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Campinas terá Laboratórios de Leitura dedicados à obra de Guimarães Rosa em março
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Campinas terá Laboratórios de Leitura dedicados à obra de Guimarães Rosa em março

Criado para ser um espaço de troca e reflexão para quem deseja um respiro em meio à loucura da vida contemporânea, os Laboratórios de Leitura permitem, por meio de leituras compartilhadas, a discussão de temas que tocam aspectos fundamentais da existência humana. Em um processo de espelhamento com as narrativas e seus personagens, o participante do Laboratório de Leitura tem a oportunidade de se perceber no texto literário, de rever e ampliar a maneira como vê o mundo, o outro e a si mesmo, tendo a literatura como um meio poderoso de conhecimento do humano e, portanto, de autoconhecimento.

Além de vivenciar um processo profundo de reflexão e autoconhecimento, o participante exercitará sua capacidade de leitura, o que o tornará não apenas um leitor interessado por livros, mas um ser humano capaz de ler um texto de forma profunda e aprimorada. Com o aprimoramento das suas percepções de leitura e com as trocas em grupo, será capaz de atingir as diversas camadas de um texto literário e encontrará o intercâmbio existente entre a leitura e a vida.

“Muito mais do que conversar sobre o livro em si, o Laboratório de Leitura oferece um espaço de autoconhecimento por meio do texto literário discutido. As histórias são lidas em forma de espelhamento e os encontros permitem conversas transformadoras, descobertas e insights profundos, facilitados pela metodologia e dinâmica sempre acolhedora e presentes nos encontros.” Raïssa Lettiére

Amante, defensora e profissional do livro há mais de 20 anos, Raïssa Lettiére irá ministrar no mês de março, na cidade de Campinas, dois Laboratórios de Leitura a partir de livros de Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros do século XX.

O primeiro Laboratório de Leitura acontecerá nos dias 7 e 21 de março, das 15 às 16h30, na Livraria Candeeiro, e é intitulado “Autoconhecimento por meio da literatura”. Nele, o texto trabalhado será “A terceira margem do rio”, publicado por Guimarães Rosa no livro “Primeiras estórias”. Este conto é um dos mais belos da literatura brasileira. Rico, profundo, inquietante, impacta o leitor em busca de uma compreensão maior que extrapola as palavras. O texto, criado em primeira pessoa, é narrado pelo filho de um homem que decide abandonar a família e toda a sociedade para viver dentro de uma pequena canoa num imenso rio. A prosa contida no conto permite discussões sobre dilemas da existência humana, sobre o que buscamos e o que verdadeiramente encontramos ao longo da vida.

Outro Laboratório de Leitura será realizado de forma virtual, visando também acolher pessoas de outras regiões. Neste LabLei, o livro destacado para leitura será “Manuelzão e Miguilim”, obra que teve origem na junção de duas novelas: “Campo Geral” e “Uma Estória de Amor”. O romance “Manuelzão e Miguilim” é organizado segundo as experiências do menino Miguilim, que observa as pessoas e as coisas situadas em seu universo sertanejo, e de Manuelzão, vaqueiro sofrido que percebe sua solidão na velhice. Os encontros acontecerão online, através da plataforma zoom, nos dias 18 e 25 de março.

“Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros, toca, em sua obra, dimensões elevadas do humano e explora complexidades da existência de forma poética e absurdamente profunda. Suas narrativas provocam um enorme deslumbramento, um encanto pela vida e uma descoberta de outras vidas a serem desbravadas, à procura do humano. Entrar em contato com sua obra literária é encontrar o que há de mais sublime nos livros: nossa alma!” Raïssa Lettiére

Raïssa Lettiére, além de coordenar Laboratórios de Leitura e ser editora do Grupo Editorial Record, também é escritora. Lançou “Das folhas que resistem” (2021 – Biblioteca Azul)) e “O cochilo de Deus” (2024 – Faria e Silva).

