Há tempos em que o meu coração não se preenche, que as pessoas na rua não me causam efeito, que eu sinceramente não quero olhar para os lados…
Mas também há momentos em que eu consigo ligações que não acredito que sejam dessa encarnação, que eu conheço pessoas aleatórias que me fazem sorrir a todo momento, e que me conhecem a ponto de ler meus pensamentos.
Não é possível que o amor seja somente uma relação carnal que começa e acaba, como as noites em que eu saio com meus amigos e bebo alguma coisa, conheço alguém que me ganha com um sorriso bonito e pronto.
Acredito que seja mais uma construção, que vem além de um sorriso bonito ou uma voz encantadora, vem com a convivência, persistência e principalmente o perdão. E que quando falta qualquer uma dessas coisas tudo se desanda, logo, não era amor.
E não é o amor que me faz ter uma noite linda cheia de aventuras e descobertas, isso pra mim é só tesão.
Amor é o que me faz persistir e perdoar, sempre, e não consigo ligar isso a uma relação carnal, por mais que as duas coisas possam e devem existir juntas, elas também podem existir separadamente, e que não deixam de ser poesia quando eu ouço-as separadas.
Autorais
Quando eu estava no ensino médio, a professora de filosofia falou sobre o quão rotineira nossas vidas se tornavam ao longo dos tempos e que a cada dia que passava, e nossa maior idade chegava, a vida só tornava-se mais e mais coisa de rotina.
Lembro que na época ri por entre os dentes de sua observação e acrescentei um ‘’coitada’’ a sua situação, afinal, acho que vida de professor naquela época não tinha muitos avanços graças ao retorno financeiro – não que hoje tenha mudado muita coisa -, e prometi que nunca viveria assim. Eu seria feliz e a única rotina que iria criar era a de ser feliz cada dia mais. Para começar, eu seria uma jornalista, viajaria o mundo por atrás de notícias e lugares incríveis. A carreira de escritora também me levaria a países como Portugal – sempre sonhei ter um livro publicado lá! -, ou quem sabe traduziram uma das minhas obras para o espanhol e eu faria uma turnê pela América Latina e passaria pela Espanha.
Hoje, me encontro sentada nessa mesma escrivaninha branca, que comprei no terceiro período da faculdade com um dinheiro que recebi por um texto que havia vendido para essas revistas de adolescente, tentando terminar esta crônica. Daqui ouço o choro de Amora, minha filha, porque João, meu filho mais velho, não quer deixa-la ver seus desenhos. Também estou atenta a lasanha que está no forno, para que pelo menos desta vez ela não queime, afinal, meu marido não tem culpa se casou-se com uma zero a esquerda na cozinha.
Não viajei para lugar nenhum que não tenha sido a Disney, nos 2 anos da Amora. E o único livro que publiquei até hoje foi independente e não rodou nem minha cidade, quem dirá chegar na Europa. Eu acordo as seis, arrumo as crianças para a escola e vou trabalhar. Mesa, notebook, corrigir textos que irão para um jornal de circulação nacional. Às quatro da tarde busco as crianças, casa, deveres de casa, faxina e começar a janta. Meu marido chega e então tenha uma folga para terminar o trabalho que trouxe para casa.
É, eu não me tornei professora, mas acabei por virar rotina.
Há uns dias atrás, com um milhão de coisas pra fazer mas sem vontade de fazer nenhuma delas, resolvi me render a preguiça e ficar em casa assistindo filmes. Passei pela lista dos meus preferidos no netflix e me deparei com um que chamou minha atenção “Ele não está tão afim de você”. O filme não é lançamento, mas me surpreendi por nunca ter prestado atenção nele. Ter assistido esse filme na minha adolescência teria me poupado algumas lágrimas e expectativas desnecessárias.
