso de abuso. Estou falando de detectar os nossos gatilhos inconscientes, aqueles que nos causam sintomas horríveis e não sabemos o porquê… Nós detectamos sua presença, sabemos que ele está ali, sabemos que ele nunca mais vai embora. E a partir disso, conscientemente, temos que dar um passo pra trás e lidar com ele. Sim, isso é igual não se desesperar com uma criança porque nós somos os adultos da situação. O gatilho é infantil. É você. É sua criança interior.
Quando sua criança interior grita, você pode se sentir impelido a gritar de volta. No calor do momento, sim, você pode até gritar. Mas, se você parar, der dois passos para trás e respirar, você não vai gritar. Você vai se organizar. Você vai escolher. Esses dois minutos entre o estímulo e a resposta é o nosso poder de escolha. Vamos escolher deixar nossa criança agir, com todos seus traumas e gatilhos (dos quais o outro não tem culpa) ou vamos acolher o que a criança sente, editar e mudar a nossa narrativa?
Em terapia, editamos histórias. Pegamos tudo aquilo que aconteceu com a gente e mudamos a forma com a qual reagimos a isso no presente. Temos a tendência a continuar encenando todo o nosso passado, de forma inconsciente, no nosso presente. Quando aprendemos a editar, percebemos o quão excitante é poder ter o poder de escolha. É poder mudar o caminho, é poder dizer “quero fazer diferente agora”, quero ter a chance de escolher como vou reagir.
No fim das contas, quanto mais acolhemos nossa vulnerabilidade e todos os nossos sentimentos, menos medo nós sentimos. Mas mesmo assim, o medo é importante. Ele dispara o gatilho, e quando você sabe lidar com o disparo, você se acolhe, põe as cartas na mesa, sai de cena e escolhe como agir.
Você escolhe agir diferente por aqueles que ama. Aquilo que vemos no outro e nos dá ódio, é aquilo que temos de mais profundo dentro da gente mesmo e não queremos admitir. Por isso, enfrentamos os sintomas dia após dia…
Entrei no supermercado com Mary e fiquei no canto com ela e o carrinho enquanto sua mãe ia atrás das melhores frutas para a sobremesa do almoço. Lembrei que meu tarô tinha ficado em casa, droga.
— Socorro, Mary, dei um match no tinder! — Falei, querendo contar para alguém que era Hugo. Mas ela nem sabia da existência dele. Ou sequer lembraria, já fazia muito tempo.
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— Como assim Tinder, menino? Você não namora?
— Não mais. — Sorri de lado. — Como eu mando oi no Tinder? Será que “Hey” é uma boa?
— Meu Deus. Você está impossível. Saiu quinta e sexta, né? — Ela estava me julgando.
— Tá. Mas “hey” é ridículo. — Ela disse, e saiu para ir encontro com a mãe dela. — Fica de olho no meu carrinho.
Abri a janela do Hugo e mandei hey. Desliguei meu 3G e guardei no celular. Não queria ver o momento exato em que ele me responderia ou desse unmatch, depois que se lembrasse de tudo que fiz no passado.
E nada de Lucca aparecer. Honestamente, ele estava sendo a mentira mais bem contada que eu vivi e acreditei por dois longos anos. Não temos reciprocidade. E sem reciprocidade não é amor, é insistência. E qualquer número multiplicado por zero, continua sendo zero.
— Vamos, migo? Minha mãe já pegou tudo. — Mary quebrou meu diálogo interno e fomos encontrar Rose no centro da cidade. Ela estava surtada por esperar meia hora na chuva, com razão.
— Eu vou dar na cara de vocês dois, ridículos. — Rose era muito amorosa.
— Vamos comer? — Eu não tinha comido nada desde ontem.
— Vamos, mas você vai contar todos os detalhes do seu término na mesa.
Topei e fomos para o shopping. Pedi meu Subway vegetariano e assim que elas voltaram, me olharam com cara de quem diz “vai, desembucha”.
— Ah, não estávamos bem há algum tempo. Muitas promessas não cumpridas e logo na segunda semana do ano, brigamos. Agora ele sumiu, não fala comigo há mais de uma semana…
— Sumiu? Caralho, que embuste. — Rose era bem parecida com Ann nesse quesito, desbocada.
— Sim. E eu baixei o Tinder. Estou tentando não ligar muito para isso, já que 2018 é o ano do karma, regido por Júpiter, tudo o que a gente plantou, vamos colher. — Continuei. — O tarô também disse que tínhamos que dar um tempo…
— É verdade. Tem muita gente reatando. — Mary completou.
