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“Carpir ramas é pesado, pagam pouco para muito trabalho. E trabalho pesado…”

Vi sua foto no Facebook e bombava de curtidas e compartilhamentos. Uma garota trans, de pouca idade, carpindo ramas de batata. A legenda dizia que travesti rejeitada e odiada pela família trabalha duro e não dispensa trabalho nenhum. Parece uma linda história de superação se não fossem apenas fatos que evidenciam a decadência social de um grupo que mal é representado dentro de sua própria comunidade. O T no cenário LGBTQ+ ainda é alvo de muito preconceito e violência. Segundo pesquisa do G1, 9 em cada 10 pessoas trans acabam na prostituição. E ainda piora: sua expectativa de vida é de 35 anos, segundo dados do Senado Brasileiro. Metade da média nacional.

Entrei em contato com ela, é de poucas palavras e de família humilde. No começo, ainda como quem não confia em qualquer um, se mostra meio tímida ao contar sua história. “Nasci em uma família muito religiosa e preconceituosa, sempre tive a certeza que tinha algo de errado comigo e que ser menino não era o meu destino”, começa a desabafar S.C., de 16 anos, cursando o terceiro ano do ensino médio em Sapé, no interior da Paraíba. “Dos meus 8 anos em diante, meus pais perceberam que eu fugia muito do meio masculino e me fizeram ter medo de ser eu mesmo. Sofri muito bullying e tive que mudar de escola 5 vezes”, conta.

Dificuldades

S.C. começava a entender que não era igual as outras crianças quando começou a ser perseguida na escola. Apanhava e era excluída de todas as outras. Ainda sem se descobrir mulher trans, fazia de tudo para sua mãe não deixar ir para a escola no dia seguinte. “Meu desempenho nos estudos começaram a cair. Eu não prestava atenção na aula e só pensava o quão rápido eu teria que correr para chegar em casa e os meninos não me baterem na hora da saída”, relembra.

Aos 12 anos, veio o divórcio dos pais. Sua mãe mudou de estado e ela ficou porque ainda estava na metade do ano letivo. Seus pais trabalhavam em uma fazenda e vinham vê-la somente a cada dois meses. “Tive que morar sozinha durante um ano na nossa antiga casa, foi aí que comecei a trabalhar. Foi muito difícil arrumar algo decente, mas sempre busquei ganhar meu dinheiro da forma mais honesta possível”, confessa.

Trabalho infantil

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2016, o Brasil tem aproximadamente 2 milhões de crianças e jovens trabalhando, com idades entre 5 e 17 anos e, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estão entre as atividades que mais oferecem risco à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e adolescentes, o trabalho nas ruas, nas carvoarias, nos lixões, na agricultura e no trabalho doméstico.

“Fiz amizade com uma vizinha que me deu todo o apoio. Ela tinha um barzinho e lá eu comecei a trabalhar atendendo as pessoas, servindo mesas”, continua S.C., que apesar da pouca idade, era um “rapaz” bem desenvolvido, alto e com aparência de 17 anos, segundo explica. E foi nesse cenário que sua inocência começou a ser corrompida.

No bar em que trabalhava, vários homens tentaram a aliciar, oferecendo dinheiro em troca de relações sexuais. “Segundo eles, ‘um novinho era muito bom’”, revela, enquanto se atropela para dizer que sempre dispensou, mas trabalhava também em outros lugares. “Fazia serviços em um salão de beleza, juntava reciclagem para vender e aos poucos ia conseguindo meu dinheiro”, avalia.

“O que vemos com a utilização de mão de obra infantil não é algo que ‘enobrece’, como disse o presidente Bolsonaro”, afirmou o Senador Paulo Rocha, da Paraíba, em pronunciamento após declarações do presidente da República, Jair Bolsonaro, em defesa o trabalho infantil. “Quem explora a mão de obra das crianças, na verdade, só procura reduzir os custos para aumentar seus lucros”, completa.

