A racista que existe em mim não queria escrever este texto. Porque, antes de tudo e acima de todos, ela não se acha racista. Afinal, ela tem amigos negros, um marido negro e uma filha negra, então, como ela poderia ser racista?
A racista que existe em mim sente uma necessidade constante de reafirmar que não é racista. Ela repete de novo e de novo, como um mantra, uma canção que adormece o monstro que ela sabe que dorme dentro de si. O monstro do racismo.
Eu odeio esse monstro. Mas também sinto medo dele. Medo de ser dominada por ele em algum momento e dizer ou fazer algo que eu não queria. A racista que existe dentro de mim acha que manter o monstro adormecido é o suficiente, pois, enquanto ele dorme, ninguém sabe que ele está ali. Eu sei.
Djamila Ribeiro afirma em seu livro “Pequeno Manual Antirracista” que “é impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista”. E, no Brasil, nós somos criados em uma sociedade racista que normaliza o negro como bandido, associado à pobreza, falta de cultura e pouco estudo.
Nós não nos incomodamos por não vermos negros nas propagandas de marcas famosas na televisão ou por que a maioria dos personagens negros nas novelas são de empregadas domésticas, motoristas ou algum núcleo de escravos em uma novela de época. Ou do núcleo da favela, não podemos esquecer. Afinal, a maioria dos personagens traficantes ou pobres são negros.
Nós não nos incomodamos em abolir expressões racistas do nosso vocabulário, como mercado negro e criado-mudo e justificamos contextos racistas em músicas e obras literárias com a boa e velha “era a cultura da época”. Repassamos isso por gerações como um patrimônio histórico. O patrimônio do racismo.
Em seu livro, Djamila também diz como o antirracista acaba virando o “chato” porque, a partir do momento em que você escolhe cutucar todas as feridas de uma sociedade construída em cima do racismo e da desigualdade que esse racismo traz, você fica mesmo muito chato.
Assim como bem aponta a autora, o racismo no Brasil é estrutural, portanto, vive nas entranhas da nossa sociedade por muito mais tempo do que gostamos de admitir e isso é realmente muito “chato”. Tão chato que falar sobre racismo é um assunto incômodo, um tabu, pois ninguém quer ser o primeiro a cutucar a ferida.
Essa ferida deve ser cutucada. E, digo mais, cutucada por quem criou ela: os brancos. No “Pequeno Manual Antirracista”, Djamila Ribeiro faz uma afirmação interessante de que o racismo foi criado pelo branco. Nada mais verdadeiro e mais óbvio, porém, pouco pensado dessa forma e, muito menos, discutido.
E é interessante pensarmos sobre isso porque, antes da escravidão, os povos negros viviam em etnias, culturas e línguas ricas e diversas, mas foram reduzidos pelos brancos a, simplesmente, “o negro”. Assim como todo o continente africano foi reduzido a África (acredito que deva ter gente por aí que até pensa que é um país só). Ou como tantos povos com suas histórias e tradições foram reduzidos a nada.
O branco tem muita dificuldade de entender o seu papel no racismo, mesmo sendo o seu criador, praticante e maior defensor. Ele acha que não faz parte porque ele não é racista. Ele nunca escravizou ninguém. Ele tem amigos negros. Ele emprega pessoas negras e jura que a meritocracia funciona.
Eu concordo com a Djamila quando ela diz que não ser racista não é o suficiente. Devemos ser antirracistas. Devemos nos incomodar por, em um país com 56% da população sendo negra (o que torna o Brasil a maior nação negra fora da África), ter tão poucas pessoas negras em cargos de poder. Devemos nos incomodar pela falta de autores negros nas bibliografias de cursos superiores, nas antologias, em cargos de gerência e até no núcleo rico da novela.
A racista que existe em mim sabe que goza do privilégio branco e que as coisas não são nem de perto como deveriam ser. Mas é cômodo para ela ficar quieta, continuar usufruindo de seus privilégios e fingir que essa luta não a pertence. Afinal, ela não é racista. Ela não escravizou ninguém. Ela tem amigos negros.