Vou exemplificar pra vocês o que estou querendo dizer, é mais ou menos assim: desde criança recebemos aquela informação de que se o amiguinho nos bate ou xinga é porque no fundo ele gosta da gente (senhoorrr!! Quem inventou isso merece um tapa na cara bem dado), se pararmos pra pensar é a mais pura verdade, crescemos com a ideia de que se o garoto não liga ou não aparece, alguma coisa aconteceu, o gato morreu, ele perdeu o celular, está no hospital em coma profundo, mas em hipótese nenhuma levamos em consideração que ele não quer nada com a gente, e por aí vai.
Assim se passa a história, uma garota louca para ter um relacionamento que procura incessantemente pela sua alma gêmea (quem nunca?!) e nesse tempo ela conhece um carinha que a ajuda a entender essa dinâmica.
Vai dizer que você não conhece a história da amiga de uma amiga que conheceu um carinha que no começo não queria nada com ela e depois de várias idas e vindas eles foram felizes para sempre?! Sinto informar que isso, no mundo real é raro, como no filme diz, é a exceção e nós amigas infelizmente somos a regra. Deixa eu explicar : se o cara no começo da relação é um babaca com certeza no durante e no depois ele vai ser um babaca. No nosso conto de fadas o sapo não se transforma no príncipe, quem tem que virar princesa e mudar seu castelo é você.
Claro que existem exceções, mas vamos ser sinceras, você vai perder seu tempo pagando pra ver? Depois de muito quebrar a cara nessa vida sou adepta da seguinte filosofia pra tudo : quem quer dá um jeito, sempre! Vamos pensar assim, lembra quando você era adolescente e tinha aquela festa que você não estava muito afim de ir mas sua amiga estava louca pra ir? Qual foi a sua desculpa? Minha mãe não deixou, minha mesada não dá, blá blá blá. Agora lembra daquela, que você queria muito e não tinha como ir? Você deu um jeito não foi? Tenho certeza absoluta! É isso, quando queremos não tem jeito, fazemos acontecer e os homens nesse quesitos não são diferentes em nada de nós.
Então, o filme mostrou algumas coisas novas além de reforçar minha teoria que não tem fórmula, regra ou dica que te faça fisgar aquela gatinho se ele não quiser. O melhor a fazer é fechar essa porta e abrir outra. Não vamos criar expectativas em cima de quem não merece e lembre-se: se tá difícil ou você está correndo atrás, é porque ele está correndo de você.
Super recomendo ele e não vou contar o final do filme pra não estragar a surpresa. Mas tenha certeza de uma coisa, ficar sozinha, ter um tempo pra você, ao invés de ficar correndo atrás de caras babacas é o melhor que você pode fazer. E finalmente, parece clichê, mas o carinha perfeito pra você tá logo ali, vai ser fácil e bom. Tenho certeza!
Desde quando você se foi os dias ganharam mais cores e sabores. O Sol brilhou mais e a lua que antes iluminava apenas minha sacada, hoje ilumina todo meu quarto. O sorvete de flocos ficou mais doce e o churros de leite condensado mais gostoso. As árvores da cidade ficarem mais verdes e a brisa leve que embala as tardes do Arpoador agora leva junta meus fios negros.
Desde quando você foi embora eu conheci a Bruna, o João e a Ana. Eu saí por aí e experimentei novas bebidas e comidas. E que incrível, tudo era muito melhor, até mesmo aquele parque de diversões que fomos daquela vez ficou mais divertido agora que eu não tinha você para dizer que eu não podia ir a montanha russa sozinha. E eu fui, só para a sua informação, fui e quando cheguei lá em cima eu gritei bem alto para que o parque todo ouvisse: EU SOU UMA SOBREVIVENTE!
Isso mesmo, eu sou uma sobrevivente. Sobrevivi a essa vida pacata que você dedicava a minha existência, a este amor de raspa de panela que você me fazia engolir dia após dia, aos seus gritos só porque eu havia demorado mais do que normal para chegar em casa graças ao trânsito, aos seus momentos de desespero em que quebrava minha casa, mas principalmente o meu coração. Eu sobrevivi.