Ao fazer 13 anos, S.C. se mudou para morar com a irmã. Contra sua vontade, foi e ficou 3 meses sem trabalho, até que saiu pelas ruas e encontrou um emprego em um lava-jato. “Percebi que não era aceito pelos meus outros colegas de trabalho, por causa do meu jeito afeminado, decidi sair depois que um me acertou no pescoço com aquele jato de água, que inclusive, doeu”, aponta. E de fato, as maiores dificuldade das empresas, nos dias de hoje, está em repassar suas culturas de diversidade por toda a hierarquia, e a população trans é a que mais sofre com assédios morais e muitas vezes, sexuais.

Os estudos somados à rotina intensa de trabalho começaram a sobrecarregar a garota, que ainda estava no auge de sua infância. “Eu também fazia bicos, carpia quintais, frente de casas e ia pra casa no fim do dia, só dava tempo de me trocar e ir pra escola, a pé, mesmo sendo bem distante. Perdi as contas de quantas vezes eu chegava em casa quase meia noite”, evidencia. E em casa, ainda fazia o trabalho doméstico da irmã que trabalhava demais. Lavava louça, lavava roupa e ainda deixava o café da manhã pronto para o dia seguinte. “Vivi assim por quase 2 anos até que vim morar com a minha mãe, e foi quando decidi ser eu mesma. Eu já tinha me assumido gay aos 14 anos e aos 16, decidi que viveria como mulher trans”, explica S.C. cheia de determinação, como quem parece estar cansada de viver com sua felicidade às custas de terceiros.

Vida nova, trabalho antigo

“Meu pai se negou a falar comigo”, relembra como quem não quer dar muita importância ao assunto e continua, “mas aqui fiz bons amigos que me aceitaram da forma que sou”. No entanto, o preço que se paga por ser quem é pode ser caro para algumas pessoas. S.C. comenta que ainda luta com alguns pensamentos da mãe, mas que continua firme em busca de sua independência. “Aqui na minha cidade é muito ruim de trabalho”, suspira. Porém, o buraco é mais embaixo. As políticas sociais estratégicas para o enfrentamento do trabalho infantil, somada às declarações polêmicas do líder do Executivo, assim como a precarização da fiscalização, trata-se de um visível mascaramento da realidade social trágica de milhões de crianças e adolescentes. Fato que só piora com a proibição da educação sexual nas escolas, cujo preconceito acaba por recair diretamente em pessoas trans, como S.C.

“Apesar de eu não ser aceita, sou uma mulher feliz só pelo fato de ter perdido todo medo que eu tinha de ser eu mesma.”

Hoje em dia, S.C. trabalha carpindo ramas de batata. “Carpir ramas é pesado, pagam pouco para muito trabalho. E trabalho pesado”, revela. Durante as 7 horas de expediente diário, com 15 minutos de descanso por 40 reais sob extrema pressão, ela ainda encontra sua motivação para ser quem é. “Tô seguindo tentando vencer, sempre fui uma mulher esforçada sem medo de trabalho pesado, sou uma ótima aluna na escola e me encontro com notas muito boas”, sorri em meio a tantas injustiças. “Outras pessoas com quem trabalho, recebem 50 reais por diária, e eu recebo só 40. Existe uma desigualdade apesar do trabalho ser o mesmo”, denuncia.

Escola

Dividindo-se entre carpir ramas, reciclar lixo e a escola, perguntei a S.C. como era lidar com tudo isso. “O que mais tem por aqui é lixo nas ruas, eu vou no meu ritmo e decido minha carga horária na reciclagem. Acho que assim estou ajudando minimamente o planeta”, comemora.

Na escola, ela se considera feliz com a aceitação dos colegas e professores. “É a primeira escola que vejo abraçar tanto a causa LGBTQ+. Todos os eventos a gente aborda esse tema com várias áreas diferentes, lá eu me sinto em casa e amada”, declara.

