Estou desesperadamente há horas te falando que ali não dá mais pé pra mim. E você grita que ali é onde você consegue estar. Que dá pé, sim.
Eu te respondo que pode dar pé para você mas tamanha profundidade não dá pé pra mim. Explico que nadar numa piscina assim depende da sua altura e da sua habilidade. Talvez eu tenha menos altura e você, mais habilidade. Você insiste que não. “Só vem, dá tudo certo.”
Não dá. Eu me afogo e volto pro meu raso. “Não consegui, viu? É complicado pra nós sem altura e sem habilidade.”
“Você não faz do jeito certo”, você grita de lá. “Aqui dá pé tranquilamente. Eu consigo assim, olha.”
Tento de novo. E me afogo pior dessa vez. “Não dá mesmo.” Acho que engoli água com cloro, meus pulmões pegam fogo. A frustração tenta me alcançar e toda aquela água parece tentar sair pelos meus olhos vermelhos.
“Você tem que entender. Se você não entender, não tem como dar certo”, você diz, dessa vez mais incisivo. “Você precisa confiar em mim.”
Tento de novo. Sinto meus pulmões apertarem, acho que entrou água demais. Minha vista tá escura. Alguém me puxa e meu peito encontra alívio. “Não consegui mesmo, me desculpa. Aqui não da pé pra mim mais.”
“Mas dava antes”, você responde. “Acho que você só quer que não dê mais.”
“Mas você me viu tentando. Várias vezes.” Tento fazer minha voz te alcançar.
“Sei não. Eu te expliquei que é questão apenas de você querer. Eu não acho que seja tão grave assim se afogar três vezes. Na quarta você consegue, vai se acostumar.” Você está bravo. “Mas não vou implorar para que venha.”
“Você não consegue voltar pra cá?”
“Consigo.”
“Então por que não vem?”
“Porque cansei de implorar que venha. Não vou se você não vem.”
“Eu não consigo. Meus pulmões doem muito.”
“Você não quer, é diferente.”
“Eu quero. Estou treinando todos os dias para isso, só não deu ainda.”
“Não posso te esperar para sempre.”
“Mas eu estou tentando. Você viu o quanto eu me afoguei agora.”
“Vi.”
“E isso não conta?”
“Eu já disse que não implorarei mais.”
Tento mais uma vez, com empenho. Eu já consegui transpor essas águas até chegar ao lado que não me da pé, eu já consegui antes. Eu sinto a água entrar na boca com força. Meus pés não encontram apoio. Meus braços não tem mais força. Meu pulmão… Não trabalha mais. Sinto um zumbido fino no ouvido. A água agora parece me fazer flutuar.
“Oi???????” Acordo tossindo. Não é ele. É vermelho vivo. “Não fale nada. O que você pensou que estava fazendo?”
“Eu…”
“Não fale nada. Não dá pé para você ali. Você é maluco de ficar tentando? Queria se matar?”
Não. Eu só queria mostrar a ele que dava pé. Ele disse que eu não queria o suficiente. Que eu não conseguia compreende-lo.
Eu só queria mostrar que compreendia, apesar de não dar pé pra mim. Apesar de não conseguir ainda, que eu estava desesperadamente tentando. Meus olhos tentam encontra-lo. Ele me olha negando com a cabeça.
“Eu desisto, viu?” Ele falou movimentando os lábios, em silêncio e veio em minha direção. “Deixa pra lá. Não vou implorar mais pra você vir. Entendi que não quer.”
Tento fazer minha voz sair para rebater. Não consigo e ele volta antes para a piscina.
não deveria ser eu a pessoa que te parabeniza primeiro, mas, meus parabéns.
essa foi a frase que minha terapeuta me disse hoje depois que eu contei as boas novas pra ela. eu já nem queria mais parabéns.
não dela, pelo menos.
leia ouvindo: my tears ricochet, taylor swift
são valiosos, claro, que são. mas só não valem de nada. eu sei. ela sabe. ela só falou para que eu percebesse.
eu já pensei mil vezes em colocar essas boas novas pra baixo do tapete e fingir que nunca aconteceu. talvez eu faça.
não, não é isso que ela queria que eu tivesse percepção.
talvez eu faça porque, por mais que seja poético dizer que toda vez que a tinta pinga no papel, eu vejo a torre ruir, é igualmente doloroso sentir a descarga elétrica que cai dos céus sem avisar. e eu estou cansado disso. estou cansado de me sentir assim.
toda.
santa.
vez.
como boa terapeuta, ela sabe o que essa intervenção, cirúrgica, faria dentro de mim. não era sobre os parabéns. eram sobre as expectativas criadas.
eu sei, você pode pensar que as expectativas são minhas para criar e alimentar, como parasitas. e foi isso que eu disse à ela.
ela parou de responder.
mas antes de desligar na minha cara, ela soltou, casualmente: se você não puder esperar reconhecimento de quem está ao seu lado, é porque talvez você esteja sozinho enxergando alguém que não está de fato do seu lado.
e você sabe como, casualmente, você cria sentimentos bons em buracos que são totalmente secos e ocos.