Eu sobrevivi a você e suas crises de nervos, aos seus ataques de desespero e as suas infelicidades com as quais me preenchia dia a dia. Eu sou uma sobrevivente. E diferente de você estou vivendo.
Neste momento, estou indo tomar aquele Sol em Copacabana e rir para o mar como se ele pudesse me abraçar e dizer: você sobreviveu, você vi-veu.
Acabou de ser disponibilizada a nova edição de Conexão Literatura, nº 08, com artigo e entrevista especial com Eduardo Spohr, autor do best-seller “A Batalha do Apocalipse”. Os leitores também poderão conferir uma crônica super bacana da Misa Ferreira de Rezende, entrevistas com João Paulo Balbino, Maya Blannco, Gustavo Magnani, Anderson Borges Costa, Fernando Lima e Kell Teixeira, além de ótimos contos elaborados pelos autores Ademir Pascale, Palmira Heine, Neyd Montingellii, Dione Souto Rosa e Ricardo de Lohem.
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Por muito foi difundido que o escritor, o poeta, o produtor da arte era um ser iluminado, nutrido de boas intenções e energias pertencentes à seres avançados, de que o poeta consegue captar aquela parcela invisível do ser humano, parcela essa que se transforma em concreto aos olhos do bom e velho escritor. Existe verdade nisso tudo, mas pouca, um terço pequenino entre tantas mentiras espalhadas por charlatões e iludidos com a arte da escrita.
Vinícius de Moraes escrevera “Abre teus braços, meu irmão, deixar cair, pra que somar se a gente pode dividir”. Belo não? O mesmo Vinícius também colocara no papel a seguinte frase “Ai quem me dera ter-te, morar-te, até morrer-te”, sentiu a diferença de sintonia entre uma e outra? Não? Vou usar outra como exemplo prático: “Não há você sem mim, eu não existo sem você” também escrita por Vinícius, e seja sincero, é impossível não notar as ideias contrárias entre uma e outra. Moraes na primeira é o homem apto a semear, a espalhar bondade, a dividir amor, já na segunda deixa um plano de fundo dominador, de que este é necessário para outrem e que esta outra pessoa nada seria se não fosse ele. Egoísta e usurpador da liberdade alheia, enquanto em outro local, em outro universo poético, é o sinônimo de igualdade, fraternidade e liberdade. Pois bem, meu irmão, deixa cair, e note, o poeta é traiçoeiro, é bicho estranho para os olhos e ouvidos desavisados. Entendeu onde desejo chegar? Se não, vamos para outro exemplo.
Dessa vez senhor Caetano Veloso, mundialmente conhecido por suas poesias encharcadas de fé e tradição, nutridas de um simbolismo e misticismo fora do normal, não acredita em tudo que escreve. Não acredita porque não é preciso acreditar, mas sim produzir. Em “Iansã”, composição sua junto a Gilberto Gil ele cria uma hino à dona dos raios e ventos, faz uma evocação à Oyá, mas o próprio Caetano declarara que não acredita em Deus. Perceba, existe uma linha que divide o que o poeta é e o que o poeta produz, nem tudo que o escritor coloca no papel seria o próprio, mas tudo que está no papel é produto do escritor. O que o personagem fala, é o personagem que dita, não o escritor. O que está presente na poesia pode ou não ser a verdade daquele autor, PODE, eu disse, mas não é necessário que seja. É essa a diferença do poeta para o homem comum. O poeta é uma metamorfose constante, é animal que consegue se transformar mil e uma vezes se for preciso.