E além de tudo, S.C. diz que é feliz. “Apesar de eu não ser aceita, sou uma mulher feliz só pelo fato de ter perdido todo medo que eu tinha de ser eu mesma. O V. (nome de batismo) não existe mais. Agora é a S.C. e sempre foi ela que me deu forças pra seguir”, se emociona e finaliza, “Porque não foi fácil. Mas ainda tenho mais objetivos para conquistar.”

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Autoria: Futuro ex-namorado, por Gabu Camacho

Leia ouvindo: Thinking of you, Katy Perry (Acústico)

Futuro ex-namorado,

Sei que quando você estiver lendo essa carta, já vai ter desistido de tentar entender o que está acontecendo. Tampouco vai entender porque te chamei de futuro ex-namorado. Se tudo correu conforme planejei, você agora está parado em um quiosque na entrada da praia e um garçom te entregou esse papel. Você chegou aí entrando em um Uber que mandei te buscar, falando que ia chegar em casa, mas ele seguiu direto para o litoral.

Desculpa por ter te assustado. Mas agora é hora de esclarecer algumas coisas.

Sei que você gosta de mim, não me entenda mal. Sei que você pode até me amar da sua maneira, mas não sou o amor estrela cadente da sua vida. Não sou o amor que cruza seu céu e te leva ao inferno. Não sou o amor que vai encher seu mundo de glórias. E está tudo bem. Eu amo você e só o meu amor pode justificar tudo o que eu fiz hoje.

Eu percebi que quando a gente foi no karaokê, antes da quarentena, você cantou Thinking of you da Katy Perry de uma forma muito emotiva. Eu sabia que você não estava pensando em mim. Eu sabia que era pro seu amor estrela cadente. Alguém que tinha cruzado tão rápido seu céu e que não havia sido capaz de ficar.

Eu percebi que era com ele que você sonhava todas as noites. E juro, está tudo bem. Ele é a sua pessoa. E eu ainda sei que um dia vou encontrar a minha. Espero ser tão sortudo quanto você, meu amor.

Mas agora, é a sua vez. Planejei tudo isso durante a quarentena e agora ela acabou. O coronavírus foi embora e se tem algo que a gente aprendeu com tudo isso, é a não desperdiçar mais tempo.

Se tudo correu como planejei, o Benji vai estar sentado um pouco além de você, com o pai dele, em uma mesa. Ele já contou tudo para a família. Ele sabe que talvez você apareça. Eu sei que é ele. Vai lá!

Capture sua estrela cadente. Não a deixe escapar mais. Você e o Benjamin nasceram um para o outro.

Com amor,

do seu (agora), ex-namorado.

inclusão social de surdos
Colunas

A falsa inclusão social de surdos no Brasil

Mais de dois milhões de pessoas possuem deficiência auditiva severa no Brasil, número que tende a aumentar em progressão aritmética nos próximos anos. Considerando que o país tem 207 milhões de habitantes, o número eloquente de surdos, de acordo com o censo do IBGE de 2010, corresponde à população do Distrito Federal.

Tamanha expressividade não pode ser deixada de lado e o debate da inclusão dos surdos no sistema educacional é de extrema importância, principalmente para a sociedade em que vivemos que parece estar sempre em ritmo acelerado em todos os aspectos, esquecendo-se da empatia pelo próximo. É preciso pensar que existem pessoas com necessidades diferentes da generalidade considerada “normal” e é preciso incluí-las de maneira efetiva no sistema educacional, com professores bilíngues não só na teoria, mas também na prática.

O tema já foi alvo da redação do Enem e buscou, exatamente, essa expressividade que falta para a população surda. As críticas existem, mas de maneira tão ferrenha aconteceu tão somente por conta da especificidade do tema. Mas não pode se esperar muito: pessoas que nascem com um direito social intrínseco e inextricável, jamais entendem pelo o que passa uma minoria que luta pelo o que eles julgam básico para sobrevivência.