é casualmente que nossos olhos abrem, que a gente acorda caindo da nuvem mais alta. é casualmente, em um jantar de sexta que a pessoa que você mais amou na sua vida vai te dizer que não te ama mais e que agora vocês precisam partilhar os bens.
dividir meio a meio a mesa pela qual vocês tiveram que economizar por meses para pagar e deu uma cara nova para a casa que vocês sempre quiseram criar.
a geladeira vai pra um lado. o fogão vai pro outro.
com quem fica a máquina de lavar? e o colchão?
você se sente conduzindo uma autópsia. é preciso examinar o que aconteceu, entender de onde veio, para onde vai… tudo isso em cima de um cadáver que já vinha cheirando mal há alguns meses mas que a gente insistia em achar que era só jogar um perfume que ia resolver.
ele continua cheirando mal.
putrefeito.
eu tentei ligar de volta pra minha terapeuta. ela não atendeu. eu também não atenderia. ela quer que eu crie mais segurança sobre mim.
como eu posso criar mais segurança sobre mim se parece que você foi enviado por alguém que me queria morto, sr. homem-bomba?
como?
você explodiu. eu queria explodir.
devo agradecer pela colisão?
de fato, esse arcano da torre que sai agora nesse jogo do nosso relacionamento diz tudo o que talvez ela gostaria de dizer mas não pode: tudo o que a gente ignora e não constrói sobre bases sólidas, rui com os efeitos das intempéries.
está ruindo. ruiu.
e eu estou arruinando mais uma vez essa energia que faz minhas artérias vibrarem.
É isso mesmo. Eu saí primeiro do castelo porque eu tinha essa opção. Eu podia sair primeiro. Você não poderia e nós dois sabíamos disso. Então, eu fui, mas não pense que foi do nada. Primeiro, eu conversei com ele e ele me incentivou. Disse que eu precisava seguir o meu caminho, os meus sonhos, sem pensar nas circunstâncias que ficariam. Se ele me deu o aval, por que você acha que eu ficaria para ver tudo isso ruir como você ficou?
A nossa história caiu. O castelo ruiu em milhares de rachaduras que eu não quis ficar para ver. Você ficou. Era seu dever e a sua obrigação ficar e por isso, você perdeu muito quando eu estava ganhando o mundo. Eu vivi novas possibilidades que se criaram a partir da hora que eu saí, você, não. Você viveu o que poderia ter vivido com os restos do que deixei.
Eu não queria isso para você, é claro. Mas eu queria menos ainda para mim. A gente se salva primeiro e, se der, salva quem ficou depois. Não deu para te salvar e eu não sinto muito por isso. Alguém precisava ter pagado o pato pela minha saída. Você foi o meu bode expiatório.
O mundo que a gente vive é assim, não adianta se ressentir dizendo que gostaria de ter tido escolha também. Você queria, mas não teve. Eu tive e fiz a minha escolha, segui o meu caminho. Ou você esperava que eu ficasse para testemunhar a saída de todo mundo do castelo até que um ficasse olhando na cara do outro eternamente? Isso pode ser para você mas nunca foi para mim. Nunca será.
Eu entendo que você sofre e sofreu mas, antes você do que eu, né? Eu podia. Podia vem de poder e era isso que eu exercia sobre você, por isso você chorou tanto na noite que anunciei minha saída. Você não tinha o poder que eu tinha, você não podia. Nem poderia. Nem aquela hora, nem agora, nem nunca.
Desculpa mas, eu não me sinto culpado nem sinto muito por você. Sinto pelos outros que ficaram e que foram obrigados a tomar outras decisões, mas, você? Você soube que nunca houve outra escolha para você. Essa é a sua vida, esse foi o seu karma, o seu destino, sei lá… Eu nunca tive escolha, você pode dizer e eu não acho que esteja de todo errado. Meu poder de lábia te levou. Como eu te disse, eu podia. Alguém tinha que não poder para que eu pudesse poder.
E esse alguém foi você. Aproveite o castelo antes que ele vire ruínas.
Tudo começou com uma ruptura. Alguém que falou eu não te amo mais, eu não quero mais você em uma noite fria quando nos recolhemos para a torre mais alta do castelo. Tinha tudo para ser mais uma noite comum. A gente arrumou a cama, a gente deitou, a gente deu boa noite e veio a ruptura. O choro convulsivo e alucinante foi inevitável e acordou todo o castelo.
Na manhã seguinte, ele já tinha ido embora. Mas muitas pessoas ainda ficaram por lá. O castelo era esquisito, a torre era mais vazia, parecia que faltava alguma coisa ali. Mas, muitas pessoas ainda ficaram por lá em outros aposentos. O castelo não estava vazio, eu só sentia que estava porque ele não estava mais lá e nem iria voltar.
Tentei começar a fazer coisas novas para distrair a minha cabeça. Ainda éramos quatro no castelo depois que você foi. Como pode três não valerem por um? Eles valiam, mas não eram você. Eles valiam mais que você. Diziam que a gente precisa sangrar pra evoluir e crescer. Eu não tenho o que dizer para me defender ou para fazer você voltar. Você conheceu outra pessoa e se foi numa noite qualquer de agosto.