O que está presente no papel, acredite, na maioria das vezes não foi vivenciado pelo autor ou sentido por este. Escritor é falso, traiçoeiro, uma mistura de ódio aglomerado e felicidade crônica, diabo em pessoa quando questionado sobre sua obra e Deus do novo testamento se elogiado e colocado em pedestais. Não se engane, meu irmão, quando ouvir de um escritor ou escritora: É, o dia está lindo hoje. É mentira, é falsa modéstia, pois escritor sabe, que lá no fundo, poderia produzir um dia mil vezes mais belo que aquele. Sobre o papel o autor é Deus e não existe sensação mais confortante e satisfatória do que ser dono de seu destino, do que ser o homem que puxa as cordas das marionetes desenfreadas.
Tenho medo das palavras ditas por seres como esses. Homens e mulheres que convivem com demônios diariamente, sem proteção alguma, apenas sua força e talento transcendente. Consigo mentalizar a batalha que ocorre sobre as folhas e folhas de papeis usadas para produzir livros que por décadas ficarão cobertos de poeira e serão por sorte atravessados por traças desnorteadas. Na mão um lápis sujo, úmido por conta de pingos de café e com ponta grosseira, simbolizando trabalho duro que não passa de ma página por dia, caso seja este produtivo, na mesa um amontoado de vergonhas e solidões. No fim, após sofrimentos internos e palavras soltas na mente, o escritor se debruça no chão frio e espera. Aguarda o fim de sua vida inútil, baseada em mentiras e sobre tudo, guiada por um narcisismo disfarçado.
Um moço, muito amigo de um amigo meu, sempre contara que em seu tempo de pescador, ouvira, lá no mais escuro lugar do oceano, a voz de uma moça. “Se nem gaivota passava por riba de minha cabeça, aquilo só podia vir debaixo, lá do fundo, bem dentro do mar”, dizia o homem com medo e orgulho nos olhos. Orgulho por ter saído vivo de lá, medo por nunca ter voltado, ah, pensava muito em voltar o rapaz, mas junto a tantas declarações também dizia: “Quem me dera chegar lá de novo, mas não sei, José, não sei que lugar era aquele. Só lembro da voz de mulher, sabia mesmo que pela voz ela tinha pele escura, de carvão, sabia sim”. Esse homem morreu há alguns dias e fui ao seu enterro, junto ao amigo meu, centenas de pessoas, ele era popular, um nome conhecido na cidade. Todos ofereciam bom dia ao homem nas manhãs em que levantava teso ao sol para ir comprar pão, leite e cigarro. Tudo que poderia comprar na noite anterior, mas pela manhã é diferente, é a manhã. Nessas idas à mercearia, padaria e outros lugares, trombava com o ma chocando-se ao calçadão. Olhava para aquele amontoado de água e se perdia nos pensamentos. Sei de tudo isso por conta de meu amigo, que como disse, era muito amigo do falecido.
Hoje ele lamenta, em seu limitado caixão, em sua pouca morte, os tempos que não aproveitara, mas ainda diz, entre aqueles lábios frios e transformados em carniça por conta da doença que o levara, ainda fala com seu silêncio sobre a voz que ouvira. Fico surpreso como tudo isso me cerca em meio à tanta gente, olho para o morto, ele me olha com seus algodões e flores. As pessoas vão chegando e lotando o lugar, já não bastava o odor saindo do corpo, já não bastava essa morte inutilizada, enorme preguiça tenho para velórios, preguiça que chega a atingir ânsias de tão enfadonho que é essa coisa. Mais pessoas. Gente imprensando gente. A curiosidade só não mata ninguém hoje porque o cigarro já tomara conta do primeiro. Um senhor senta ao meu lado, ele e uma mulher. O homem do lado direito, a mulher ao meu lado esquerdo. Ela chega e já me pergunta o que está acontecendo. Como assim?
“Como assim o que está acontecendo?” Mas que mer…
“Ele morreu?” Continua com suas perguntas
“Não, não, está deitado, observando o teto. E essas pessoas aqui também vieram para admirar o teto, bonito não?”
