Se eu me perdi em outros lábios, foi pra te prender me odiando. Foi um grito, ainda te espero pra escrever latino-americano. Eu tento, mas nunca me lembro do que eu era antes de você….
– “:( (Nota De Voz 8)”, Jão
O ensino médio não é aquilo que a gente espera. Desde que comecei, quase dois anos atrás, minha vida virou de cabeça pra baixo. Me mudei para os dormitórios da escola. Sim, eu nem sabia que a escola tinha dormitórios. Eram pequenos apartamentos, em que eu era obrigado a dividir com mais dois meninos e mais três meninas. Cada um tinha seu quarto, mas as áreas comuns eram um verdadeiro inferno.
Prazer, me chamo Filipe. Moro com Marcela, Ariana e Yuko, três meninas da minha sala e com João e Guilherme, dois meninos do terceiro ano. Marcela tem a minha idade, 17 anos, Ariana e Yuko devem estar perto dos 19. As duas começaram a namorar no final do primeiro ano e desde então viraram uma coisa só. Aparecem em casa só para dormir e de vez em quando, dar um oi para a gente. João tem 23 anos e está tentando a carreira de músico. Ele repetiu os últimos semestres por conta disso, e por isso ainda não conseguiu se formar. Ele começou a namorar recentemente com Guilherme, que deve ter uns 20. Não me dou muito bem com ele, nem Marcela. De família rica, seus pais já produziram shows de vários artistas famosos como Ivete Sangalo, RBD e Demi Lovato. Acho que ele usa isso para aproximar João dele.
– E aí, cóe a boa para o final de semana? – Marcela interrompeu meu diálogo interno, se sentando no sofá amarelo ao lado do meu. Cores da escola, que me dão nervoso.
– Nenhuma. Eu acho que quero ficar em casa mesmo. – Falei, olhando para as minhas mãos, torcendo para que ela não percebesse. Mas ela percebeu.
– Ihhh, tem coisa aí! Me conta! – Ela sorriu, se ajeitando no sofá e olhando para o meu rosto, se sentando em cima das próprias pernas cruzadas.
– Ah, não é nada…. – Hesitei, sentindo meu rosto arder. Droga, eu devia estar corando.
– Huuuum, você está vermelho. Desembucha! – Marcela era a minha melhor amiga. Na nossa situação atual, eu só podia confiar nela e ela em mim. O resto dos nossos amigos (ou parceiros de casa) estavam namorando entre si.
– Ontem o João chegou de um show, sozinho…. E eu estava acordado. – Comecei, com a voz baixa, mesmo sabendo que não tinha ninguém em casa além de nós dois.
– AI MEU PAI! E aí? – Ela gritou.
– Calma! – Eu ri. – Nós ficamos conversando sobre planos futuros, sobre a vida. A gente já fazia isso quase todo dia antes do… bom, antes do Guilherme e ele acontecerem, sabe… – Falei com dificuldade. Marcela olhou para mim desconfiada.
– Arrã.
– Ontem ele dormiu, no meu colo. Eu estava fazendo cafuné no cabelo dele. – Falei rápido demais, me arrependendo logo em seguida. Agora que eu tinha falado em voz alta, aquilo parecia mais real.
– JESUS, o Guilherme vai surtar se descobrir! – Ela mudou de postura. – Mas achei fofo, vocês combinam. – Ela sorriu.
– É, eu gosto dele, mas… – Comecei de novo, mas a porta de casa escancarou em um baque ensurdecedor.
– Ah, você está aí! – Era Guilherme, apontando para mim. Ele era magro, bem magro, daquele jeito feio. Muito alto, com cabelo espetado para cima, castanho claro e com luzes loiras na ponta. Muito branco. O tipo de pessoa que tinha tudo para ser bonita, mas por alguma ironia do destino saiu feia. Tremi. Marcela assumiu sua pose de pavão pronto para a briga. Ela era barraqueira.
– Que foi? – Consegui falar, baixo demais para o que eu queria.
– Como assim, o que foi? – Ele riu, irônico. – Fica longe do João, tá ouvindo? – Ele apontou o dedo para mim. – Eu vou dar um futuro pra ele como músico. Meus pais já estão tramando tudo. Além disso, a gente se ama. Não preciso de um pirralho no meu caminho.
– Pirralho? Se enxerga aí, Guilherme! – Marcela falou, rindo dele. – Se o Filipe é uma ameaça pra você, mesmo com tudo isso aí… – Ela gesticulou, se referindo a ele e suas posses milionárias que ele fazia questão de colocar em qualquer assunto que falasse. – Talvez não tenha tanto amor assim.