Você não gostava de mim, senão você teria dado um jeito. Você teria se aberto para um diálogo, mas não abriu. Depois de você, ele foi o primeiro que deixou o castelo e ficamos apenas em três. Foi doloroso, mas me bateu uma felicidade vê-lo alçando voos maiores que ele sempre mereceu voar. Nesse dia, você ainda me mandou uma mensagem. Uau, ele foi embora. Sim, ele foi. A diferença é que a gente sempre soube que ele iria. Você também soube que você sempre iria, só eu que não soube que era a única pessoa que ficaria. Você ficou emotivo e tentou conversar comigo. Eu te respondi por educação, mas o jantar já estava bem frio nessa altura do campeonato.
Você soube que era sua hora de ir quando foi. Quando rompeu de forma abrupta. Agora é a minha hora de saber que você causa fissuras na minha alma. E a minha alma sabe que agora é a minha hora de partir e deixar você por aí. Partir é a única escolha para mim. Você pode escolher entre a decisão mais corajosa, a mais honesta ou a mais inteligente. Eu só tive uma escolha.
Partimos nós três. O castelo era grande demais para nós. E então foi a vez dela partir. Era uma coisa provisória, mas se tornou permanente. Ela nunca mais voltou. Sobramos duas. Eu e a cachorra. A cachorra que fomos buscar todos juntos enquanto ainda éramos uma família. Hoje, a família parece que sou eu e ela. Não me entenda mal, eu a amo. Mas ela é uma lembrança viva de que todos seguiram em frente com as suas vidas e eu fui ficando. Eu fiquei. Ele rompeu. Ele cresceu. Ela seguiu. Eu fiquei. Ela também.
Todos os dias eu olho pelos corredores do novo castelo ou do castelo antigo. De tão silenciosos, agora eles gritam nos meus ouvidos coisas que eu não gostaria de ouvir. Eu ando, só, na pedra fria do chão em todos os cômodos vazios até chegar no alto da torre que também está vazia a não ser por mim. Antes, todos esses aposentos eram barulhentos. Barulhentos até demais. Eu vivia pedindo por silêncio, mas quando ele chegou, me atingiu como uma adaga no peito. Eu daria tudo para ver tudo isso encher de novo com danças ridículas, brigas sem razão e risadas de doer a barriga.
Resolvi perguntar pro Chat GPT, um robô com inteligência artificial o que significava se sentir ressentido. Ou, como eu gosto de falar, ressentindo. Ele me respondeu que significa ficar magoado, irritado ou guardar sentimentos em relação a uma situação passada, geralmente envolvendo alguma mágoa. Ele acrescentou que quando alguém fica ressentido, isso implica que a pessoa mantém esses sentimentos ao longo do tempo, não conseguindo superar ou perdoar completamente o evento que causou a emoção. Então sim, a pessoa fica re-sentindo. Sentindo de novo, e de novo, e de novo…
Sabe, eu falei pra minha terapeuta que às vezes eu me sentia assim, ressentido. De vez em quando, eu quero tanto conquistar alguma coisa mas eu não vou atrás porque eu me saboto. Para mim, vale mais a certeza de não conseguir que a incerteza do sim ou do não. E isso me deixa puto – eu vejo pessoas conquistando exatamente o que eu queria conquistar e fico com inveja, com raiva. Mas elas tentaram o sim, né? Eu preferi a certeza do não. E eu fico sentindo isso como se fosse uma vaca mascando grama. Sentindo, sentindo, sentindo, ressentindo…
Que saco, sabe. Por que algumas pessoas simplesmente vivem sem sabotagem? Eu não vim com esse dispositivo de fábrica, nem com aquele que controla a ansiedade e teria que, teoricamente, não me deixar imaginar os piores cenários possíveis até que eu desistisse do que eu queria. Eu só queria ir lá e fazer. E não ficar ressentido quando alguém vai e faz quando eu não fiz.
Eu tô assistindo Big Brother e tem um participante lá que me deu um estalo exatamente sobre isso. Não posso citar o nome dele por motivos de processo, mas todas as vezes em que o vi, ressentido em um show de um artista que chegou lá, eu senti uma pontada no coração. Ele sempre fala que é maior, que é melhor, mas por que ele não tá lá? Simplesmente porque o outro foi lá e tentou o sim e desafiou o não até conseguir. E ele, talvez tenha ficado como eu, ressentido, sentado, bicudo no fundo da festa.
A minha terapeuta fala que a gente precisa ter paciência com a gente porque a gente só aprende a viver, vivendo. Concordo com ela. Mas seria tão mais fácil não ter tido que enfrentar algumas coisas para sobreviver no começo da vida e só começar a viver agora, no final dos 20, viu? É tão lindo ver pessoas que vivem desde cedo. Eu sobrevivi até uns 24, 25. Hoje, com 28 que eu comecei a viver de verdade mesmo, ou seja, 8 anos que eu sobrevivi para agora eu começar a viver. Soa como tempo perdido para mim. Soa injusto. Me deixa ressentido de novo.
Vivo me questionando o porquê. Vivo me comparando com os outros, às vezes até de forma hipócrita mesmo, dizendo que cada um tem seu tempo quando na verdade eu queria o tempo do outro e não o meu. Da mesma forma que algumas pessoas enxergam sem óculos e eu preciso pagar para enxergar, por que algumas pessoas simplesmente nascem vivendo e eu tive que nascer sobrevivendo?