— Caralho, lê meu tarô? Não estou bem com o corno do meu namorado também… – Rose era do Rio, por isso ainda falava palavrão como se fosse bom dia.
— O que houve? E como assim ele é corno, Rose? — Mary e eu rimos, Rose só ficava mais indignada.
— Ai, longa história. Depois conto para vocês. Vai rolar o tarô?
— Posso fazer, mas estou sem meu baralho. Tem algum lugar aqui perto que vende? Preciso comprar um novo. — Por favor, que sim. Eu quero muito um baralho novo.
— Tem. Vamos comer, passamos lá e ficamos em casa de tarde, pode ser?
— Fechado, Mary. — Respondemos juntos.
Depois que comemos, paramos em uma lojinha super pequena que vende velas e imagens de vários tipos de santo. De várias religiões diferentes.
— Boa tarde, você tem baralho de tarô? — Perguntei.
— Tenho baralho cigano, tarô de marselha e esse simples aqui. — A moça, com uma energia ótima, me respondeu. Eu sabia sentir a energia das pessoas, e isso é algo que eu digo ter herdado da Sasha, minha cachorrinha. Foi por ela que virei vegetariano. Sabe que, a primeira vez que Lucca foi em casa, ela sentiu uma energia estranha vindo dele? Achei que era pela altura. Lucca era bem alto.
Você acredita em energias? Há quem diga que somos seres humanos e por isso não emanamos nenhum tipo de força. Maior besteira que alguém pode dizer. Energia é física. Movimento produz energia. Um carro andando, uma cachoeira… Tudo gera energia, e ela é a moeda de troca no universo em que vivemos. Se você faz o bem, você recebe o bem. Se faz o mal, recebe o mal. Se te derem o mal, dê a eles o perdão. Você também vai receber quando precisar.
Tive um tio-avô super homofóbico, que zoava todo mundo, inclusive meu avô, que tinha menos dinheiro que ele. Ele era uma pessoa nojenta energicamente. Existem pessoas com energias boas, ruins e energias nojentas. Sabe quando você conversa com alguém e sente vontade de vomitar? Então, é isso. Ele pegou câncer uma vez, e virou a melhor pessoa do mundo. Se curou. Achou que o rei morava em sua barriga de novo, e voltou ao mundo de maldades.
Agora, o câncer voltou. Ele não tem mais sistema digestório e está vivendo entubado dentro de um hospital, quase morto de remorso. Fui vê-lo, apesar de eu ser a bichinha da família. Dei o perdão quando ele me deu o inferno, e é assim que devemos ser.
— Quero o simples. Vou passar no cartão de crédito. — Respondi.
— Certo. — A moça cortou um pedaço de papel e embrulhou a caixinha do baralho com todo o cuidado do mundo. Entreguei meu cartão de crédito.
Recusado.
— Ué, acho que deixei bloqueado no aplicativo. Deixa eu ver aqui, moça… — Peguei meu celular. “Nova mensagem de Hugo em Tinder”. Tremi.
— Cobra aqui no dinheiro mesmo, moça. — Ela cobrou e saímos. Guardei meu celular, ansioso para ler a mensagem de Hugo.
— O crush respondeu, socorro. — Disse, mas as meninas nem ligaram.
Chegamos na casa da Mary e a primeira coisa que fiz foi abrir o Tinder.
“Hey”
“Tudo bem?”
Hugo havia me mandado duas mensagens.
“Tudo e você?”
“Quanto tempo. :(”
Desliguei o celular mais uma vez.
— Vamos consultar o tarô?
— Vamos, mas se sair coisa ruim não me fala, tá? Não vai mudar nada. — Rose estava com medo.
O meu despertador é escandaloso. Bosta, eu esqueci de tomar água entre as latinhas de Skol Beats na balada ontem e a minha cabeça está explodindo. Me vesti, e peguei o celular só depois de estar pronto para sair de casa. Nenhuma mensagem de Lucca. É Pietro, é você e você e as coisas pequenas que só você se importa.
“Bom dia, miga! Vamos na Clock Out, hoje?” Mandei no Whatsapp para a Anna e segui para a minha jornada de 40 minutos até o trabalho. Era longe, e eu sempre levava o Kindle na bolsa, apesar de nunca lembrar de ler. Mas hoje, eu estava sem sono e de ressaca, precisava de uma distração. Não se apega, não, da Isabela Freitas parece perfeito. Já li três vezes, e nunca é tarde para o início da quarta.