Nesse momento, eu vi seus olhos crescerem como fogo. Um lampejo de raiva passou pela sua face dura e eu podia jurar que ele ia avançar para cima de nós dois de uma vez só e dar uma surra. Mas não. Ele virou de costas e saiu, batendo a porta e os pés.
– Porra, o que o João vê nesse menino? – Desabafei, me sentando no sofá de novo, sem reparar que eu havia levantado.
– Interesseiro o João não é, tenho certeza. Mas eles fazem muito barulho de madrugada. – Marcela riu, mas o comentário dela me atingiu como uma faca na boca do estômago. Senti vontade de chorar, mas me limitei a levantar e ir para o meu quarto, enquanto Marcela foi para a cozinha, lavar a louça.
Peguei meu celular e liguei para a Ariana. Ela poderia me ajudar em uma coisa que eu precisava muito.
– Ari? Oi, sou eu. Filipe. – Falei, assim que ela atendeu no terceiro toque.
– Fala, Fi! Precisa de alguma coisa? – Sua voz estava preocupada. Eu nunca tinha ligado antes.
– Preciso saber se tudo o que o Guilherme fala que fez é verdade. Pode me ajudar? – Minha voz estava mais desesperada que eu gostaria. Mas sei que Ariana e Yuko eram um túmulo e sabiam muito de computadores. Poderiam rastrear a vida dele em segundos.
– Podemos. Yuko também tá dentro. Exposição é com a gente mesmo. – Senti uma pontada de esperança dentro de mim.
– Beleza. Obrigado, Ari. – Falei, mais aliviado. – Vou cuidar do resto, beijo. – Desliguei o telefone e voltei para a sala, no balcão que a separava da cozinha.
– Cela, pode alugar a tela e o Datashow da escola e trazer aqui em casa hoje? Quero fazer uma noite do cinema. – Falei, cínico, esperando que ela comprasse minha ideia. – Ari e Yuko vão estar com a gente. Vou convidar o Jô.
– Jô, hein? Que fofo. – Ela disse, olhando para mim enquanto secava um prato. – Deixa comigo que eu já busco. O Robson vai liberar. – Ela sorriu maliciosamente. Marcela estava pegando o professor Robson já tinha uns três meses. Saí da sala e voltei para o meu quarto, pensando em continuar meu plano.
Liguei para João.
– Jô? Oi! Sou eu, Filipe! – Ok, agora minha voz estava mais entusiasmada que o necessário. – Pode falar?
– Claro, Fi. Manda! – Sua voz era serena, tranquila. Guilherme não deveria estar por perto.
– Estamos organizando uma noite do cinema hoje aqui em casa. Com Datashow e tudo. Bora? A gente te espera. – Falei, tentando passar a sensação de que não me importava tanto assim com a presença dele.
– Ah, Fi, obrigado! – Sua voz ponderava e ficou em silêncio por alguns minutos.
– Pode chamar o Gui, também, claro. – Falei, com toda a falsidade que habitava em mim, para que ele não descobrisse o que tinha acontecido hoje mais cedo.
– Estarei aí. – Ele respondeu finalmente e fez silêncio de novo. – Guilherme não vai, não.
– Aconteceu algo? – Minha preocupação era genuína.
– Te conto de noite. Um beijo.
– Outro. – Respondi, delirando, ao mesmo tempo em que desliguei o celular e Marcela abriu a porta do meu quarto de forma abrupta.
– Tá tudo aí. – Ela disse. – Vamos fazer nossa ceia de Natal hoje? Eu preparo as comidas. – Rolê para a Marcela não era rolê sem comida e daqui a algumas semanas era no Natal de verdade. Todo mundo iria para a casa dos pais assim que as aulas terminassem e só voltaríamos a nos ver no próximo ano. Alguns, com sorte, não veríamos mais.
– Bora! – Respondi, gostando da ideia de verdade. – Vou procurar minhas luzinhas para enfeitar tudo. – Eu adorava luzes de Natal.
– VOCÊ É TÃO GAY! – Ela disse, jogando os braços para cima, rindo e fechando a porta do meu quarto. Meu celular começou a tocar. Era Ariana.
– Fi? – Ela falou, quase na mesma hora em que apertei aceitar.
– Oi. – Respondi, aflito.
