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Crítica: 1922 (2017)
Crítica: 1922 (2017)
Atualizações, Críticas de Cinema, Filmes

Crítica: 1922 (2017)

Ontem (20/10) estreou 1922, filme de terror psicológico, e que é mais uma adaptação de Stephen King feita pela Netflix; e que está fazendo parte do Especial de Halloween do Beco Literário. O longa é uma adaptação do conto homônimo de King — conto esse que faz parte do livro Escuridão Total Sem Estrelas, lançado aqui no Brasil em 2015 pela Suma de Letras — e de todo o livro, considerado pelos fãs o mais pesado e macabro. 1922 é dirigido e roteirizado por Zak Hilditch (As Horas Finais), que foi muito elogiado pelo próprio Mestre do Terror.

Imagem: Thomas Jane, Netflix

1922 é ambientado no ano que dá nome ao longa, e segue a história da família James, composta pelo patriarca Wilfred James (Thomas Jane, em uma de suas melhores performances), sua mulher Arlette James (Molly Parker), e seu único filho Henry James (Dylan Schmid ), que moram em uma fazenda no Nebraska. Wilfred como um típico fazendeiro e patriarca de uma família de 1922 há apenas duas coisas que ele mais se importa: suas terras e seu filho varão, que herdará as suas terras.

No entanto, sua esposa Arlette nunca gostou de morar em uma fazenda, e seu sonho é morar na cidade grande, e abrir uma butique de roupas. Esse sonho se torna possível, quando ela herda um pedaço de terra próximo a ferrovia, e decide vendê-lo, para ter o dinheiro necessário para se mudar para a cidade. Wilfred prontamente não concorda com a decisão, e mesmo com vários argumentos da esposa, não quer vender as terras e morar na cidade. Mas, como bem pontua Arlette, as terras eram dela, então a decisão de vender era dela. Ela venderia as terras, e se mudaria para a cidade grande com o filho, com ou sem o marido, e restava Wilfred aceitar ir com ela ou não.

Porém, há uma escuridão em cada ser humano, e como Wilfred bem pontua em sua narração, há um Wilfred calculista e perverso dentro do fazendeiro; e influenciando o seu filho— que também não deseja abandonar sua vida na fazenda — decidem matar Arlette. No entanto, essa decisão se mostrará uma das piores decisões de suas vidas, já que a partir de então tudo na vida de pai e filho começará a ruir, assim como o corpo de sua esposa e mãe sendo decomposto e comido por ratos.

ATENÇÃO ALGUNS SPOILERS ABAIXO

 

Imagem: Molly Parker, Netflix

 A culpa e como ela pode enlouquecer um ser humano sempre foi um dos temas mais explorados pelo Gênio do Terror, Edgar Allan Poe (e com toda certeza o meu escritor preferido), um dos seus contos mais famosos, O Coração Delator (The Tell-Tale Heart), trata justamente disso:  um homem após matar um velho para quem trabalhava e escondê-lo embaixo do assoalho, passa a ouvir o som dos batimentos cardíacos do velho morto, justamente quando a polícia vai interroga-lo. Só ele pode ouvir o som, e é tão enlouquecedor que ele acaba de entregando para a polícia.

Outro tema muito explorado por Poe, é a escuridão que cada ser humano tem dentro de si, que o faz cometer atos terríveis; Poe vai chamar esse lado perverso do ser humano de Demônio da Perversidade em um conto/artigo teórico maravilhoso. Stephen King utilizou esses dois temas do terror em 1922, com Wilfred sendo “tentado” por um “demônio interior e perverso” em que a única solução que ele via para aquela situação era o assassinato da esposa. O Wilfred calculista e perverso que existia dentro do fazendeiro criou uma trama de uma lógica perversa para seu filho Henry compactuar do mesmo pensamento, onde matar a mãe seria um mal necessário, algo que até Deus os perdoaria. Feito o ato eles teriam que lidar com o peso da culpa.

Mas antes, deve-se cobrir os rastros do crime. Então pai e filho escondem o corpo da mãe em um poço, assim como roupas e joias, para simular para a polícia que Arlette fugiu. Era 1922 afinal, e dizer que a esposa fugiu, evitaria muitas perguntas da polícia, até mesmo para preservar a “honra” do marido abandonado, mesmo que muito da história não batesse. Wilfred e Henry seguem com suas vidas, trabalhando na fazenda, Henry cada vez mais sério com sua namorada Shannon (Kaitlyn Bernard); mas ambos não conseguem esquecer o que fizeram. Henry fica cada vez mais irritado e distante, e começa a perder a noção do certo e errado, já Wilfred não consegue esquecer a última imagem que tem da mulher: morta no poço e sendo comida por ratos. Ratos esses que parecem estar infestando a casa.