Essa é a pergunta de milhão, né. Eu nunca vou saber. Minha terapeuta disse que também não. Até lá, eu tento só interromper esse fluxo e esse refluxo das coisas que eu sinto. Tipo um coelho que come, faz cocô e volta lá pra comer o cocô e digerir de novo. Eu me sinto um coelho de sentimentos. Só que preciso parar de ir lá e ficar eternamente comendo a minha bosta.
É inegável que vivemos em uma época onde a velocidade e a eficiência são valorizadas como nunca antes. Isso se reflete em todas as esferas de nossas vidas, incluindo a forma como abordamos a leitura. Hoje, vemos uma tendência crescente de pessoas que competem para ler mais rápido, completar pilhas de livros em tempo recorde e ostentar sua capacidade de leitura. Mas será que essa corrida pela quantidade de páginas viradas está custando o verdadeiro valor da leitura?
Não há dúvidas de que ler é uma atividade enriquecedora e uma ferramenta vital para o aprendizado, a empatia e o crescimento pessoal. No entanto, quando a leitura se torna uma competição desenfreada para devorar um número cada vez maior de livros, podemos nos ver presos em uma armadilha que prejudica nossa compreensão, reflexão e apreciação do conteúdo.
O fenômeno da “leitura desproporcional” é uma realidade com a qual muitos de nós podem se identificar. É quando nossa motivação para ler está mais ligada a bater metas de leitura do que a absorver e refletir sobre o que estamos lendo. Isso ocorre quando começamos a escolher livros com base em seu tamanho, preferindo obras curtas que possamos devorar em uma única sentada…
A ideia de ler muito não é, em si mesma, problemática. A questão está em como realizamos essa leitura. Ler rápido pode ser uma habilidade valiosa em determinados contextos, como em estudos acadêmicos ou na busca por informações específicas. Contudo, quando aplicado indiscriminadamente à literatura e à ficção, pode resultar em uma experiência vazia e superficial.
O grande perigo da leitura desproporcional é a perda da profundidade e da riqueza que os livros podem oferecer. A corrida para virar as páginas pode nos fazer negligenciar a reflexão, a conexão emocional com os personagens e a apreciação da prosa. Os detalhes intrincados, as metáforas bem tecidas e as nuances sutis podem escapar quando nosso foco está apenas na velocidade.
Além disso, essa competição frenética para ler mais rapidamente pode criar uma pressão desnecessária. A leitura deveria ser um prazer, não uma corrida.
Então, como podemos escapar da armadilha da leitura desproporcional? A resposta está em encontrar um equilíbrio. Em vez de priorizar a quantidade, devemos buscar a qualidade da leitura. Ler de forma deliberada e atenciosa, permitindo-se parar e refletir sobre o que foi lido, pode enriquecer profundamente a experiência.
É importante lembrar que não existe uma fórmula única para ler. Cada pessoa tem seu próprio ritmo e suas próprias razões para ler. Não devemos nos sentir pressionados a competir com os outros, mas sim a nos desafiarmos a crescer através da leitura. Devemos abraçar a diversidade de estilos, gêneros e autores e lembrar que, independentemente do ritmo, o hábito é uma jornada pessoal.
Hoje faz cinco meses. Por mais que insistam em dizer que minha vó se foi no dia 12/12, para mim, a partida aconteceu no dia 11. No interminável dia onze que também foi o último dia que estivemos juntos. O dia doze nunca existiu. Só existiu um dia onze que durou 48 horas ininterruptas e que depois se tornou dia treze, o número do azar, como dizem por aí. No fundo, eu sempre soube que seria você o primeiro luto a vir. Desde criança, eu soube que você seria a primeira a ir embora, vó. Nunca falei para ninguém das intermináveis noites em que eu chorava sozinho, convulsivamente, com a possibilidade desse dia chegar. Mas o sol brilhava lindo no dia seguinte porque o dia ainda não tinha chego. Porque você estava lá, me dando bom dia com suco de laranja.
Até que o dia chegou. De mansinho. Quando eu menos imaginava, quando eu menos esperava. Quando eu sequer pensava que você viria, luto insensível e que chega sem avisar. Não dá nem um spoiler. A gente bebeu, conversou o dia todo, demos risada, nos divertimos… E na madrugada você se foi, sem sequer me dar um toque. Podia ser uma coisa breve. Podia ser algo do tipo olha, aproveita, viu? Amanhã não estou mais aqui.
Escute ouvindo nossa música preferida, “Meu mundo caiu”, de Maysa, que mais parece uma premonição desse dia horroroso
De fato, eu aproveitei mesmo sem aviso. Não sei explicar o que existia dentro de mim naquele dia onze que me fez aproveitar tanto a sua presença, vó. Talvez tenha sido o mesmo sentimento que me fez chorar por noites a fio com a possibilidade que me trouxe um sutil alerta de que agora seria de verdade. Inconsciente, eu não devo ter percebido. Mas que bom que é o inconsciente que guia nossa vida, né? Porque o luto só vem e entra sem bater, derrubando tudo o que tem pelo caminho.