Ela ergue a cabeça para encarar o teto. Ela está encarando o teto, meu santo deus. E nessa de ficar observando teto e mulher, acabo por ficar preso na segunda. Seus olhos são negros, assim como sua pele, escura como a minha. Olho bem no desenho de seu pescoço, pintura perfeita. Seu rosto se admira com cada pedaço do teto, enfim, quando ela realmente sentiu que o tempo me foi dado, voltou a tona:
“O que está acontecendo?” Me pergunta novamente com uma gentileza que poucas possuem. Gentileza de mãe.
Olho para o teto e sei bem o que está acontecendo, mas não preciso responder. Levanto-me, dou uma última olhada no caixão e saio da casa esgueirando-me entre as pessoas. A mulher vem logo atrás. Ando, e ando, faço todo o percurso que o falecido fazia, passo pela padaria, mercearia e enfim me dou admirando o mar. As palmeiras entrecortando a imagem perfeita idealizada por uma artista imenso, maior que todos os outros. A água vai e vem como um prelúdio, a água carrega todas minhas mágoas e medos, não posso ficar apenas observando, vou ao seu encontro. O primeiro pé, o primeiro toque e sinto a necessidade de me ajoelhar. Peço licença para adentrar em templo tão grandioso e vou, navego entre a água gelada que em instantes fica morna e reconfortante. Sinto-me em casa.
Bem atrás de mim, a mulher, seu vestido azul não é atingido pela água, seu semblante inerente a qualquer diversidade. Ela olha para mim, olho para ela e me perco no tempo e espaço, quando percebo estou no mais afastado lugar do mar, no fundo e vazio mar. A mão da mulher comanda meu destino dentro daquela vastidão de mar e confirmo, por fim, que estou mais vivo que nunca. Estou de volta ao lugar que sempre sonhei, lugar meu para ela, dela para seus filhos. Inaê se despede dançando entre as ondas, desponta para o fundo do mar, provocando alvoroço nos quatro cantos, luz que brilha nas noites sombrias, dona de meu barco, voz que canta a mais bela canção, Senhora das águas, senhora de mim.
Me sumo, entre ciranda e areia. Volto para meu lugar de rebento, não, eu não sou daqui. Eu sou de lá.
“Um de raiva delira, outro enlouquece…
Outro, que de martírios embrutece,
chora e dança, ali.Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus…Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turbaDize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!”| Trecho de “Navio Negreiro – Castro Alves”
O moço do cartório perguntou: De onde? Papai não soube responder, na verdade ele não é daqueles que tem muitas respostas. Mais perguntas que respostas. Confuso sempre foi meu pai e continuará sendo, mesmo agora que está morto, bem mais que morto, mas seus questionamentos continuam. Certa vez estávamos sentados na varanda de casa, ele com sua cadeira de balanço, cigarro na mão e uísque esquentando em um banquinho, eu com um livro no colo, se lembro bem era uma das obras de Kafka, mamãe prestando atenção no vai e vem de carros lá longe e minha irmã com o celular sendo estuprado por dedos frenéticos, neste dia papai deixou todos nós sem saber como lidar, ele pousou o cigarro ao lado do copo e disse: E quando se morre, vai pra onde? Silêncio. Cada qual com sua percepção naquele lugar. Eu, com meus anos de catolicismo, respondi que quando se morre começa o julgamento, céu, inferno ou purgatório. Mamãe, recém-convertida ao protestantismo fez questão de criar confronto, de fazer birra frente a minha visão de pós-morte. Os dedos de Alice continuaram sobre a tela do celular. Eu acho, tentava começar meu pai. Eu acho. Ninguém deixava o homem falar. Mamãe dizia que eu estava enganado, que as coisas não são só assim, que tem mais página nesse livro. No fim de tudo acabamos por esquecer a morte e o que vem depois dela e entramos em discussão cheia de entremeios, minha mãe falava Lutero e eu citava o poderio da igreja. Papai continuou no uísque, por mais que mamãe usasse a bebida e o cigarro como exemplos de que seu marido não estaria salvo.