Eu sei que ela terminou com o namoro de dois anos e todo mundo ficou espantado. Qual é, eu também terminei. Algumas pessoas se espantaram, mas a maioria falou que eu tinha me livrado de um super embuste. Será? A verdade é que ninguém nunca sabe o que se passa dentro do nosso relacionamento, só nós mesmos. Eu já ouvi de tudo:
“Nossa, ele parecia ser super amoroso com você, e você sempre parece tratá-lo mal.”
É, ele era amoroso comigo. Depois de cortar minha vibe e me deixar puto por me magoar de alguma forma. Sou fã das coisas pequenas, e são elas que também me deixam mais triste. Então sim, ele era um amor. Só que tínhamos acabado de brigar, e na sua frente, ele estava sendo cínico. Sim. Ele estava ignorando tudo o que tinha acontecido, quando eu queria conversar ou discutir até resolver nosso desentendimento. Se você namora, saiba disso. Nunca ignore ou negligencie nada que a outra pessoa sente. Sério. Coisas pequenas machucam mais que uma traição. A gente passa a vida toda sabendo que se um dia a gente for traído, vamos bloquear nas redes sociais e encontrar alguém que nos valorize. Mas o que a gente faz quando a pessoa diz que sua ideia de trabalho de graduação é uma bosta e nunca vai ter capacidade de tirar um 10? Porque a dele é muito melhor, ele é mais velho e tem muita experiência. Você contém as lágrimas e quer ficar no seu canto, certo? Aí a pessoa, volta como se nada tivesse acontecido. Ah, oi né? Prazer. Dois anos comigo e você ainda não sabe que odeio chiclete e não posso sentir o cheiro de feijoada que me dá enjoo.
“Você precisa dar mais uma chance. Só mais uma.”
Meu amor, quem quer faz perfeito em uma chance. Ok, somos humanos e sempre merecemos uma segunda chance, talvez uma terceira. Minha mãe sempre dizia que errar uma vez é tudo bem, mas persistir no erro é burrice. Então reprovei uma vez na autoescola. Ela ficou triste, mas disse que na segunda vez eu passaria. Só burros não passavam. Reprovei de novo. E ela disse que também estava tudo bem. Passei na terceira. O problema aqui é que eu já dei 600 chances. Foram dois anos comigo, uma chance por dia. No começo, não íamos dormir brigados em hipótese alguma. Ou sem dar boa noite. Depois, as brigas ficaram mais sérias e dormimos brigados. A coisa começou a definhar, eu temia o fim, então me agarrava aos bons momentos e ia até onde dava. Uma hora não deu mais. E “não deu mais” bem tarde. Eu tinha medo de me sentir só. Mas aos poucos eu sinto um comichão da liberdade dentro de mim. Eu não precisava ter dado mais que três chances. Não dê ao outro aquilo que você não dá nem para si mesmo.
“Vocês eram um casal perfeito. Achei que fossem casar.”
O que é um casal perfeito? Aquele que é lindo na frente das pessoas e entre quatro paredes, há só xingamentos e julgamentos? Porque se for assim, éramos. Lucca não tinha uma religião muito conhecida e eu sempre respeitei. Até o dia em que resolvi aprender a jogar tarô e ele me zoou. Porra, eu respeito sua crença e você não respeita a minha? Pera lá. Não, Lucca, não era só uma brincadeira. Toda brincadeira tem um fundo de verdade e eu sei que você zoa as pessoas para se sentir melhor. Mas não sou seu amiguinho hétero. Eu sou… Eu era o seu namorado. Aquele que você cozinhou por três meses no banho e maria antes de assumir, deu um fora no meio da balada, disse que nós nunca poderiamos ficar juntos, logo antes de virar as costas e o deixar chorando na sarjeta sem nem um táxi próximo. Não é rancor. Certas cicatrizes penetram fundo demais para sumirem. E agora, parece que o jogo virou. Ou não. Você nem sequer falou comigo ainda. Talvez queira terminar e nunca teve coragem de dizer, preferiu sumir como um covarde faria.
Piiiiiii.