Quando cheguei em casa nesse mesmo fatídico dia, dormi. Ressaca. A gente tinha bebido muito juntos, vó. Eu nem sei se já bebi essa quantidade na vida. Mas você gostava e assim foi. Acordei de madrugada com um mal estar horrível, tomei meu banho e voltei pra cama. Tudo inconsciente, afinal, esse mal estar só podia ser a ressaca, né? Coloquei A Diarista pra passar na TV, a série que a gente gostava de ver juntos e que, até hoje, vinte anos depois, continuava sendo minha série de conforto.
Cinco minutos depois, a ligação veio. Você tinha partido uma hora atrás. Como assim, morreu? Eu gritei. Não tem como morrer assim. Ninguém morre do nada, sem dar a chance da tecnologia médica intervir, fazer alguma coisa, reanimar. Não é pra isso que serve aqueles choques que dão no coração? Aquele monte de máquinas que ficam apitando e fazendo você ficar vivo, mesmo que de forma mecânica? Como assim morreu sem sequer passar pelo hospital antes, dar algum aviso, algum sintoma? Não, não pode ser.
Mãe, só me fala para onde preciso ir que chego em 20 minutos. Vem para o IML, ela disse. IML, kkkkk. Esse é o lugar para onde levam pessoas que a gente tem certeza que estão mortas. Se minha avó passou mal, ela deve estar no hospital primeiro. Ninguém vai pro IML tão rápido assim. O corpo nem esfriou ainda, como vai pro IML, pensei, mas fui.
É, luto maldito. Você me esperava lá. Era o IML mesmo e o corpo da minha vó em uma maca que parecia um barquinho. Um barco que conduzia sua existência para longe da minha existência. Sua bochecha estava corada. Ainda era você, Vokinha. Só estava dormindo. Ainda estava envolta naquela manta que muitas vezes dividimos para assistir A Diarista. Para de brincadeira, vó.
Não era brincadeira e eu sabia. Inconscientemente de novo, todas aquelas noites de choro agora eram um dia interminável. Pra mim, ainda o dia onze. Para o resto do mundo, era a segunda-feira doze. A segunda-feira doze para mim se tornou mais temível que qualquer sexta-feira treze.
Chegou o velório. O caixão abriu. Não era você ali, vó. E você, luto, fazia questão de me espancar essa realidade de que, quem estava deitada ali, era uma boneca de cera que sequer parecia minha vó de aparência. O que vocês tinham feito com ela? Por que ela não estava se decompondo como um cadáver normal? Por que ela parecia uma boneca encerada, maquiada, com as bocas costuradas e os olhos colados? Um ser humano se decompõe quando morre. Não vira um boneco inchado e irreconhecível.
Mas, apesar de ser irreconhecível, o inconsciente estava em conluio com você, maldito luto. E me fez perceber que, sim, era o que restou de você. Um pedaço inanimado de carne com produtos químicos que retardavam a decomposição, mas que ainda sim ia pro trato digestivo de vermes, bactérias, minhocas ou seja lá o que que vive embaixo da terra.
A pior parte veio depois. Aquele bando de familiar que eu sei que falava mal de você, vó, indo perto do seu caixão prestar as últimas homenagens. Estão aliviados agora que ela morreu, né? Bando de hipócrita falso, maldito. Era o que eu queria falar. Era o que eu não parava de pensar, com ódio, com raiva. Estão felizes em ver ela assim? Morta? Né? Acabou! Veio ter a prova de que esse foi realmente o fim, né, sua galinha desgraçada? Mas a norma social me fazia ficar ali, no cantinho, com os pensamentos pra mim. Observando, contendo minha raiva, chorando, ficando ao lado do caixão com esse fantasma maldito do luto do lado.
Sei que em determinada hora, acho que foi quando o caixão abriu, eu dissociei, como se meu cérebro quisesse me acordar do pesadelo dizendo esse é só mais um sonho daqueles, ACORDA AGORA, vai dar bom dia para sua vó e tomar suco de laranja com ela. Mas não era mais um sonho daqueles e meu cérebro compartilhava comigo a frustração de não conseguir acordar, de não conseguir fugir daquele dia onze interminável, nem tampouco daquela segunda-feira doze maldita. Alguém me abraçou, segurou meus braços e me tirou de estar debruçado ali do caixão. Eu queria gritar para que me deixassem ali. Eu não queria ser salvo, eu não queria ser tirado dali, pelo amor de Deus, me deixa ficar aqui, me deixa tentar dissociar até que eu acorde, até que eu consiga sair desse pesadelo. Eu já saí outras vezes, eu já manipulei meu sonho outras vezes, vou conseguir de novo. Me deixa aqui. Mais alguns minutos e eu consigo. Sempre demorou, mas eu sempre consegui. Me deixa, me deixa, me solta, para de me afastar desse pedaço de carne em decomposição que horas atrás era minha vó que estava abraçada comigo, bebendo e comendo bolo de chocolate. Me deixa, caralho. Me solta. Eu não consegui dizer nada e fui só levado. Eu sequer consegui pensar tudo isso assim, em palavras.