Tudo começa dá errado para os dois. Henry engravida a namorada e eles fogem, virando criminosos, a casa começa a cair em ruinas, com ratos roendo tudo nela, e a casa começa a cair aos pedaços. E Wilfred começa a ser assombrado pela sua esposa morta. Será que o espírito dela veio atormentá-lo? Ou Wilfred está enlouquecendo com a culpa? A sua vida parece estar em ruínas, e como uma praga divina, os ratos estão por toda parte, atormentando Wilfred, cada vez mais sendo consumido pela culpa.

1922 é um bom filme de terror psicológico, com uma ótima atuação de Thomas Jane, que realmente se entregou ao personagem. Toda a caracterização do personagem o fez ficar completamente irreconhecível de outros trabalhos do ator, como o seu Frank Castle, em o Justiceiro de 2004. Molly Parker aparece pouco, porém faz um ótimo trabalho. A única falha no quesito atuação é Dylan Schmid, que não consegue acompanhar a atuação de Thomas Jane, nos entregando uma atuação fraca e sem muitas expressões.

Imagem: Thomas Jane, Netflix

O ritmo do filme também é um problema, sendo arrastado em alguns momentos, mas Zak Hilditch consegue entregar um bom filme de terror psicológico, com uma atmosfera sufocante, cada vez mais que a culpa vai consumindo Wilfred James e sua adorada fazenda e filho. No entanto, das duas adaptações de Stephen King da Netflix, Jogo Perigoso ainda segue como o meu favorito.

1922 já está disponível na Netflix.

Especial Halloween: 

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Crítica: Raw (Grave, 2016)

Outubro é o mês do Halloween, e com ele vem festas de Dias das Bruxas e maratonas de filmes de terror. E para ajudar nessa difícil missão de escolher os filmes de terror ou que tenham como temática o Halloween, que me proponho até o fim desse mês, fazer críticas de alguns filmes de terror (ou similares) que assisti e assistirei esse mês.

Imagem: Divulgação

 

O primeiro deles é Raw (Grave), filme de horror francês da diretora e roteirista Julia Ducournau que tem como tema o processo de tornar-se mulher, que todas nós, mulheres, passamos na puberdade. Tudo sob uma perspectiva feminina, mostrando o processo de autodescoberta de uma jovem de 16 anos, em uma sociedade com altas expectativas sociais e culturais, e que impõe regras e padrões difíceis de se alcançar, principalmente para as mulheres. Ah, e canibalismo!

Imagem: Divulgação

 

A história segue Justine — genialmente interpretada pela jovem atriz, Garance Marillier — uma jovem educada no vegetarianismo que acabou de passar para o curso de veterinária na faculdade, curso que seus pais prestaram, e que sua irmã mais velha já está cursando. Adiantada para sua idade, Justine se vê agora diante da perspectiva de enfrentar a faculdade: morando longe dos pais, com colegas hostis e competitivos e professores que não dão a mínima para ela. E os famosos trotes. Em um deles, a menina é obrigada a comer carne pela primeira vez, e partir de então começa a ter uma fome descontrolada por qualquer tipo de carne. Incluindo a humana.

ATENÇÃO ALGUNS SPOILERS ABAIXO

Imagem: Divulgação

Raw causou polêmica no Festival de Cannes 2016 (onde foi premiado na Semana da Crítica como Melhor Filme pela FIPRESCI) e posteriormente no Festival do Rio 2016, pois não era para pessoas de estômago fraco. “Membros do público desmaiaram”, era uma das manchetes sobre o filme, e por isso o filme logo me chamou a atenção e fiquei com altas expectativas, que foram supridas satisfatoriamente.

Eu adoro terror e horror, e um subgênero que me agrada muito é o gore. Gore ou Splatter é um subgênero do terror/horror, que deliberadamente, se concentra em representações gráficas de sangue e violência. No entanto, poucos filmes categorizados como gore utilizam a violência gráfica de forma inteligente e condizente com a história que está contando, tornando a violência gráfica uma violência gratuita e de mau gosto; fazendo com que as produções desse subgênero sejam taxadas de ruins. Um gore bem feito para mim, é aquele que causa a agonia e repulsa necessárias no telespectador e não risadas, e para isso é necessário que o diretor utilize a violência gráfica no momento certo em que a narrativa pedir, e não a todo momento, apenas para chocar o público.

