Autorais

Crônica: A voz de Janaína

Um moço, muito amigo de um amigo meu, sempre contara que em seu tempo de pescador, ouvira, lá no mais escuro lugar do oceano, a voz de uma moça. “Se nem gaivota passava por riba de minha cabeça, aquilo só podia vir debaixo, lá do fundo, bem dentro do mar”, dizia o homem com medo e orgulho nos olhos. Orgulho por ter saído vivo de lá, medo por nunca ter voltado, ah, pensava muito em voltar o rapaz, mas junto a tantas declarações também dizia: “Quem me dera chegar lá de novo, mas não sei, José, não sei que lugar era aquele. Só lembro da voz de mulher, sabia mesmo que pela voz ela tinha pele escura, de carvão, sabia sim”. Esse homem morreu há alguns dias e fui ao seu enterro, junto ao amigo meu, centenas de pessoas, ele era popular, um nome conhecido na cidade. Todos ofereciam bom dia ao homem nas manhãs em que levantava teso ao sol para ir comprar pão, leite e cigarro. Tudo que poderia comprar na noite anterior, mas pela manhã é diferente, é a manhã. Nessas idas à mercearia, padaria e outros lugares, trombava com o ma chocando-se ao calçadão. Olhava para aquele amontoado de água e se perdia nos pensamentos. Sei de tudo isso por conta de meu amigo, que como disse, era muito amigo do falecido.

Hoje ele lamenta, em seu limitado caixão, em sua pouca morte, os tempos que não aproveitara, mas ainda diz, entre aqueles lábios frios e transformados em carniça por conta da doença que o levara, ainda fala com seu silêncio sobre a voz que ouvira. Fico surpreso como tudo isso me cerca em meio à tanta gente, olho para o morto, ele me olha com seus algodões e flores. As pessoas vão chegando e lotando o lugar, já não bastava o odor saindo do corpo, já não bastava essa morte inutilizada, enorme preguiça tenho para velórios, preguiça que chega a atingir ânsias de tão enfadonho que é essa coisa. Mais pessoas. Gente imprensando gente. A curiosidade só não mata ninguém hoje porque o cigarro já tomara conta do primeiro. Um senhor senta ao meu lado, ele e uma mulher. O homem do lado direito, a mulher ao meu lado esquerdo. Ela chega e já me pergunta o que está acontecendo. Como assim?

“Como assim o que está acontecendo?” Mas que mer…

“Ele morreu?” Continua com suas perguntas

“Não, não, está deitado, observando o teto. E essas pessoas aqui também vieram para admirar o teto, bonito não?”

Ela ergue a cabeça para encarar o teto. Ela está encarando o teto, meu santo deus. E nessa de ficar observando teto e mulher, acabo por ficar preso na segunda. Seus olhos são negros, assim como sua pele, escura como a minha. Olho bem no desenho de seu pescoço, pintura perfeita. Seu rosto se admira com cada pedaço do teto, enfim, quando ela realmente sentiu que o tempo me foi dado, voltou a tona:

“O que está acontecendo?” Me pergunta novamente com uma gentileza que poucas possuem. Gentileza de mãe.

Olho para o teto e sei bem o que está acontecendo, mas não preciso responder. Levanto-me, dou uma última olhada no caixão e saio da casa esgueirando-me entre as pessoas. A mulher vem logo atrás. Ando, e ando, faço todo o percurso que o falecido fazia, passo pela padaria, mercearia e enfim me dou admirando o mar. As palmeiras entrecortando a imagem perfeita idealizada por uma artista imenso, maior que todos os outros. A água vai e vem como um prelúdio, a água carrega todas minhas mágoas e medos, não posso ficar apenas observando, vou ao seu encontro. O primeiro pé, o primeiro toque e sinto a necessidade de me ajoelhar. Peço licença para adentrar em templo tão grandioso e vou, navego entre a água gelada que em instantes fica morna e reconfortante. Sinto-me em casa.

Bem atrás de mim, a mulher, seu vestido azul não é atingido pela água, seu semblante inerente a qualquer diversidade. Ela olha para mim, olho para ela e me perco no tempo e espaço, quando percebo estou no mais afastado lugar do mar, no fundo e vazio mar. A mão da mulher comanda meu destino dentro daquela vastidão de mar e confirmo, por fim, que estou mais vivo que nunca. Estou de volta ao lugar que sempre sonhei, lugar meu para ela, dela para seus filhos. Inaê se despede dançando entre as ondas, desponta para o fundo do mar, provocando alvoroço nos quatro cantos, luz que brilha nas noites sombrias, dona de meu barco, voz que canta a mais bela canção, Senhora das águas, senhora de mim.

Me sumo, entre ciranda e areia. Volto para meu lugar de rebento, não, eu não sou daqui. Eu sou de lá.

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