Ali, eu era um amontoado de sentimentos que nunca me ensinaram a sentir debruçado em um amontoado de carne em decomposição que outrora fora minha avó.
O resto do dia transcorreu com eu fugindo dos seus abraços, luto. Cada pessoa que vinha me abraçar desejando força, paz do senhor ou força no meu coração me faziam sentir a bile na garganta. Sim, quase vomitei na cara de cada pessoa que, com mais boa vontade que tivesse, vinha me desejar seus sentimentos ou forças. Eu não queria seus sentimentos, já estou repleto dos meus. Guarde o seu para você e me deixa aqui, definhar até quem sabe morrer junto. Não quero saber de deus, de jesus que habita meu peito, de nada disso. Se existisse de fato um outro plano, a gente já saberia. Acabou aqui. Minha vó morreu. Seu cérebro simplesmente decidiu que era hora de parar, os órgãos pararam junto e agora resolveram que não deveriam mais funcionar e sim, comê-la de dentro pra fora até que nada mais se reste.
Não tem lado de lá. Parem de me abraçar. O único abraço que eu quero ter agora é o único que não posso ter. Seu abraço nojento só me lembra desse maldito luto, desse maldito fantasma, dessa maldita sombra que vai me acompanhar pro resto dos meus dias para me lembrar que minha vó não vai ver eu terminar uma nova faculdade, que ela não vai estar no meu casamento, na festa de um ano do meu filho e nem vai conhecer minha primeira casa própria. Não vai. Nem do plano de lá porque simplesmente isso não existe. É fábula para consolar quem fica. Nós. Os vivos com um fantasma pesado e insuportável do luto.
E você sabe que é maldoso, querido luto. Mais maldoso que a própria morte. Você faz aquele primo meu que eu não falo há anos, que eu amava falar mal com a minha vó, esquecer nossas diferenças ao lado do caixão e vir me abraçar desejando força e pêsames. Para o caralho com seus sentimentos. Você não sabe o que estou sentindo porque no segundo seguinte, você está fora da capela, ABRAÇANDO A SUA VÓ, VIVA, ALI, DO SEU LADO, CONVERSANDO. Eu sei que você pensa: coitado do Gabriel, ele não pode mais fazer isso, mas, que bom que eu posso. Antes ele do que eu. Antes a vó dele do que a minha.
Eu sei que você pensou isso. Eu mesmo já pensei isso em outros velórios: que pena, perdeu a pessoa. Mas que bom que eu não perdi ninguém e posso ir embora desse pesadelo de energia densa para o abraço daqueles que eu amo.
Até que eu não pude ir embora mais.
E todo dia pra mim é o mesmo dia. A maldita segunda-feira 12. Ou a maldita noite de domingo, dia 11.
o processo de luto é muito peculiar. me pego várias vezes fazendo planos sem lembrar que minha vó se foi. em outros momentos, escuto a ligação da minha mãe me dando a notícia e o ar sumindo. de vez em quando parece que não tem mais ar pra respirar. e depois passa.
biel, a vokinha morreu. infartou.
depois vem a saudade boa. as lembranças boas. e então, parece que o ar vai faltar novamente. o ar parece que não preenche os pulmões. e eu volto pro início desse ciclo. eu sempre soube. mas jamais estaria preparado.
Leia ouvindo: Oceano, Mc Tha
tem horas que a saudade aperta tanto que não dá pra respirar. é engraçado porque moro longe da minha vó há alguns anos. mas, agora saber que nunca mais vamos nos ver nessa vida é sufocante, torturante.
em horas que estou distraído e penso: meu deus, preciso comprar uma caixa de skol beats para o natal. aí lembro que não preciso de uma caixa esse ano. minha vó não vai estar lá pra beber igual água comigo e sozinho não bebo tanto.
essa lembrança que assombra da ligação da minha mãe me dando a notícia é a pior. é ainda pior que entrar naquela sala minúscula do iml pra reconhecer o corpo. é ainda pior que ver que sim, era minha vó ali. ainda quente com as bochechas coradas.
biel, a vokinha morreu. infartou.
só não é pior que perceber a impotência e a impermanência da vida. ali, não tinha nada que pudesse ser feito. nenhum dinheiro no mundo, nenhum querer no universo, nenhuma simpatia, magia, misticismo ou medicina poderiam reverter.
a hora tinha chego. o meu ar tinha ido. e o apesar de pesava. pesava muito. o ar pesava muito. parecia chumbo nos pulmões. e o sangue ainda corria. não podia ser um engano? médicos também se enganam. ninguém morre assim, né? do nada. sem reanimar. sem nada.
como que pode isso? como que pode não ter nada na medicina que possa ser feito? tanta tecnologia, tantos anos de estudo e nada pode ser feito? eu tenho que aceitar? como se aceita o inaceitável? como se aceita o peso da ausência física eterna?
como se aceita o entender que minha vó nunca mais veria eu me formar. eu ter um filho. eu envelhecer. como se aceita o conformar de que eu nunca mais vou comer aquele frango frito que só ela fazia? como substituo os verbos no presente pelos verbos no passado?
como deixar algo no passado que eu quero que faça parte do meu presente e do meu futuro? como? como existir em um mundo onde não se existe mais? onde nunca mais poderemos rir, fazer planos e até se desentender, brigar?
como existir sem a existência física? como respirar esse ar pesado, irrespirável, sufocante? eu não sei.
esqueci como respira.
por enquanto, vou tentar me lembrar como se respira.