Não se conhece o mundo de uma pessoa nessas condições só pela observação e estudo. É preciso estar inserido no meio em que vivem, e só dessa forma será possível entender suas cicatrizes e onde os sapatos apertam. Os caminhos são diferentes de uma pessoa para a outra, e todos são seres humanos, com direito a espaço, respeito e aprendizado.

No entanto, é a velha história da empatia inexistente. Não há espaço para a população surda na realidade brasileira atual. O assunto é específico e nesse mérito não podemos mexer. Mas é esta a hora de levantar bandeiras pelo o que precisa ser ouvido, e acima de tudo, entendido. Os jovens, maior público do Enem, são aqueles que irão moldar o futuro de toda uma massa e para tal, a conscientização precisa acontecer desde já.

O Brasil precisa acordar para a inclusão efetiva das pessoas com qualquer grau de deficiência, fato que é garantido pela Constituição Federal: é um dever de todos e o dever não é posto em prática sem conhecimento de causa, mesmo que de maneira superficial. É preciso saber e não fechar os olhos para a realidade.

Observa-se, também, que tal comportamento é facilmente explicado pelo discurso neoliberal que a sociedade brasileira prega. Palavras bonitas de inclusão e de aceitação ao diferente são proferidas aos quatro cantos do país, mas, na hora de colocar em prática, nada, senão a hipocrisia dos olhos fechados e das críticas que recaem sobre um simples tema de redação em que a população surda conquistou para sua luta de causa, contra muitos outros que foram dados para a população considerada dentro da normalidade.

Vai muito além de conquistar uma nota máxima na redação. São vidas e sua qualidade que entra em xeque-mate junto aos dois milhões de brasileiros esperando melhorias e outros quase sete milhões de jovens que prestaram a prova.

Mais do que nunca, é necessário conquistar novos espaços. A semente foi plantada e agora precisa germinar para todos os lados. É preciso que a Libras seja disciplina efetiva e não só optativa de maneira teórica, de forma que essa conquista seja apenas a primeira batalha dessa guerra, que só é nomeada de minoria. Sempre tiveram surdos no Brasil e não são poucos. São anos de luta, de busca por reconhecimento e voz nas esferas educacionais, políticas e sociais. A causa estava invisível, pendendo inclusive para a solução inconstitucional da educação segregada, o que diminuiria ainda mais a democratização dos estudos e aumentaria a distância entre alunos com e sem deficiência.

O histórico é de violência e violação de direitos básicos. No passado, a população surda chegava a ter as mãos amarradas, para que pudessem aprender a falar e não pudessem fazer sinais. No presente, existem adeptos da oralização, que defendem que as pessoas surdas compõem uma cultura própria e precisam ser segregados. Tamanho absurdo não pode ganhar força entre as pessoas.

São vidas, pessoas com sonhos e aspirações iguais ao de qualquer outra. E, para todos, empatia é a palavra-chave. Empatia essa que vem de berço e é cultivada no dia-a-dia para disseminação do amor e da responsabilidade social. Não são mais as crianças surdas que precisam se adaptar, negar a sua identidade ou serem convencidas a viver em uma comunidade a parte, mas as escolas que precisam se modificar e se adequar para acolhê-las de maneira justa.

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Autoria: Supermercado de sentimentos, por Gabu Camacho

Leia ouvindo: my tears ricochet, Taylor Swift

Nossos dias de semana improváveis, meu quarto sempre com a porta fechada para te preservar lá dentro.
– “Redemoinho em dia quente, Jarid Arraes

Eu não me lembro bem da sequência de fatos em que tudo aconteceu desde o supermercado. Em um momento, eu estava lá fazendo compras com a minha mãe. Eu odiava fazer compras com a minha mãe. Enquanto ela percorria todos aqueles corredores, escolhendo o menor preço de cada produto, ora pedindo minha ajuda, ora agradecendo por eu ficar o tempo todo mexendo no celular, eu sentia que uma parte de mim estava faltando. Eu entrava no perfil do Julieu, via suas últimas fotos, seus últimos tweets e sentia meu coração doer.