Era o meu ponto. Quase perdi em meio aos devaneios, sorte que o cobrador me conhece e deu o sinal para descer, bem ali, próximo do quartel onde meninos de 18 anos estão saindo do alistamento militar obrigatório. Que medo. Isso me lembrava o Hugo, um menino que dei match no Tinder antes de namorar com o Lucca. Conversamos algumas vezes, saímos duas, nos beijamos e depois, sumimos da vida um do outro. Eu havia seguido ele no Instagram de novo, há alguns dias, e ele me seguiu de volta. Será que eu devia chamar? Não. Ele deve ter ranço de mim.
“Vamos. Quero ver você cheio dos novos contatinhos, hein.” Anna me respondeu, e vi assim que entrei no prédio em que eu trabalho.
“Estava pensando em um menino que fiquei anos atrás. Acho que destruí ele, queria tanto resolver essa pendência.” Comentei.
“Como assim destruiu? Me explica!” Ann respondia rápido.
“Vou te mandar um áudio…”
“Minha história com o Hugo foi rápida mas intensa. Um dia, demos match no Tinder e combinamos de nos encontrar no parque próximo ao meu trabalho na hora do almoço. Ele era do signo de libra também, tímido e parecia um pouco comigo. Nos encontramos antes disso. Ele estudava na escola que fiz o ensino médio, no período da manhã. Nesse dia, eu já tinha tirado meu horário de almoço, mas meu chefe saiu e eu saí para encontrar ele em uma praça, que era bem longe. Sentamos e conversamos por horas sobre a vida, não nos beijamos nesse dia. Nenhum de nós tomou a iniciativa. Ele também falou que não beijava em primeiros encontros. Continuamos conversando depois desse dia, ele era legal e me mandava bom dia todos os dias. Nesse meio tempo, eu já conhecia o Lucca, mas ele estava me dando vários foras. Eu gostava dele, mas não podia abrir mão dos meus contatos. Então beijei o Hugo no segundo encontro, e ele ficou apaixonado por mim. O melhor amigo dele shippava a gente…”
Enviei.
“Hugo não ia muito em baladas, mas um dia, o melhor amigo dele descobriu que eu ia, e levou o Hugo com ele. A ideia era que ele me encontrasse e ficássemos de novo. Mas nesse dia, fui na balada com o Lucca e o Hugo veio me cumprimentar. Eu o tratei como um qualquer, fui bem embuste. Não o vi o resto da noite, fiquei com o Lucca e depois descobri que o Hugo deu um PT enorme. No dia seguinte eu estava bloqueado em tudo.”
“Estou ouvindo, comovida.”
Alguns minutos se passaram até que Anna ouvisse meu áudio interminável.
“Olha amigo, eu acho que você devia chamar ele. Vocês já se seguiram no Instagram e agora estão trocando likes. Explica que tinha 18 anos. Vocês dois eram crianças, sabe? Tudo tem um jeito.” Ann ponderava bem as situações e eu gostava disso nela.
“É, talvez. Mas preciso de um sopro de coragem ainda.”
“Hoje a noite você vai ter! Quero rebolar até o chão ouvindo Vai Malandra”
Comecei a gostar de funk depois que saí a primeira vez com Anna. Antes eu abominava, agora, não posso ver que minha bunda mexe sozinha. Meu dia de trabalho passou vazio, então fui embora mais cedo. Chegando em casa, resolvi baixar o Tinder e dar alguns likes para ver se as pessoas ainda se interessavam por mim.
Nada.
Comecei a me arrumar para sair com a Anna. Coloquei minha roupa de balada, meu coturno e ela chegou pontualmente com o carro tocando Vai Malandra no som máximo. Me tornei aquela pessoa que abominava: o ser que anda ouvindo a música de vidros abertos e berrando cada letra. Êta loca, tu mexendo com o bumbum. An an. Fomos comer uma pizza antes, vegetariana.
– Ann, baixei o Tinder.
– Você tá me zoando? E aí? – Ela parecia mais animada que eu.
– Estou dando uns likes, mas nada de matches ainda.
– Quero só ver. E quero ver você voltando da balada hoje com a boca inchada de tanto beijar. Igual eu, quando voltei da micareta de carnaval, lembra? – Ô se eu lembrava.
– Ah, não sei. – Ri de nervoso. – Talvez. Vamos indo para a fila da Clock Out? Os 200 primeiros entram de graça, quem sabe a gente consegue.
– Vamos. Não está muito cedo?
– Só vamos.