Imagem: Divulgação

E isso, Julia Ducournau fez com maestria, utilizando de situações normais, como por exemplo, uma cena de depilação, e tornando-a uma das cenas mais agonizantes de todo o filme. Utilizando uma paleta de cores frias para constatar com as cenas mais sangrentas, uma abordagem parecida com os filmes da cineasta Claire Denis, também francesa (inclusive, acho que o cinema de horror francês sabe trabalhar melhor o gore do que o americano).

Imagem: Divulgação

A câmera é focada em closes na protagonista, para passar a sensação necessária de agonia e claustrofobia, para sentirmos todas as transformações que Justine passa junto com ela. Justine se sente deslocada e apreensiva o tempo todo: ela é considerada um gênio, por isso passou no vestibular mais cedo do que os outros, e agora terá que viver longe dos pais nos alojamentos da faculdade. Na faculdade, todos estão preocupados consigo mesmos, e sendo uma caloura é obrigada a passar por todos os tipos de trotes que os veteranos inventarem. Ao mesmo tempo, ela está tendo o seu despertar sexual— e em meio as festas regadas a bebidas e sexo — Justine, virgem e tímida, e com um mega crush em seu colega de quarto que é gay; ela não sabe lidar com o que está acontecendo consigo mesma.

Imagem: Divulgação

Sua família é de vegetarianos, então ela nunca comeu carne. Mas, em um dos trotes, é obrigada pela própria irmã, Alexia, a comer carne de ovelha. Alexia também foi criada como vegetariana, mas longe dos pais, seus hábitos mudaram. Após ingerir a carne de ovelha, Justine tem uma reação alérgica, em uma cena que pode ser trigger/gatilho para pessoas que com alergias, por isso recomendo que pulem. A cena é longa, com super closes na protagonista, causando uma agonia no telespectador, a mesma agonia que a protagonista está sentindo.

Imagem: Divulgação

Justine, então, passa a sentir uma fome incontrolável por carne, desde hambúrguer e até mesmo carne crua. Até que, após um acidente, onde o dedo de sua irmã Alexia (Ella Rumpf, outro grande destaque do filme) é decepado, e Justine sente um desejo incontrolável de comê-lo. Justine passa então a desejar carne humana, que vai muito de encontro aos seus próprios desejos sexuais, fazendo-a desejar comer, literalmente, Adrien (Rabah Nait Oufella), seu colega de quarto.

Imagem: Divulgação

O roteiro de Julia Ducournau usa muito bem a metáfora do canibalismo como o despertar sexual de Justine como mulher, ambos considerados, em níveis diferentes, tabus da sociedade. Outro ponto é a boa utilização dos personagens, a história em si gira em torno de Justine, mas todos os personagens e tramas são importantes, e todos são desenvolvidos. Destaque para a relação de Justine e Alexia: a irmã mais velha é o perfeito contraponto de Justine. Também canibal, Alexia se entregou de corpo e alma a esse estilo de vida primitivo e animalesco, e incentiva Justine a fazer o mesmo.

Imagem: Divulgação

A relação das duas é complexa e real, como relacionamentos fraternos geralmente são: ao mesmo tempo que querem matar uma a outra, são as primeiras a se ajudarem. Ella e Garance ficam muito bem juntas em cena, com Alexia sempre sendo mais explosiva e animalesca, enquanto Justine é mais retraída, tentando reprimir a todo custo a si mesma.

Imagem: Divulgação

 

Devo destacar também a trilha sonora: a comercial possui músicas maravilhosas e que casam perfeitamente com a cena e a construção da personagem- destaque para Plus Putes que toutes les Putes de Orties. Mas é a trilha instrumental, maravilhosamente composta por Jim Williams, que é o grande destaque da trama, aparecendo em pontos chaves do longa, como quando Justine come carne humana pela primeira vez, ou a impactante cena final (tornando-a ainda mais impactante, deixando o espectador de boca aberta).

Raw é um filme agonizante e realmente não é para quem tem estômago fraco. Julia Ducournau utilizou muito bem o gore para contar a puberdade e o despertar da sexualidade de uma jovem mulher. Também não é um filme que te dá respostas, se é isso que você busca, não o assista achando que o roteiro explicará do porquê Justine tem instintos canibais, pois esse não é o ponto. É um filme maravilhoso, mas não recomendo para quem tem triggers/gatilhos com sangue ou alergias.

Raw (Grave) já está disponível no catálogo da Netflix.

ATENÇÃO: O TRAILER POSSUI CENAS QUE PODEM SER GATILHOS COM SANGUE OU ALERGIAS!