Conheci Julieu em um grupo de WhatsApp que entrei. Ele mora em outro estado. Conversamos algumas vezes no privado sobre a vida. Sobre nós. Nos conhecemos e eu me apaixonei sem que ele soubesse. Sem sequer saber se ele nutria qualquer sentimento por mim além da pessoa que ele conheceu por um grupo de WhatsApp e que morava em outro estado. Já faziam dias que eu nutria meu sentimento com a imagem que eu tinha dele das redes sociais. Eu alimentava meu coração com os tweets, que eu lia com sua voz doce, eu alimentava meu sentimento com as fotos em suas redes sociais. Já ia fazer um mês. Três semanas para pensar com exatidão, que me preparo para falar com ele. Puxar assunto, ser mais presente, perguntar mais… Julieu parece uma parte do meu coração e eu nem sei como ele se tornou essa parte.

Nos meus sonhos, a gente sempre estava junto. Eu visitava sua cidade, em outro estado, e dormíamos lado a lado na cama de casal. Acordávamos juntos, olhando um para o outro, íamos conhecer a cidade, tomávamos um chocolate quente para nos esquentar do frio do sul. E depois sempre vinha a despedida, de quando eu precisava voltar. Seu sorriso ficaria guardado na minha mente pra sempre e nós faríamos juras da próxima vez em que conseguiríamos nos ver de novo. Nos meus sonhos, nossos pais aceitavam tudo. Tudo era fácil e a nossa idade era só mais um fator.

E então eu acordava. A lembrança dos sonhos da noite anterior pareciam lembranças de algo que já tinham acontecido antes. Sequer conseguia esquecer. Ah, Julieu, se eu tivesse coragem de falar tudo o que eu sinto. Se eu tivesse coragem pra ver todas as cores do mundo com você. Se eu tivesse coragem para falar, entender se era de fato recíproco e então sentir, de verdade, o cheiro do seu cabelo tocando meu nariz e provocando o meu piercing. Se eu tivesse coragem, Julieu.

“Pega a bolacha aí, coloca no carrinho.” Quando minha mãe disse isso, no supermercado, assenti com a cabeça e peguei dois pacotes de Trakinas de chocolate. Mas antes apertei enviar de uma mensagem que eu estava digitando há dias.

“Oi, Juli. Estou com saudade de você.”

Enquanto peguei a bolacha, meu celular tremeu com quatro mensagens novas de Julieu. Sorri por dentro. Cada átomo meu sorriu, mas resolvi esperar a compra acabar para responder. Ajudei minha mãe a guardar tudo no carro, sentei no banco do carona e seguimos para a casa. Tirei o celular do bolso e abri as mensagens.

“Oi, mozi. Que saudade de você também.”
“Sinto sua falta. Vamos assistir um filme juntin hoje a noite?”

Tremi, mas continuei lendo. Por que ele tinha me chamado de “mozi”? Ele nunca tinha me chamado assim antes. Seria esse o início da nossa tão sonhada reciprocidade? Será que todos os meus sonhos de conhecer o sul segurando a sua mão tão parecida com a minha se tornariam realidade?

“Por favoooooor”

E eu não demorei para responder.

“Claro!! Sinto muito sua falta. Qual filme vamos assistir?”
“Preciso deixar carregando antes com a minha internet, vc sabe”

“Um olhar no paraíso, moxi”
“É meu filme preferido da vida”
“Vai, completa o coração”

Ele mandou uma foto da sua mão, curvada, como se fosse um dos lados daqueles corações que fazemos com as mãos. Tirei foto da minha mão oposta, completando o coração, enquanto sentia o meu capotar na caixa torácica. Eu lembro dos detalhes até aqui. Depois, as coisas não são tão claras assim.