Chegamos ao som da música da Anitta de novo, e logo na entrada encontrei Gabriel, um amigo de longa data que já estava mais pra lá que pra cá. Força, migo. Você sobrevive a essa noite. Claro que a fila já estava imensa e não conseguimos entrar de graça, mas Ann fez várias amizades. Enquanto isso eu estava só passando umas fotos no Tinder. Sem paciência para socializar.
– CARALHO, ANNA, OLHA ISSO. – Puxei ela da sua rodinha nova de amigos para que olhasse a tela do meu celular, que mostrava “Hugo, 21”. – Será que dou like? Eu fiz um jogo de tarô perguntando se deveria chamar ele e deu que sim… Mas também pedi um sinal, será que é esse?
– VOCÊ AINDA DUVIDA? APERTA ESSE CORAÇÃO AÍ.
Apertei, mas não deu match. Tudo bem, talvez ele ainda não tenha visto.
A fila começou a andar e entramos na Clock Out às 23h30. Já chegamos bebendo e indo até o chão no cantinho do palco, onde a gente mais gostava de ir.
– Oi, você é o Pietro Corrêa? – Um menino chegou falando comigo do nada.
– Sou. – Estava surpreso, e assustado.
– E essa aqui é a Anna Pereira? – Ele aponta para Ann do meu lado.
– É, por quê? – Rindo.
– Caralho, eu amo vocês! – E ele abraçou Anna como se conhecessem há muitos anos. De longe, vi meu amigo Augusto e dei um tchauzinho. Ele veio na minha direção.
– Oi, migo, como você está? – Augusto era bem fofo, e uma pessoa com coração enorme.
– Estou bem, e você? – Gritei, enquanto Ann ainda conversava com o desconhecido.
– Também. Não vi o Lucca….
– Ah, acho que terminamos. – Cortei antes que ele falasse mais alguma coisa. Augusto acompanhou meu relacionamento desde o início, todos os sofrimentos por conta do Lucca. Sua cara foi de espanto.
– Poxa… Mas vamos dançar!
– Vamos! – Continuei dançando, e ele foi para o cantinho dançar com o desconhecido. Ann voltou para o meu lado.
– Que porra foi essa? – Perguntei.
– Lembra daquela tour polêmica do LDRV que conversamos com um desconhecido?
– Lembro.
– Era ele. Você podia dar um beijinho nele.
– Ah, melhor não. Vamos dançar.
Dançamos mais algumas músicas, até que o funk acabou e começaram a tocar pop. Típico da Clock Out.
– Amigo, vamos lá fora? Minha pressão baixou. – Ann me puxou.
Ficamos um tempinho na área externa da balada e não demorou para eu me sentir tonto também. Tinha alguma coisa estranha ali. Só sei que entramos, e passamos o resto da noite sentados, de novo. Levantávamos em algumas músicas, mas não conseguíamos ficar em pé. Já era uma da manhã.
– Ann, vamos embora?
– Amém, vamos. Não sirvo mais para vir em balada não.
– Nem eu. – Respondi, rindo mais uma vez. Nós nunca aguentávamos nada.
Cheguei em casa da mesma forma que a noite anterior, e só me deitei na cama, dando mais alguns likes no Tinder.
“Ei, vamos no centro da cidade amanhã cedo?” Era a mensagem no grupo Galera de Caubói, com minhas duas melhores amigas do ensino médio.
“Vamos. 11h todos nos encontramos na praça?” Respondi.
“Fechado. Pi, te pego aí se quiser. Estarei por aí nese horário.” Mary respondeu.
“Beleza! Quero, Mary. Vou dormir agora porque tô beudo. Não sou mais jovem pra ficar indo em balada.”
A próxima coisa que me lembro é do meu despertador tocando. Caraca, vou atrasar a Mary. Corri para o banho, sem nem olhar para o celular pensando em uma mensagem de Lucca. Elas não sabiam que eu estava mais pra lá que pra cá no meu relacionamento. Na verdade, Rose sabia, e ela havia dito para eu terminar várias vezes.
Saí do banho e Mary estava me esperando na portaria com sua mãe e avô no carro. Sentei atrás.
– Migo, minha mãe quer passar no mercado, tudo bem para você?
– Claro, Mary. Sem pressa. – E peguei meu celular para ver as notificações do dia.
Nada do Lucca.
“Parabéns, você tem um novo match no Tinder. Mande um olá para Hugo.”