– Conseguimos algumas coisas. A família do Guilherme não trabalha com música. Na verdade, eles têm um bufê de casamento. – Ela começou a falar e me senti aliviado, ao mesmo tempo em que algo dentro de mim realmente se sentia mal. E se Marcela tivesse razão? E se João realmente gostasse do Guilherme? Se ele não estivesse nessa só por desespero ou interesse de fazer sua carreira musical acontecer? – Além disso, eles são bem conservadores. Tem uma foto que mostra o Gui ao lado de uma menina, dizendo que eles são prometidos um para o outro. – Ok, esse era um bom material.
– Tá. Achei ótimo. Mas será que consigo expor ele com isso? – Ponderei.
– Só com isso, não tenho certeza. – A voz de Ari era séria. – Mas Yuko ligou para ela. Eles têm casamento marcado para depois do Natal, depois que o Guilherme terminar a escola.
– ISSO SIM É MARAVILHOSO! – Gritei. – Acha que consegue me mandar tudo isso pra eu editar nosso filme de hoje a noite? – Ri de forma maliciosa.
– A noite estarei aí, com o DVD. Deixa a pipoca pronta. – Ariana era escorpiana, assim como eu, só um pouco mais vingativa pelo ascendente em áries.
– Marcela vai fazer ceia de natal. – Respondi, aliviado.
– Amei. Beijos. – Ela desligou antes que eu pudesse responder.
O resto do dia passou arrastado. Deixei minhas luzes separadas, ajudei Marcela com as comidas da ceia de Natal e estava tudo pronto quando Ariana e Yuko chegaram. Só faltava o João.
– Olá, sumidas! – Marcela disse, comemorando, dando um beijinho em cada uma. Segui o gesto.
– Migo, aqui está o devê – Yuko me entregou uma capinha azul com um CD dentro. Ela era chinesa, ainda estava aprendendo a falar as palavras em português.
– Deu tudo certo? – Eu perguntei, apreensivo, olhando para as duas.
– Deu. – Ariana respondeu, seca.
– Que que tá rolando? – Marcela entrou no meio da gente, com seu sotaque carioca.
– Vamos expor alguns hoje. – Sorri, de forma maliciosa.
– QUEEEEE? – Ela surtou. – E você nem disse nada! Traidor. – Achei que ela estava brava de verdade, até que explodiu em gargalhadas. – Mal posso esperar.
João chegou logo em seguida, sozinho. Seu cabelo preto estava um pouco desgrenhado, enrolado. Estava sem barba. Seus olhos eram negros feito jabuticaba e seu rosto era muito branco e angelical. Sua voz deveria ser linda cantando.
– Oi. – Eu disse, tímido.
– E aí? – Ele respondeu, meio desanimado. – Tá tudo bem com você? – Sua preocupação parecia genuína.
– Está. Por quê? – Falei, preocupado, ao mesmo tempo em que me toquei que sequer tinha trocado de roupas.
– O Gui disse que passou por aqui hoje a tarde e você estava abalado… – João falou, sério. Eu ponderei e resolvi que não falaria nada para ele. Mas era tarde demais. Marcela já tinha começado a falar.
– O Guilherme é surtado! – Ela gritou. O semblante de João ficou duro, bravo. – Veio aqui hoje a tarde e falou poucas e boas para o Filipe. Acabou com ele, por sua causa, João… e tem mais!
– Marcela, para! – Gritei, e ela percebeu que tinha falado demais.
– Isso é verdade, Filipe? – Ele olhou fundo nos meus olhos. Não respondi. – Isso aqui é algum tipo de pegadinha contra meu namoro? – Ele estava mal-humorado agora. – O Guilherme jamais faria isso! Ele é uma pessoa boa e está me ajudando muito, ao contrário de todos vocês, que sempre me tacharam como um relé repetente! Ele acredita no meu talento! – João estava vermelho, de tanto gritar.
– João, eu acredito em você…. – Comecei, mas era tarde demais. João estava com lágrimas nos olhos.
– Não, não acredita. Ninguém acredita! – Sua raiva era misturada com frustração. – Não quero ficar para a tal ceia e cinema…. – Ele se virou para sair do apartamento, mas Ariana e Yuko foram mais rápidas. De repente, a luz da casa estava apagada e o telão exibia cenas dos pais de Guilherme falando do seu trabalho para um vídeo do Youtube.
“Olá! Somos Antônia e Augusto, donos da Casamenteria, o melhor bufê de casamento do Brasil. Estamos há mais de 30 anos no mercado….”