Em outro momento, eu estava vendo o filme juntin a Julieu. Comentamos, choramos, conversamos muito naquela noite até altas horas da madrugada. Eu já podia ver todas as nossas cores explodindo em alegria. Eu podia ver nossas mãos dadas no sul e as borboletas saindo do meu estômago. Certa vez li uma frase da Jarid Arraes que dizia, “você mexia com as cores das fitas, abrindo meus ouvidos avinagrados para a beleza das promessas” e eu me sentia assim. Com todas as cores do mundo.

Até que o filme acabou. Julieu dormiu. Ele provavelmente mandaria uma mensagem de madrugada se desculpando, então mandei boa noite e fui dormir também.

A mensagem não veio. Chamei no dia seguinte e Julieu não respondeu. Ele nunca mais respondeu e seus tweets tentavam adubar o meu coração que estava secando, mas não eram suficientes. Julieu nunca mais respondeu nenhuma mensagem, nunca mais sequer visualizou.

Seu Twitter ficou privado e meus galhos secaram. Meus galhos secaram um a um.

Cada dia que eu precisava colocar “Um olhar no paraíso” para rodar no computador enquanto eu tentava pegar no sono, calando todas as minhas vozes era uma estaca no meu coração cravada com o nome de Julieu. Ele não me bloqueou das suas redes sociais, mas ele me bloqueou da sua vida.

Eu precisava de notícias, então pesquisei seu nome no Google e vi que outra pessoa twittara uma foto dele, sentado na escrivaninha do seu quarto com a parede rosa, lá no sul. Pelo ângulo, a pessoa estava na cama. Julieu estava despreocupado, mexendo no celular com uma camisa de botão lindíssima, uma calça jeans rasgada no joelho e aquele tênis preto de skatista que ele sempre usava. O mesmo que ele usou nos nossos passeios oníricos. A legenda dizia “moxi está distraído hoje”.

E depois desse dia, nunca mais tive sequer uma notícia da outra parte do meu coração.

Tudo ficou preto e branco e minhas noites se repetem com o filme rodando em repetição.

Todo dia é a mesma noite para mim.

A última noite com Julieu.

assumir lgbt
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Como me assumir LGBT para os meus pais?

Para saber como se assumir LGBT, antes é preciso entender que este é um processo delicado, que demanda planejamento, coragem e muita calma. É como renascer para algumas pessoas e é um dia que pode ficar marcado para sempre na memória, tanto para um lado bom, quanto para um lado ruim, afinal, nem todo mundo pode ter e conquistar o apoio de familiares e amigos.

É fácil esbravejar aos cantos da internet que é só sair do armário e se deixar levar, afinal tomar as rédeas da própria vida e fazer o que se bem entende, é um direito do ser humano. Mas a realidade não é essa. Ainda existe muita gente preconceituosa por aí e uma delas pode ser quem você mais ama.

Foi o caso de Jonatas Maia, de 28 anos. “Eu tinha meus 15 para 16 anos”, relembra, “sempre gostei de homens, mas ao mesmo tempo sei que não podia falar. Meu pai é extremamente machista, então eu sempre tive que fingir. Certo dia, eu queria cortar meu cabelo e fui em um cabeleireiro que era gay, porque eu precisava conversar com alguém. Depois, acabei indo na casa dele, a gente ficou e uma vez meu pai me seguiu e viu tudo”, conta.

Jonatas foi expulso de casa pelo pai, sem ter contado que era gay. Ele descobriu. “Acho que foi um dos piores dias da minha vida. Ele chegou e falou assim: ‘tu quer ser viado? tu quer ser gay, tu quer ser frutinha, tu quer ser marica?’, nesses termos, horríveis. ‘Então, já que é essa tua escolha, tu pega, tu tem 10 minutos’, e eu peguei uma sacola, ‘tu vai pegar todas as tuas roupas e tu vai embora da minha casa porque filho meu não é viado, eu projetei em ti ter filho, tu casar e tu é uma mariquinha, tu é um viadinho, então eu não quero nunca mais te ver na minha frente. Quero que tu saia da minha casa’”, se emociona ao relatar o último dia que falou com o responsável após se assumir gay.