Cá estou eu de novo, começando mais uma narrativa, mais uma história na biblioteca da minha vida. Só que pelo final. Sempre começo pelo fim, não sei qual é o meu problema com os inícios. Hoje é quinta-feira, o ano acabou de começar, e eu já cheguei ao final do meu namoro. Na verdade, ele terminou comigo. Ou não. Não sei bem.
Leia ouvindo: TiO, Zayn Malik
É fato que já estávamos brigando todos os dias no último ano. Mas eu, bem trouxa, sempre perdoei todas as vezes em que ele sumiu nos finais de semana, me deixou falando sozinho, me cortou no banco de trás do carro dos meus amigos quando eu estava falando algo muito importante para mim. O fato é que eu nunca poderia estar em uma posição melhor. Talvez seja normal que casais gays vivam em uma eterna competição. Mas eu sempre achei melhor correr nela a favor dele do que contra. Mas ele nunca pensou da mesma forma.
Hoje é quinta e desde sábado, ele não fala nada comigo. Não mandou uma mensagem, uma direct no Instagram e nem uma ligação. E ele teve motivos para falar comigo: meu avô está em estado grave na UTI, e ele é tudo para mim. Lucca sempre soube que eu era instável quando se tratava do meu vô Antônio. Eu também descobri que vou ter que operar o nariz. Meu nariz que já serviu de cópia para pelo menos três plásticas, não funciona. E nada me amedronta mais que operar o nariz. Ah, também surgiu uma manchinha perto do meu olho que o Google diz ser câncer de pele. Ele poderia ter sumido em todas as semanas, menos essa. Eu realmente precisava de algum apoio.
— Pi, vamos na balada hoje? Estou sozinha. — Era minha amiga Anna, anos mais velha e mais sábia, que esteve comigo nesses últimos dias. É incrível como a amizade perfeita aparece nos momentos mais improváveis. Conheci Anna em um emprego que ela odiava e eu também. Nunca seríamos amigos, éramos muito diferentes. Mas o destino cruzou nosso caminho. É como dizem, a perfeição jaz na exceção.
— Vamos, Ann. O Lucca não falou comigo até agora mesmo. — Bufei, desanimado.
— Existem níveis e níveis de cuzãozisse, Pietro. Você está solteiro. Não tem como você esperar que ele volte, talvez ele nem volte. — Ela fez uma pausa — Me desculpa. Mas sua vida não pode parar pelas pessoas. Você está solteiro agora, aproveite isso. Passo aí em 15 minutos.
— Estarei pronto. Vamos naquela balada de hétero? — Sorri, já me animando um pouco mais.
— Bff, é o que tem pra hoje, né viado?
Anna é uma pessoa incrível, e poucas pessoas conseguem ver isso nela. Ela é peculiar, mas do jeito que fala na lata. Não economiza nenhuma palavra, e também não mede esforços pelos seus amigos. Sua vida há teve muitos altos e baixos, e muitas das preocupações que tenho, ela não tem mais. Por isso levo os conselhos dela tão a risca.
Coloquei uma calça jeans, uma camiseta neutra e uma camisa xadrez por cima. Ann chegou em ponto, e assim que entrei no carro, ela colocou um sertanejo bem alto para tocar.
— Que porra é essa, Anna? — Ela não gostava, assim como eu.
— Já que vamos para o habitát dos héteros, temos que nos acostumar. — E fomos. Não foi estranho estar sem meu namorado hoje, porque já vim nesse lugar várias vezes sozinho. Me permiti dançar e beber duas latinhas de Skol Beats.
O Trup, bar e casa noturna dos héteros não dava para suportar por muito tempo.
— Pietro, vamos embora? Cansei. — Anna se apoiou no meu ombro.
— A gente chegou tem 47 minutos. Vamos. — Ri.
Fomos embora depois de pouco tempo mesmo, porque simplesmente não dá. E ainda era dia de semana. Também era inevitável parar de olhar para o celular e esquecer Lucca.
— Acho que chegamos ao final, Anna. — Quebrei o silêncio no caminho de volta. Ela abaixou o som.
— Você acha, Pietro? Ele não te mandou uma mensagem sequer, e todo mundo do grupo ficou apavorado quando você deu a notícia da cirurgia. — O grupo era nossa conversa no WhatsApp com os amigos da vida. Um da balada, outro do trabalho, um amigo de outra amiga… — Vamos na Clock Out amanhã? Podemos comer e ir.
— Fechado. Mas só se ficarmos mais de 40 minutos dançando.