Eu nunca contei a história de quando eu terminei com você. De quando eu senti, dentro de mim que tudo tinha chegado ao fim. Quando eu decidi botar um ponto final. Quando eu senti que, se transformasse o ponto final em ponto e vírgula, eu me sentiria aprisionado, murcho, triste.
Leia ouvindo: Babe, Taylor Swift (Taylor’s Version)
Era um dia ensolarado de julho, um feriado. Minha mãe me convidou para ir para a praia, onde nasci e cresci. Eu te convidei para ir junto, mesmo a gente não se falando tanto. Estávamos em um ciclo vicioso de brigas, silêncios, vácuos, espaçamentos. Mas, chamei. Minha mãe tinha te chamado também e ela nunca tinha feito isso. Você ficou feliz e eu também fiquei.
Fomos todos de carro até a praia mais importante da minha infância. Eu, você, minha mãe. Sentamos ali na areia na cadeira de praia e conversávamos sobre a vida enquanto minha mãe comentava sobre o divórcio dela. Eu estava de coturno na praia. Eu odiava como a areia entrava no vão dos meus dedos do pé. Você, dizia que isso era ridículo. Minha mãe concordava, rindo. Eu não estava nem aí.
Saímos para comprar protetor solar, para comprar sorvete, para tirar fotos… Voltamos. Ainda havia hostilidade nos nossos diálogos. Como um quebra-cabeças que luta para dar certo na peça errada. Parecia que estávamos forçando a barra.
Sentei ali, quieto e abri meu Instagram. Vi que um amigo meu estava vindo para a praia com o namorado dele. Não era a mesma praia que a nossa, mas eles pareciam felizes com o sol e com o vento na cara enquanto passavam pela serra quente. Eu queria sentir aquela felicidade ali com você mas não tinha como forçar. Abri outro vídeo, e outro amigo estava também com seu namorado na praia. Amigo esse que já fora meu ficante um dia e que terminei tudo para ficar com você. Poderia ser eu ali com ele. Poderia ser eu sentindo aquela felicidade que o namorado dele agora sente no banco do passageiro.
Mas estou com você nessa luta de tentar encaixar peças que não servem juntas. E não estou com aquele sorriso no rosto. Droga, será que escolhi a pessoa errada?
Já é fim de tarde e o sol começa a abaixar quando resolvemos ir embora da praia. Vamos dar uma volta no centro da cidade e voltar para a vida normal. Lá, você tenta agradar minha mãe, mas fala mal de mim com ela. Você não entende que ela pode falar mal de mim mas você não pode concordar? Você não entende que ela quer te ver ao meu favor e não contra mim? Não é assim que você vai ganhar.
Você parece arrogante. Superior. Minha mãe tem umas falas doidas, a gente sabe, mas não é pra você falar com ela assim. Eu sinto que tem algo apagado dentro de mim quando diz respeito a você, mas ainda não tenho coragem de jogar fora. Não sei como jogar fora.
Entramos no carro para pegar a estrada de volta e eu vou olhar para a janela, como sempre faço em viagens longas. Quando passamos naquela avenida da praia que tanto amo, vejo meu amigo saindo do shopping com o namorado. Os braços dele estão passados por cima do ombro do garoto e eles parecem rir, gargalhar como se o mundo fosse apenas um plano de fundo para um roteiro incrível que acontece ali, entre os dois. Poderia ser eu com as mãos dele em cima dos meus ombros. Poderia ser eu, ali, naquela trama, rindo como se não houvesse ninguém em volta.
Paramos no sinal e observo aquela cena. Olho para o terraço do shopping que dá para a praia e vejo os outros dois, que mais cedo vi no Instagram. Como que pode? Eles sequer se conhecem e estão no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Um deles estica o braço para tirar uma selfie dos dois com a praia de fundo. Ali, não poderia ser eu. Éramos apenas amigos. Mas não consigo deixar de imaginar que poderíamos ser nós.
Eu não sei em que ponto o quebra-cabeças se tornou impossível de ser montado, mas ali, vendo aquela selfie, aqueles braços sobre o ombro, as gargalhadas, eu tive certeza que poderia ser eu, mas nunca poderíamos ser nós porque eu não queria mais montar esse jogo com você.
Seguimos viagem e o sol estava se pondo quando estávamos passando pela serra. Nesse dia ele demorou. Teve um eclipse no meio do caminho que fotografei tão ávido. Lembra de quando você me deixou sozinho no eclipse pra conversar com outro menino? Não, mas eu lembro. O sol se abaixava na linha do horizonte enquanto eu pensava repetidamente:
Poderia ser eu sorrindo naquele carro. Poderia ser eu com os braços no ombro. Poderia ser eu naquela selfie no terraço. Poderia ser eu, feliz na cidade que amo. Poderia ser eu sem coturno na praia não me importando com a areia no vão dos meus dedos. Poderia ser eu com alguém que minha mãe gostasse genuinamente. Poderia ser eu com alguém que eu não precise lutar, que eu não precise me afirmar todas as horas. Eu poderia ser eu se não fosse por você.
