Ilustração de Poty Lazzarotto
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Análise: Sagarana, de Guimarães Rosa

O autor de Sagarana (1946), João Guimarães Rosa (1908-1967), foi um dos maiores escritores da literatura brasileira. Não só escritor, mas sim prosador, isto é, um contador de histórias. Quando leio seus contos, imagino alguém me convidando a prestar muita atenção porque lá vem uma história que une fantasia e realidade e que, mesmo que mítica, não posso deixar de crer nela.

Guimarães Rosa era assim. Sua linguagem única, a ambientação sertaneja e suas histórias cativam gerações. Em 1967, três dias após a morte de Guimarães, Carlos Drummond de Andrade escreveu:

Guimarães Rosa

João era fabulista
fabuloso
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

“Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?”

No poema Um chamado João, Drummond colocou a essência do autor. Classificado cronologicamente como um autor da 3ª geração modernista, para mim Rosa é a união perfeita das duas gerações anteriores do movimento. Isso porque ele une a invenção na linguagem com as preocupações regionais da 2ª geração (representada por autores como Graciliano Ramos e Jorge Amado).

Em 1930, Guimarães foi médico na cidade de Itaguara, interior de Minas Gerais. Lá, teve contado com a ambientação que trará para suas obras: as cores do interior, sua natureza, povo, lendas, modos de vida e linguagem. Numa entrevista, o autor reconheceu que trouxe para a literatura suas experiências profissionais:

Sim, fui médico, rebelde, soldado. […] Como médico, conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte. […] Também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idiomas.

NOVAS MANEIRAS DE SENTIR E DE PENSAR

Ilustração de Poty Lazzarotto

Com relação aos idiomas, Guimarães se mostrava um mestre: ele conhecia mais de 24 línguas. Só quem conhece tanto sobre um idioma, pode se propor a desconstruí-lo como o autor fez. Sua linguagem única é reconhecível à primeira vista. Repleta de figuras de linguagem como neologismos, aliterações, assonâncias, metáforas, hipérbatos – é uma prosa pra ser declamada, possui ritmo, cadência – configura-se, assim, como uma prosa poética.

A opção por este tipo de expressão não era ao acaso. Ela tinha a função de desestabilizar o leitor, retirá-lo da apatia, do lugar-comum, da prosa fácil de entretenimento. A obra de Guimarães é para ser desvendada e admirada em toda sua beleza.

Mas, o mais importante sempre, é fugirmos das formas estáticas, […] inertes, estereotipadas, lugares comuns etc. […] Não procuro uma linguagem transparente. Ao contrário, o leitor tem de ser chocado, despertado de sua inércia mental, da preguiça e dos hábitos. Tem de tomar consciência viva do estrito, a todo momento. Tem quase de aprender novas maneiras de sentir e de pensar. […] Não a clareza – mas a poesia, a obscuridade do mistério, que é o mundo. E é nos detalhes , aparentemente, sem importância, que estes efeitos se obtêm. A maneira de dizer tem de funcionar, a mais, por si. O ritmo, a rima, as aliterações ou assonâncias, a música subjacente ao sentido – valem para maior expressividade.

Esta linguagem não está presente apenas em Sagarana, mas também em suas outras obras como Corpo de Baile (1956) e sua obra mais conhecida Grande Sertão: veredas (1956).

GRAÇAS A DEUS, TUDO É MISTÉRIO

A obra aqui analisada reúne 9 histórias nas quais estão presentes os temas básicos de Guimarães: a aventura, a morte, os animais personificados, as reflexões filosóficas e existenciais, bem x mal, religião, mitos/lendas/ditos do sertão.

O nome é composto pela junção de dois radicais: saga (narrativa ou história lendária) + rana (do tupi: espécie de). As histórias presentes no livro são contos ou novelas (há quem defenda as duas nomenclaturas, porém, o próprio autor as chamava de novelas):

Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de novelas. E – sendo meu – uma série de Histórias adultas da Carochinha.

É totalmente significativo o fato de Rosa chamar as narrativas como Histórias adultas da carochinha, já que nelas encontramos vários elementos da cultura popular (ditados, cantigas, lendas, fábulas) + o mito + uma linguagem que se assemelha à fala mineira. Tudo isso organizado pela poesia da sua escrita.

As histórias unem o mundo interior das personagens e coloca a natureza como uma extensão desse mundo. Ainda que o texto seja chamado de regional por alguns (por ser ambientado em Minas), a obra configura o que chamamos de regionalismo universalizante, já que traz reflexões sobre a existência humana que é comum a todxs. Como o próprio Guimarães escreveu em Grande Sertão:

O sertão é o mundo.