— É a noite do funk, bebê. Vamos nos falando. Beijo! — Desci do carro e entrei no meu prédio, ainda sem acreditar que depois de anos, eu ainda conseguia sair no meio da semana. Eu não estava morto não.
Antes de adormecer, baixei o Happn. Se eu estava solteiro, precisava conhecer pessoas novas. Não para beijar ou namorar. Eu precisava mesmo conversar com pessoas novas. Sabe aquelas conversas fúteis que começam com um oi e você chega ao final contando sua história de vida? Então. Deixei ligado e dormi, sem pensar em nada.
Bem-vindo a autobiografia do abandono. Aqui, você vai conhecer o meu lado da história. O lado da história de alguém que foi abandonado, largado. Jogado, deixado de escanteio, invisibilizado. Sim, eu. Mas, não vou falar da minha vida, vou falar da minha vida com ele. De nós. Do momento em que nos conhecemos até o momento em que ele me abandonou.
Nos conhecemos no final do ensino médio, com amigos em comum, em uma Starbucks recém-aberta na cidade. Nós nos beijamos loucamente em cada canto do shopping, dentro das cabines do banheiro, no estacionamento, no carro e até mesmo na rua. Depois daquele dia, nós nos tornamos inseparáveis.
Nós passamos a nos ver todos os dias da semana e dos fins de semana. Eu ansiava pela sua mensagem enquanto estava no meu estágio para saber qual seria o plano para o fim da noite. Se iríamos no cinema, no shopping ou apenas transaríamos no carro no estacionamento daquele parque escuro. Eu tinha expectativas, mas ninguém nunca disse que elas eram só minhas e que ele tinha nada a ver com elas.
Ele me pediu em namoro em um abandono iminente. Ele iria embora da cidade para cursar faculdade em outro estado. Naquele estado de ensaio, eu não queria estar com ele. Mas ele sim, queria estar comigo e eu me senti especial por conta disso. Aceitei o namoro como quem é capaz de respirar bem fundo e ir até o fim do mundo. Ele não foi embora. Ele nunca ia me deixar.
A gente se encaixava de todas as formas possíveis. Tínhamos gostos parecidos e gostávamos de afastar a mobília para tomar champanhe enquanto jogávamos buraco e dançávamos ao som da trilha sonora de Crepúsculo. É engraçado porque, pensando agora, consigo enxergar claramente todos os sinais do abandono que eu gostava de ignorar. Eu achava, de verdade, que ia ser aquele que ficaria.
Ele tinha um alarme no celular para tirar a aliança quando chegava em casa. Nunca conheci seus familiares. Não pertencia ao seu mundo e ele não fazia questão que eu pertencesse. Não podíamos ser vistos juntos em público. Não podia me levar pra casa de carro, eu precisava pegar um ônibus. Nos finais de semana, ele começava a parar de me mandar mensagem, assim como nos fins de noite.
Todos os nossos encontros eram carnais e só. Sem afeto, sem alma, sem brilho. O abandono estava ali, na minha cara e eu fazia de tudo para ignorar. Lidar com a fuga também é uma forma de lidar, certo? Certo? Por que ele nunca chegou e falou? Por que ele simplesmente não disse que não conseguia mais do jeito que estava?
Porque o abandono foi seu jeito de falar chega, já deu. Eu não aguento mais você, eu não aguento mais me esconder, mas você não vale a pena o bastante para eu parar de me esconder. Você vale a pena para uma fodinha no banco de trás do meu carro em que vou reclamar do seu corpo, você vale a pena para o meu fim de noite, para o meu fim de festa, para o meu fim de dignidade… Você vale a pena para os meus fins, mas não para os meus inícios. Você é o amor do fim de mundo, não o amor do começo dele.
Você é o meu amor de abandono, meu amor de muleta. Aquele em que vou usar nos momentos mais difíceis, aquele que vou dar todas as esperanças, mas nunca aquele que vou levar para frente. Depois do impacto inicial, eu vou além e você fica. Você não é suficiente para os meus inícios.
E por isso, eu fiquei um caco. Claro que nada disso ele me falou de verdade, mas na minha cabeça é tão verbal quanto uma voz sonora do meu presente. Eu não sei em qual momento demos errado, mas sei que você simplesmente usou do abandono como sua forma de comunicação e eu fiquei aqui, com todos os meus receios tentando tecer uma linha de interpretação que fizesse sentido para toda a história que tivemos. Sou o amor do fim, da escuridão, do não, do impasse, do erro, da obrigação…
— Alexandre… (Longa pausa dramática.) Com 87% dos votos, foi você o escolhido. Seu tempo na casa chegou ao fim. Vem viver sua vida aqui fora!
