Críticas de Cinema

Crítica: O Menino e o Mundo (2013)

É incrível a capacidade de um filme mexer com a gente fisica, psicologica e sentimentalmente – isso é fato. Penso que não é requisito para uma obra ser considerada bem elaborada ter duração de 3 horas (ou mais), recortes no roteiro e um proposital rebuscamento no enredo visando dificultar a compreensão por parte do público. Pelo contrário, um filme é bem melhor aproveitado quando preenche os aspectos pensados pelo diretor/roteirista com as impressões de cada ser humano. E é assim que Alê Abreu, ilustrador e diretor paulista, nos apresenta a animação “O Menino e o Mundo”: uma tela, inicialmente branca, sendo preenchida por formas geométricas, desenhos e repetições que assemelham-se às imagens coloridas produzidas por um caleidoscópio.

O pensamento de que animações só servem para entretenimento infantil é descartado logo no início. Conhecemos um menino, que faz sua primeira aparição de forma bem caricata, correndo por paisagens, pulando sobre árvores e brincando em cima de uma nuvem. Ele chega até a simples casa onde mora e avista seu pai segurando uma mala, preparado para ir embora. A mãe e o pai do menino conversam, embora não consigamos compreender o que eles estão dizendo porque as falas das personagens foram gravadas no idioma português e depois invertidas – aspecto que comentarei posteriormente. O menino abraça o pai num terno momento, sendo a despedida marcada por uma canção que o pai toca numa flauta, transformando a melodia num dos pontos mais criativos da animação, pois até as notas musicais ganham visibilidade na tela, apresentando-se como bolhas coloridas que flutuam em direção ao céu. O trem chega e, prestes a partir o homem, parte toda a criação do cenário formado por traços que trazem à memória os rabiscos e desenhos que fazíamos quando crianças, sem muita perfeição mas com a estética própria de quem começa a dar os primeiros passos (de forma mais literal possível) para a expressão e compreensão de seus sentimentos.

Após a partida do pai, o menino começa a ter vislumbres da presença dele. A figura paterna mostra-se trabalhando com uma enxada – evidenciando a origem humilde da família e que o sustento deles vem da agricultura – e logo depois desaparece à vista do menino. Outros momentos de devaneio acontecem e esses são os ponta-pés iniciais para a evolução da personagem do menino que agora apresenta-se em estado triste e depressivo. O garoto, então, arruma uma mala e a única coisa que ele coloca dentro é uma foto de família, partindo logo em seguida. Nessa cena é importante destacar o efeito de transição que Alê Abreu usou para demonstrar a saída da inércia do menino, mudando todo o preenchimento colorido e nostálgico por imagens negativas do cenário em questão (o ponto do trem onde o menino viu o pai pela última vez) acrescidas de flashs dos últimos acontecimentos vividos pelo protagonista. Ao acordar, em outro cenário, o menino encontra-se na casa de um homem velho, de aparência cansada, que se veste para trabalhar. Ele junta-se a um pequeno cachorro enquanto o homem os carrega dentro de um carro de boi, dando início à jornada de trabalho árdua num algodoeiro onde muitos lavradores trabalham sincronizadamente.

A semente pra toda a crítica social presente na animação é a troca dos trabalhadores rurais por máquinas, resgatando o tema da industrialização tão conhecido por nós – dessa vez pela visão de uma criança – fazendo com que todos os homens perdessem seus empregos. Antes disso ser mostrado no filme, o menino presencia um patrão carrasco realizando uma vistoria nos empregados da lavoura e é interessante o fato de que o patrão é caracterizado como um personagem de filme de faroeste, tanto no figurino quanto em toda a sua violência ensaiada e artificial. O homem que o menino passa a acompanhar acaba por ser demitido de sua função e numa espetacular degradação do cenário de uma coloração amarelada à escuridão de uma tempestade tornamos-nos visualmente participantes da situação que o homem e o menino estão vivendo. Tendo passado pelo algodoeiro, o menino agora encontra-se numa fábrica de tecidos, onde vários operários trabalham sincronizadamente, destacando, assim como no algodoeiro, a rotina de trabalho extenuante de movimentos repetitivos a que todos aqueles homens estavam submetidos.

O menino passeia pelas ruas de ônibus, assiste a uma marcha policial acompanhada por tanques e máquinas de guerra e conhece a realidade da vida urbana. O aspecto visual da animação agora mistura os traços iniciais com colagens de revistas e anúncios, presentes até na favela que o menino adentra ao lado de um jovem que trabalha na fábrica, numa crítica à presença da publicidade em massa nas cidades, vendendo produtos e estilos de vida quando existem milhares de pessoas alheias à toda essa superficialidade, vivendo em pobreza e miséria.

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Como antes mencionado, as falas das personagens são incompreensíveis pelo espectador, mas nem isso consegue dificultar o entendimento do filme. Os responsáveis pela trilha sonora da animação, Ruben Feffer e Gustavo Kurlat, tiveram a preocupação de fazer com que todos os elementos do cenário tivessem voz, logo nos acostumamos com os sons dos animais, do vento e até dos passos do menino. O grupo de percussão corporal Barbatuques levam os créditos pelos sons criados exclusivamente para preencher a obra de Alê Abreu, que ainda conta com a composição “Aos olhos de uma criança”, do rapper Emicida, como música tema.

Aproximando-se do final temos uma das cenas mais impactantes, que delimita o clímax. Depois de ver e conhecer mais da realidade da cidade, é como se a mente do menino entrasse num estado de combustão. Nesse momento, a animação é destruída e em troca surgem imagens reais de queimadas, desmatamentos e poluição (lembrando cenas de documentários) acompanhadas por uma mistura de vozes que transmitem um aspecto agourento e desesperador. Voltando ao menino, sujo e ofegante, entendemos que toda a inocência inerente à criança de certa forma foi afetada, senão perdida, por todos os acontecimentos que se precederam, conectando a realidade do menino com a do jovem operário e a do homem velho do início. As duas personagens que acompanham o menino nas suas andanças têm bastante importância na história e guardam surpresas para os espectadores, como veremos na conclusão do filme.

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O filme, à medida que mostra uma criança avançando em rumo ao conhecimento externo, nos faz regressar à mente infantil que tínhamos antes, de questionar, de ter curiosidades, de se machucar e só depois sentir dor, de correr e não se cansar. Com um desfecho emocionante, “O Menino e o Mundo” é uma prova de que assuntos sérios podem ser tratados em um filme através das fantasias de uma criança mas, acima de tudo, prova que as produções brasileiras estão ganhando destaque internacionalmente, dando oportunidade a artistas como Alê Abreu de mostrarem a realidade sem estereótipos e preconceitos, o que, na minha opinião, já seria totalmente merecedor de um prêmio. Uma crítica social em forma de animação envolta por personagens e cenários de lápis de cor, giz de cera e colagens, é assim que eu o resumiria.

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