Críticas de Cinema, Filmes

Crítica: O Círculo (2017)

Baseado no livro homônimo de Dave Eggers (a resenha do livro já está disponível no Beco). Roteiro: James Ponsoldt e Dave Eggers. Direção: James Ponsoldt. Elenco: Emma Watson, Ellar Coltrane, Glenne Headly, Bill Paxton, Karen Gillan, Tom Hanks, John Boyega, Patton Oswalt e outros.

O Círculo (2017) tenta desenvolver uma reflexão importante a respeito da influência da tecnologia nas relações humanas, e como consequência interferindo nas condições de poder político e social, mas peca ao apresentar argumentos rasos e representar um mundo demasiadamente ingênuo. Mae (Emma Watson) é uma menina simples, trabalhadora e, aparentemente, sem grandes ambições além de conseguir dar suporte financeiro a sua família, já que seu pai (Bill Paxton) tem esclerose múltipla e os tratamentos são muito caros. A reviravolta na vida da personagem acontece quando ela consegue uma entrevista de emprego, através da amiga Annie (Karen Gillan), no Círculo, uma empresa de tecnologia aos moldes do Google e do Facebook que mascara jornadas de trabalhos exaustivas com um ambiente descontraído e divertido. Começando como uma simples atendente de telemarketing, logo que Mae começa a trabalhar no Círculo surge a necessidade de morar no campus para que ela possa aproveitar as atividades “extracurriculares” (outra estratégia para desconstruir a ideia moderna do trabalho, fazendo parecer que ali é uma espécie de universidade), há uma constante necessidade de compartilhar na rede tudo o que se está fazendo (“sharing is caring” é o lema da empresa), e se isso já não fosse controle o suficiente, o desempenho dos funcionários é medido através de notas dadas pelos usuários que buscam o atendimento da empresa.

O Círculo, como uma grande empresa de tecnologia, se estende em muitos segmentos da vida digital, isso inclui ter uma rede social própria, o TrueYou (parece algo que você conhece?), e criar hardwares de vigilância, como uma câmera do tamanho de uma bola de gude e totalmente transparente. Como parte da iniciativa chamada SeeChange, Bailey (Tom Hanks), o CEO do Círculo, dá um discurso apresentando a nova câmera e suas vantagens como instrumento de mobilização social, através dessa iniciativa seria possível mostrar o que verdadeiramente acontece em tempo real, em qualquer lugar. O primeiro uso da câmera foi para supervisionar uma política, tornando-a “transparente” e colocando em pauta a premissa de “quem não deve, não teme”. Você deve pensar, é nessa parte que alguém desconfia da violação do direito à privacidade, certo? Mais ou menos. Mae só vê as reais intenções da empresa quando conhece, sem saber, o programador/criador do TrueYou (John Boyega) e ele a alerta sobre os planos de Bailey em fazer disso uma realidade para todos os membros do governo. No entanto, mesmo sabendo dos planos da empresa, Mae acredita fortemente na legitimidade da atividade de vigilância proposta pelo Círculo.

É quando Mae invade o lugar que frequenta quase que diariamente para alugar um Caiaque, e se afoga no rio, que a trama começa apresentar seus argumentos sobre esta constante vigilância proposta pelo Círculo. O que Mae não sabia é que perto deste lugar havia uma das câmeras da iniciativa SeeChange, gravando a personagem se esgueirando para passar entre as grades fechadas do recinto, e Mae só é salva pois no momento de captura da infração pela câmera a polícia foi acionada. Após o incidente, a personagem é chamada pelo seu chefe, que a faz ver o “lado bom” da vigilância. Exercitando a lógica, Bailey mostra a Mae que ela cometeu um crime pois acreditava que ninguém estava olhando, logo, uma super vigilância faria com que as pessoas pensassem duas vezes antes de infringir a lei. Mae não só acredita no discurso de Bailey como decide, ela mesma, se tornar “transparente”, tendo a sua vida mostrada 24h por dia, destruindo totalmente a fronteira entre o público e o privado.

Os personagens tocam em assuntos delicados quando a trama parece apenas tratá-los de maneira superficial. Dessa forma, ao ouvir termos como “uma verdadeira democracia”, ou até mesmo o conceito de se tornar “transparente”, devem ser mencionados sempre com aspas pois o roteiro se quer tenta esclarecer as ideias por trás desses termos, quando não os trata de forma equivocada. Ser “transparente” em O Círculo não é ser “limpo” perante a sociedade e estar dentro da lei, mas fazer parte de uma massa homogênea sem identidade. O conceito de total vigilância apresentado no filme lembra o dispositivo panóptico de Foucault, “unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente”. Se tornando mais um instrumento de poder, Foucault coloca que esta prisão de vigilância permanente e onipresente torna tudo visível, desde que o próprio instrumento se torne invisível. É através do disfarce que se exerce o poder vigilante, como o questionamento do autor em Vigiar e Punir: “devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?”.

Além de trazer uma discussão rasa, as relações entre os personagens que participam de grandes arcos narrativos, como Mercer (Ellar Coltrane) e Annie, são fracas demais para desempenhar papéis tão decisivos na trama. A narrativa de O Círculo está longe de ser apenas ficcional, claro. Sabemos que nossos dados, nossa localização, o que fazemos, o que comemos, onde fomos ontem e onde estamos agora, tudo está na nuvem. Mas o filme, apesar de ter em mãos uma discussão importantíssima e que não é recente, tende para um lado argumentativo que corrobora com a ideia de que ser “transparente” é a solução de grande parte dos problemas da sociedade: a criminalidade, a corrupção, a violência, etc. A trama ignora totalmente o fato de que estes problemas são sintomáticos, isto é, por trás deles há uma série de outras mazelas sociais e políticas.

O Círculo pode até tentar trazer os dois lados da discussão, mas o seu final parece atestar que abrir mão da privacidade para sanar problemas sociais é uma ótima ideia, e parece não levar em conta que este é um dos primeiros passos para um regime totalitário, indo totalmente contra todo o conceito (equivocado) de “verdadeira democracia”. Deve-se assistir O Círculo tendo em mente a famosa frase de Foucault: “a visibilidade é uma armadilha”.

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