Não me entenda mal. Eu gostava de verdade de você, apesar de achar que a recíproca nunca foi verdadeira. Era eu. Poderia ser eu em todos os cenários, mas em nenhum deles poderia ser você.
E quando o sol se pôs e o dia se fez noite, eu tive certeza de que não havia mais nenhum motivo pelo qual eu devia estar com você. Quando o sol se pôs, você perdeu a minha versão que ninguém nunca teve. E que bom que ninguém nunca teve porque em todos os cenários que imaginei, nunca poderia ser você.
Nunca poderia ser você porque eu não me orgulho da versão que eu era de mim mesmo quando estava com você. Eu não era eu.
Frequentemente eu me questiono se alguma coisa entre nós dois foi real em algum dia, em alguma hora ou em algum milésimo de segundo que seja. Parece que escrevo um romance do tipo “será que você algum dia me amou de verdade?” mas a realidade é que questiono tudo: a parte boa e as partes ruins. Sério? Eu não consigo acreditar que isso pode ter sido real agora, com 25. Mas, quando vejo meus olhos com 17, vejo tanto brilho. Eu acreditava naquela época. Como você teve coragem? Como as coisas mudaram tanto? Como a gente mudou tanto?
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Eu chamava isso de amor, mas você nunca deu nome aos bois. Cara, como eu era ingênuo. Que ódio. Como eu te aguentava? Como eu suportava cada vez que você ignorava minhas playlists mas ouvia a do menino ao lado? Como eu conseguia relevar todas as vezes que você soltava minha mão para segurar a dele? É, eu era um babaca abusivo ciumento. Você me guardava como se eu fosse um segredo, o maior segredo da sua vida, enquanto eu… ah, eu te guardava como se fosse uma pérola. E seu egozinho inflado amava, né? Saco.
Eu sinto raiva agora enquanto questiono se alguma coisa entre nós foi real, mas eu sei perdoar e entender a pessoa que fui. Mas você sempre foi casualmente cruel em nome da honestidade. A verdade é que sua honestidade era a crueldade. E eu? Eu era seu segredinho perverso que só servia como a porra de um pedaço de carne que você até gosta do sabor, mas que não vale a pena oferecer para a visita. Para as visitas, a gente compra algo melhor. Para a família então… Melhor comer fora, né?
Eu lembro de tudo, mas questiono minha memória. Será que isso foi real? Será que todas as vezes que você olhou nos meus olhos e disse que eu era a melhor coisa que tinha acontecido na sua vida algo passava perto da verdade? Será que todas as vezes que você olhou ao seu redor e viu que eu não estava ali, você sentiu minha falta? Ou será que você só sentiu falta da constante aprovação que eu te dava? Porque convenhamos, a gente sabe que eu não tinha a autoestima das melhores, nem você, mas eu te dava o que restava da minha. E você sugava até o último talo. Até a última mísera gota da minha alma.
É, eu sou legalmente obrigado a fazer terapia porque sou terapeuta mas, quando me perguntam o que me levou pra lá, eu poderia dizer que é você. Isso até inflaria seu ego. Mas a real é que o que me levou até aquela porta branca do consultório seis foram os machucados que você deixou para trás quando você explodia. Você foi uma bomba atômica e eu o território que te recebeu.
E ainda questiono? Será que tudo isso foi real? Será que você foi tão ruim assim? Será que não é minha mente abusando? Será? A gente sempre tende a diminuir nossas experiências depois que elas passam, né? Será que você me deixou mesmo com vontade de chorar no momento mais importante da minha vida? Não, acho que eu era muito emotivo e imaturo emocionalmente. Será que você se sentiu mal por mim quando eu fui promovido para o cargo que eu mais queria no mundo mesmo? Não, era só um dia ruim, né?
Será que todas as vezes que você não quis trabalhar, você estava realmente indisposto? Ou será que você só queria boicotar a minha felicidade da mesma forma que você acha que boicotei a sua quando você não foi embora para a faculdade que queria? Eu sei que você diz que nunca foi por mim, mas a verdade é que você não foi por você. Assuma os riscos das suas escolhas e consequências.
Mas, será que tudo isso foi real mesmo? Todas as vezes que você pegou minha mão em público e disse que éramos nós dois contra o mundo e que você era minha família? Será que foi real mesmo quando você simplesmente cuspiu na minha cara? Será que foi real mesmo quando sua família me ameaçou e você não fez porra nenhuma?
Afinal, a culpa sempre foi minha, né? Eu era livre demais. Eu usava piercing e nunca iam aprovar meu piercing. Chega a ser patético, né? Considerando que o problema “nunca foi” sua sexualidade. Será que foi verdade mesmo quando você me levou pra outra cidade pra boicotar a porra da única festa de aniversário que tive com amigos na minha vida? Não, acho que eu quis ir junto.
Eu sei que você guardou aqueles meus dois casacos. Eu sei que eles ainda cheiravam a mim e te lembravam de inocência, dos meus olhos grandes e brilhosos. Eu sei que você tenta desesperadamente caber dentro deles. Será que isso também foi real?