Ilustração de Poty Lazzarotto
Livros

Análise: Sagarana, de Guimarães Rosa

O autor de Sagarana (1946), João Guimarães Rosa (1908-1967), foi um dos maiores escritores da literatura brasileira. Não só escritor, mas sim prosador, isto é, um contador de histórias. Quando leio seus contos, imagino alguém me convidando a prestar muita atenção porque lá vem uma história que une fantasia e realidade e que, mesmo que mítica, não posso deixar de crer nela.

Guimarães Rosa era assim. Sua linguagem única, a ambientação sertaneja e suas histórias cativam gerações. Em 1967, três dias após a morte de Guimarães, Carlos Drummond de Andrade escreveu:

Guimarães Rosa

João era fabulista
fabuloso
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

“Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?”

No poema Um chamado João, Drummond colocou a essência do autor. Classificado cronologicamente como um autor da 3ª geração modernista, para mim Rosa é a união perfeita das duas gerações anteriores do movimento. Isso porque ele une a invenção na linguagem com as preocupações regionais da 2ª geração (representada por autores como Graciliano Ramos e Jorge Amado).

Em 1930, Guimarães foi médico na cidade de Itaguara, interior de Minas Gerais. Lá, teve contado com a ambientação que trará para suas obras: as cores do interior, sua natureza, povo, lendas, modos de vida e linguagem. Numa entrevista, o autor reconheceu que trouxe para a literatura suas experiências profissionais:

Sim, fui médico, rebelde, soldado. […] Como médico, conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte. […] Também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas.

NOVAS MANEIRAS DE SENTIR E DE PENSAR

Ilustração de Poty Lazzarotto

Com relação aos idiomas, Guimarães se mostrava um mestre: ele conhecia mais de 24 línguas. Só quem conhece tanto sobre um idioma, pode se propor a desconstruí-lo como o autor fez. Sua linguagem única é reconhecível à primeira vista. Repleta de figuras de linguagem como neologismos, aliterações, assonâncias, metáforas, hipérbatos – é uma prosa pra ser declamada, possui ritmo, cadência – configura-se, assim, como uma prosa poética.

A opção por este tipo de expressão não era ao acaso. Ela tinha a função de desestabilizar o leitor, retirá-lo da apatia, do lugar-comum, da prosa fácil de entretenimento. A obra de Guimarães é para ser desvendada e admirada em toda sua beleza.

Mas, o mais importante sempre, é fugirmos das formas estáticas, […] inertes, estereotipadas, lugares comuns etc. […] Não procuro uma linguagem transparente. Ao contrário, o leitor tem de ser chocado, despertado de sua inércia mental, da preguiça e dos hábitos. Tem de tomar consciência viva do estrito, a todo momento. Tem quase de aprender novas maneiras de sentir e de pensar. […] Não a clareza – mas a poesia, a obscuridade do mistério, que é o mundo. E é nos detalhes , aparentemente, sem importância, que estes efeitos se obtêm. A maneira de dizer tem de funcionar, a mais, por si. O ritmo, a rima, as aliterações ou assonâncias, a música subjacente ao sentido – valem para maior expressividade.

Esta linguagem não está presente apenas em Sagarana, mas também em suas outras obras como Corpo de Baile (1956) e sua obra mais conhecida Grande Sertão: veredas (1956).

GRAÇAS A DEUS, TUDO É MISTÉRIO

A obra aqui analisada reúne 9 histórias nas quais estão presentes os temas básicos de Guimarães: a aventura, a morte, os animais personificados, as reflexões filosóficas e existenciais, bem x mal, religião, mitos/lendas/ditos do sertão.

O nome é composto pela junção de dois radicais: saga (narrativa ou história lendária) + rana (do tupi: espécie de). As histórias presentes no livro são contos ou novelas (há quem defenda as duas nomenclaturas, porém, o próprio autor as chamava de novelas):

Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de novelas. E – sendo meu – uma série de Histórias adultas da Carochinha.