— Ei, espera aí. Assim, de supetão?
— Como “de supetão”? Já é seu quinto paredão e sua mala inclusive está pronta aí do seu lado.
— Mas eu achei que era só jogo de cena, pra manter a audiência ligada até o final.
— Não, infelizmente não é jogo de cena. Vem! Sua família te espera.
— Você só pode estar maluco. Meus pais já têm mais de 70 anos, não posso ter contato próximo com eles não.
— Olha, eu sei que é difícil se desfazer desse sonho, mas chegou a hora de você encarar a realidade aqui fora. Tem muita coisa boa te esperando!
— Tipo o quê?
— Você agora é uma celebridade. Não vai mais conseguir andar na rua sem ser assediado, pessoas querendo uma selfie pra postar no Instagram, esse tipo de coisa…
— Como assim? Assédio, selfie? Na cartilha que vocês nos mandaram estava escrito em caixa-alta: EVITAR O CONTATO PESSOAL!
— Olha, realmente aconteceu esse probleminha…
— Probleminha? Também estava escrito que não era pra acreditar de modo algum em quem dissesse que era apenas um “probleminha”. Não estou entendendo mais nada, achei que eu entraria nessa casa e sairia com a minha situação resolvida, mas pelo visto me dei mal.
— Alexandre, eu sei que você está preocupado e não tiro sua razão. Estamos em um momento difícil, mas que passará, como tudo na vida. Veja pelo lado bom, agora você é uma pessoa pública e pode ajudar a conscientizar a população.
— Mas quem irá me reconhecer, se sou obrigado a sair de máscara?
— Você pode fazer lives dentro da sua casa mostrando como pode ser boa a vida no confinamento, afinal você já tem experiência no assunto.
— Uma coisa é me divertir numa casona dessa, com festa toda semana, bebida e comida à vontade, tempo livre, gente bonita, piscina, academia e o escambau; outra é ficar preso naquele meu quarto e sala, com vista pra parede do outro prédio e uma internet que cai o tempo inteiro.
— Infelizmente, não podemos nos responsabilizar por tudo que acontece após o programa. Cada um tem que achar um jeito de se inserir no mundo aqui fora. O próprio Rubinho, que saiu no último paredão, tá fazendo um sucesso danado confeccionando máscaras com rostos de ex-BBBs. Se a pessoa quiser sair sem ser notada, é só escolher a cara de alguém que participou dos programas mais antigos que é batata.
— Quer dizer que eu posso usar uma máscara com meu próprio rosto impresso?
— Claro, tem gosto pra tudo. Vem, o Brasil te espera!
— Bom, pelo menos ainda posso fazer presença em festas.
— Não existem mais festas.
— Como assim?
— Acho que falei besteira — murmurando baixinho.
— O quê?
— É isso mesmo, as festas foram proibidas.
— Como vou me sustentar sem fazer presença em festas? Torrei todo o meu dinheiro pra clarear os dentes e fazer uma abdomino plastia. Não sobrou mais nada.
— Você tem smartphone?
— Tenho.
— Então… Você pode baixar um aplicativo que vai te dar direito a receber uma ajuda do governo.
— Que bom… Quer dizer que não vou passar aperto? De quanto é esse auxílio?
— Seiscentos reais.
— Seiscentos reais?
— Isso.
— … Tá, mas e a Solange? Ainda está me esperando aí fora?
— Bom… Você sabe que ela saiu logo na terceira semana… Olha, eu não vou te enrolar não, ela está morando com o Rubinho.
— Mas o Rubinho saiu daqui semana passada jurando que ia voltar pra Ju.
— Ju?
— Ju, a que saiu na primeira semana.
— Ah, lembrei. Aquela lourinha, né?
— A própria.
— É tanta gente que fica difícil de lembrar. Pois é, ela ficou com medo da pandemia aqui no Brasil e viajou pra longe.
— Foi para onde?
— Nova York.
— Sorte a dela, hein?
— Vamos mudar de assunto? Tenho certeza de que você fará muito sucesso quando sair da casa. Inclusive, existe a chance de você ser recebido pelo presidente da república! Tá cheio de gente querendo saber sua opinião sobre a cloroquina.
— Cloro o quê?
— Esquece. Vem, Alexandre, vem brilhar aqui fora!