Eu acho
Conseguiu falar papai
Que quando se morre não tem porém, não tem mundo, nem luz. Acho que morre e pronto, se vai e acabou-se.
Hoje papai está morto e não sei bem o que fazer. Não tenho respostas para ele, nem para mim. O livro de Kafka daquela manhã se perdeu há muito, deve ter sido O Processo, sim, O Processo, presente de uma namorada. De Juliana, bons tempos, ah sim. Em que ouvíamos Elis como se fosse a primeira vez, juntos e felizes. Juliana se foi como papai, para mim morreu. Depois do que fez não quero ver nem um fio de cabelo de Juliana.
Mas à hora do enterro se aproxima e olho para esse cadáver que começa a feder. Enterrem logo esse homem, pelo amor de Deus. Quero ver a terra encobrir papai, ele sufocado em sua morte lá por baixo, preso em uma cela de madeira, preso em sua inutilidade. Quero ver como papai reagirá com tudo isso e muito mais. Sinto medo do que será de nós, mas tenho raiva imensa de papai que não deveria morrer, não agora que seu neto está por vir. O velho não sabia, nem eu, nem Bárbara. Fim de mundo é o que vem por ai. Mamãe chora no canto da sala, abraçada com Beatriz, a garota não demonstra nada. Morreu como o homem. Olho para a varanda onde tanto tempo gastamos, jogando conversa fora e falando sobre vida e depois dessa. Olho para a varanda e alguém se aproxima, não consigo ver bem quem seja, mas está usando terno, com flores na mão, algum amigo do velho. O sol se despede e fica nas costas do homem, seu rosto ainda está oculto pela distância, mas depois de alguns segundos vejo a barba que tanto conheço, seu sorriso amarelo por conta da nicotina e a cabeça cheia de perguntas. Papai fica defronte com seu sósia morto, deposita o buquê próximo ao caixão. Chega mais perto, senta ao meu lado e acende um cigarro.
Dia quente não é?
Concordo com a cabeça e espero sinceramente que ele se vá antes do enterro.
Em plena harmonia comigo, carrego-me para outro mundo, dentro de mim mesma.
Depois de anos, percebi o que realmente sou: Um paradoxo. Assombro-me com o que posso fazer e o que não posso fazer, mas continuo a ser a La petit Ballerine.
Entre acordes, dentro e fora da minha cabeça, liberados por uma flauta doce imaginária, um violino e um Celo, componho minha própria obra, os timbres de um soneto, para o concerto da minha existência.
Na plateia, a dor se contorce no canto mais escuro, onde a iluminação não bate. Bem à frente, consigo ver a querida esperança, juntamente com a alegria, me aplaudirem antes da minha entrada. A cortina encobre a silhueta do medo e da sua prima insegurança, que se tornou minha sombra. Respiro fundo enquanto distingo o soar do piano, uma nota sim e outra não. Tons doces se miscigenam a minha cabeça, fazendo fechar os olhos e começar a dançar.
Sinto as cortinas se afastarem lentamente, apresentando minha vida.
Quando volto a abrir meus olhos, a jovem decadência me segue vidrada, as íris mostrando um arco-íris frio de insegurança e traumas. Tudo tão monocromático.
A multidão de sentimentos que se intercalam a minha frente – um querendo achar uma posição melhor do que a última para avaliar meu desempenho – me golpeiam, e eu vou ao chão.
De repente, os acordes mudam.
Eles recomeçam devagar, lentamente, calmamente.
“Você sempre terá várias chances, La petit Ballerine”
E eu recomeço, deixando dessa vez eles me guiarem. Sorrio enquanto refaço, invento, moldo-me diante da plateia.
E sem ser coisa da minha cabeça, aplausos rompem aos meus ouvidos.
“Magnifique” a felicidade grita pra mim, a mais saltitante entre todas as cabeças.
A minha felicidade.
Choro baixinho, deixando-me ser preenchida por esse sentimento.