CADA UM TEM A SUA HORA E A SUA VEZ: VOCÊ HÁ DE TER A SUA

Ilustração de Poty Lazzarotto

Tentarei fazer aqui uma divisão temática dos contos e, logo em seguida, vamos analisar mais profundamente a última história da coletânea: A hora e a vez de Augusto Matraga.

  • Personificação das personagens animais: O burrinho pedrês Conversa de bois;
  • Epifania e crescimento das personagens: O burrinho pedrêsA hora e a vez de Augusto MatragaCorpo fechado, São Marcos Duelo;
  • Representação dos tipos que compõem o interior: Minha gente A volta do marido pródigo;
  • Natureza personificada: Sarapalha São Marcos.

A primeira (O burrinho) e a última (A hora e a vez) histórias do livro formam em si um clico, já que ambas apresentam a jornada do herói rumo ao (re)conhecimento de si mesmo.

Augusto Matraga conta a história de Augusto Esteves:

Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, da Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto – o homem – nessa noitinha de novena, num leilão de atrás da igreja, no arraial da Virgem nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici.

No primeiro momento, Matraga é o mal personificado. Egoísta e tirano, sua vida irá mudar repentinamente quando a mulher (levando a filha) irá embora com outro homem, seus capangas o deixam para trabalhar para o coronel da fazenda ao lado e, por fim, é espancado pelos homens deste mesmo coronel. O narrador onisciente se intromete na narrativa para fazer um comentário a respeito de Nhô Augusto:

Assim, quase qualquer um capiau outro, sem ser Augusto Estêves, naqueles dois contratempos teria percebido a chegada do azar, da unhaca, e passaria umas rodadas sem jogar fazendo umas férias na vida […] Mas Nhô Augusto era couro ainda por curtir, e para quem não sai, em tempo, de cima da linha, até apito de trem é mau agouro. Demais, quando um tem que pagar o gasto, desembesta até ao fim. E, desse jeito, achou que não era hora para ponderados pensamentos.

“Nhô Augusto era couro ainda por curtir”, ou seja, ele terá que passar por todo processo de redenção para encontrar seu caminho neste mundo. Após este contratempo, ele irá ser resgatado por um casal de velhos que cuidará de suas feridas. Quando recuperado, eles partem para um lugar longe onde Nhô-Augusto não pode ser reconhecido.

Neste segundo momento, a personagem tenta se redimir a todo custo. Trabalha o dia todo, não fuma, não bebe, não faz sexo, apenas existe para ajudar ao próximo. Até que aparece um dia o cangaceiro Seu Joãozinho Bem-Bem provoca em Augusto os desejos já adormecidos. Não querendo voltar à sua vida anterior e não conseguindo mais suportar sua vida atual, Matraga parte como um messias, montado em um burrinho, deixando o animal escolher seus caminhos.

Como se estivesse predestinado a este terceiro momento, Matraga encontra novamente Seu Joãozinho e morre em duelo com este, salvando, assim, uma família que estava prestes a ser morta pelo cangaceiro.

A lâmina de Nhô Augusto talhara de baixo para cima, do púbis à boca-do-estômago, e um mundo de cobras sangrentas saltou para o ar livre, enquanto seu Joãozinho Bem-Bem caía ajoelhado, recolhendo os seus recheios nas mãos.

A novela trabalha constantemente a luta entre o bem x o mal. Seja uma luta exterior ou dentro do próprio Augusto. Interessante também notar como a hora e a vez desta personagem não se dá pelo recolhimento e pela pacificidade, mas sim, quando Matraga se entrega aos seus instintos. A redenção de Matraga é feita pela violência.

 

Espero que tenha se interessado pelo autor e pela sua obra. Termino aqui com mais um trechinho do poema de Drummond que acredito mostrar o encatamento que Guimarães Rosa produz em seus leitores:

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.

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2 comentários

  • Responder Janeslei Aparecida Albuquerque 30/03/21 em 17:48

    Olá, gostaria de copiar esse texto e,como sempre, dando os devidos créditos, poder imprimir e trabalhar com meus alunos. O que tem de ser feito para ter acesso a ele? Vocês cobram por isso? Quanto?
    Obrigada.

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      Responder Gabu Camacho 08/04/21 em 23:45

      Olá! Pode utilizar com seus alunos dando os devidos créditos sim 🙂

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