O semblante de João parou, incrédulo. O vídeo continuou e se transformou em um clipe de prints e fotos. Os pais de Guilherme montando casamentos. Fotos em família. Guilherme e uma menina da sua idade. O print mostrando que eles se casariam no final do ano.
– O que…. Não entendo. Isso é montagem? – João olhou para mim, como uma criança indefesa. Antes que eu pudesse responder, o vídeo se transformou em uma tela de ligação do Skype, que mostrava Yuko e Ariana em uma telinha pequena, ao canto, e a garota da foto, falando na tela, maior.
“Sim, nós vamos nos casar após o Natal. Estou grávida de Guilherme….”
Neste momento, João saiu do seu estado de estupor e deixou o apartamento. Fui atrás e o encontrei sentado no chão, perto da janela do hall de entrada.
– Ei, Jô. – Falei, em pé, antes de me ajoelhar. – Você está bem?
– Estou, Fi. – Sua voz era fofa, como sempre. Não parecia estar com raiva de mim. – Como eu pude ser tão burro? Tão interesseiro? – Ele falava alto, enquanto chorava.
– Você não é nada disso. – Falei.
– Sou sim. Eu nem amo o Guilherme. Ele ia me ajudar e eu entrei nesse relacionamento, mesmo gostando de outra pessoa, e…. – Ele percebeu que falou demais e parou, com a cabeça apoiada nos joelhos dobrados.
Guilherme saiu do elevador e se assustou com a cena. Ele empalideceu e avermelhou, em frações de segundos.
– Que palhaçada é…. – Ele começava a falar, mas João se levantou, na altura do seu rosto e o interrompeu.
– Eu é que te pergunto, Papai. Achou que ia me enganar por quanto tempo? – João gritou. – Achou que eu não ia encontrar na internet? Que eu não ia descobrir que você nunca teve nada relacionado a música na sua família? – Guilherme se desarmou.
– É, tem razão. Fui um idiota. – Sua voz parecia ter uma pitada de arrependimento. – Me deixa explicar, João. Eu sou um fodido. Mas eu gosto de você de verdade, eu quero te ajudar…. – O arrependimento se transformou em desespero.
– Fora daqui. Agora. – João esticou o braço para o elevador. Eu fiquei parado, perto da parede oposta. Guilherme olhou com raiva para mim e entrou no elevador. João se jogou no chão mais uma vez.
– Estou aqui. – Falei baixinho.
– Eu sei, você sempre está. – Ele voltou a chorar. Eu o abracei, de uma forma desajeitada, enquanto tentava consolar. – É por isso que eu deveria ter ficado com você, desde o início. – A frase saiu, sem que ele permitisse.
– Comigo? – Falei, confuso.
– É. Eu amo você, Filipe. Desde que você chegou nessa casa. – Fiquei confuso. Pela manhã, João era só um sonho distante. Pela noite, ele estava se declarando para mim.
– Calma, você está confuso. – Falei, incrédulo. – Posso ir ali dentro buscar uma coisa? – João assentiu.
Me levantei e entrei no apartamento. As meninas estavam na cozinha, como se nada tivesse acontecido. Peguei meu conjunto de lâmpadas de Natal, embolei na mão e troquei de roupa. Levei as luzes acesas para fora, onde João estava sentado da mesma forma, com a cara de choro, olhando para mim.
– Vamos começar do zero. – Falei.
– Eu adoraria. – Ele respondeu, sorrindo, em meio ao seu rosto vermelho e sua voz de choro. – Vem, me abraça de novo. – Corri, com as luzes vermelhas iluminando meu rosto e as coloquei no chão, para que pudesse iluminar seu rosto angelical também. Ele abriu seu braço e eu me sentei dentro deles, no chão, ao seu lado. Passei meu braço pela sua barriga, abraçando-o, colocando meu rosto na altura do seu coração. – Você me abraçou assim para me cumprimentar quando chegou em casa, lembra?
– Lembro. Gosto de cumprimentar com abraços. – Falei, tímido.
– É. Estou bem informado sobre isso. – Ainda saíam lágrimas dos seus olhos. – Vamos… com calma?
– Arrã. – Falei, sem me soltar do abraço, apertando um pouquinho mais. – Prazer, eu sou Filipe.
– Muito prazer, Filipe. Este chorão aqui é o João. – Ele sorriu com os olhos.
– Prazer, João. – Falei, com minha boca bem próxima da dele.