É totalmente significativo o fato de Rosa chamar as narrativas como Histórias adultas da carochinha, já que nelas encontramos vários elementos da cultura popular (ditados, cantigas, lendas, fábulas) + o mito + uma linguagem que se assemelha à fala mineira. Tudo isso organizado pela poesia da sua escrita.

As histórias unem o mundo interior das personagens e coloca a natureza como uma extensão desse mundo. Ainda que o texto seja chamado de regional por alguns (por ser ambientado em Minas), a obra configura o que chamamos de regionalismo universalizante, já que traz reflexões sobre a existência humana que é comum a todxs. Como o próprio Guimarães escreveu em Grande Sertão:

O sertão é o mundo.

CADA UM TEM A SUA HORA E A SUA VEZ: VOCÊ HÁ DE TER A SUA

Ilustração de Poty Lazzarotto

Tentarei fazer aqui uma divisão temática dos contos e, logo em seguida, vamos analisar mais profundamente a última história da coletânea: A hora e a vez de Augusto Matraga.

  • Personificação das personagens animais: O burrinho pedrês Conversa de bois;
  • Epifania e crescimento das personagens: O burrinho pedrêsA hora e a vez de Augusto MatragaCorpo fechado, São Marcos Duelo;
  • Representação dos tipos que compõem o interior: Minha gente A volta do marido pródigo;
  • Natureza personificada: Sarapalha São Marcos.

A primeira (O burrinho) e a última (A hora e a vez) histórias do livro formam em si um clico, já que ambas apresentam a jornada do herói rumo ao (re)conhecimento de si mesmo.

Augusto Matraga conta a história de Augusto Esteves:

Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, da Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto – o homem – nessa noitinha de novena, num leilão de atrás da igreja, no arraial da Virgem nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.

No primeiro momento, Matraga é o mal personificado. Egoísta e tirano, sua vida irá mudar repentinamente quando a mulher (levando a filha) irá embora com outro homem, seus capangas o deixam para trabalhar para o coronel da fazenda ao lado e, por fim, é espancado pelos homens deste mesmo coronel. O narrador onisciente se intromete na narrativa para fazer um comentário a respeito de Nhô Augusto:

Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar fazendo umas férias na vida […] Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar o gasto, desembesta até ao fim. E, desse jeito, achou que não era hora para ponderados pensamentos.

“Nhô Augusto era couro ainda por curtir”, ou seja, ele terá que passar por todo processo de redenção para encontrar seu caminho neste mundo. Após este contratempo, ele irá ser resgatado por um casal de velhos que cuidará de suas feridas. Quando recuperado, eles partem para um lugar longe onde Nhô-Augusto não pode ser reconhecido.

Neste segundo momento, a personagem tenta se redimir a todo custo. Trabalha o dia todo, não fuma, não bebe, não faz sexo, apenas existe para ajudar ao próximo. Até que aparece um dia o cangaceiro Seu Joãozinho Bem-Bem provoca em Augusto os desejos já adormecidos. Não querendo voltar à sua vida anterior e não conseguindo mais suportar sua vida atual, Matraga parte como um messias, montado em um burrinho, deixando o animal escolher seus caminhos.

Como se estivesse predestinado a este terceiro momento, Matraga encontra novamente Seu Joãozinho e morre em duelo com este, salvando, assim, uma família que estava prestes a ser morta pelo cangaceiro.

A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis à boca-do-estômago, e um mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre, enquanto seu Joãozinho Bem-Bem caía ajoelhado, recolhendo os seus recheios nas mãos.

A novela trabalha constantemente a luta entre o bem x o mal. Seja uma luta exterior ou dentro do próprio Augusto. Interessante também notar como a hora e a vez desta personagem não se dá pelo recolhimento e pela pacificidade, mas sim, quando Matraga se entrega aos seus instintos. A redenção de Matraga é feita pela violência.

 

Espero que tenha se interessado pelo autor e pela sua obra. Termino aqui com mais um trechinho do poema de Drummond que acredito mostrar o encatamento que Guimarães Rosa produz em seus leitores:

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.