Embora a representatividade na televisão e na mídia esteja aumentando a cada dia, ainda sim é preciso avaliar o contexto social em que vivemos. É linda a coragem para ser você mesmo, mas sua segurança deve vir em primeiro lugar.

Por isso, conversei com o psicólogo Caio Moura, de São José dos Campos sobre como podemos nos assumir para as pessoas que nós amamos. Há um jeito certo? Há uma forma de preparar o terreno?

Conheça sua família antes de se assumir LGBT

“Não é de hoje que conhecemos nossos pais e cada família é uma família”, aponta Caio. Com base nisso, conseguimos entender e imaginar as possíveis reações que eles teriam. Por mais que você tenha que lidar com uma situação difícil, essa não é sua situação final.

Fique atento a comentários sobre LGBTs

Veja notícias e o que passa na televisão e como eles se portam diante disso. “Que ideias eles costumam apoiar, qual é o viés político, qual relação eles tem com pessoas LGBT”, completa o psicólogo.

Inclua discussões da temática LGBT na sua casa

Aos poucos, inicie alguns assuntos baseados nas notícias, novelas e coisas que possam se aproximar com o conteúdo que seus pais ou responsáveis consomem. É preciso quebrar esse estigma que a comunidade LGBTQ+ pode ter para algumas pessoas.

Além disso, há uma iniciativa da organização It Gets Better Brasil, que visa empoderar e conectar jovens LGBTQ+ pelo país. Eles também são responsáveis pela atividade “Me percebendo no mundo”, que facilita o diálogo entre pais e filhos. “O jogo traz luz sobre diversas questões como saúde mental, empatia, identidade, orgulho, comportamentos tóxicos… Nós apenas começamos nosso trabalho aqui no Brasil e ainda vem muita coisa boa por aí”, explica Bruno Ferreira, coordenador de conteúdo e redes sociais da iniciativa. Para baixar a atividade, clique aqui.

A observação pode ser muito importante para determinar a hora e maneira certa de contar. Estabelecer um diálogo é muito valioso, já que vários responsáveis podem se sentir traídos ao descobrirem sozinhos. “Eu passei mais ou menos um ano sem falar com eles, foi bem punk, porque eu passava até mesmo pelo meu pai na rua e não me cumprimentava”, lamenta Jonatas, que após a expulsão, teve que iniciar sua vida sem nenhum apoio de familiares próximos.

No entanto, a poeira baixou e hoje, as coisas estão mais calmas para ele. “Sou casado com um rapaz, nós temos união estável, temos dois cachorrinhos”, sorri aliviado e completa, “Fiz faculdade, me graduei, me pós-graduei, trabalho na minha área. Tento ajudar outras pessoas assim também, com a minha história”.

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A transfobia no ambiente corporativo

Desde os 8 anos de idade, Alberto* se olhava no espelho e se via menino. Quando não tinha ninguém em casa, se recorda de colocar os ternos, camisas e gravatas do seu pai. Ia na frente do espelho e “fazia a barba”. “Sempre me vi diferente das normas. Cresci e isso se intensificou de tal forma que eu não me encaixava em nada”, relembra. Um homem escondido por trás de uma vivência feminina que não era sua. Aos 20 anos, resolveu pesquisar sobre pessoas travestis e então, se questionou sobre gênero. O cara que vivia escondido gritou. “Foi como um soco no estômago, como se eu abrisse os olhos pela primeira vez em 20 anos. Achei vídeos de pessoas trans no Youtube que me ajudaram a procurar uma orientação profissional sobre o meu caso em particular”, acrescenta. Iniciou a transição hormonal. “Foi uma das coisas mais libertadoras que já vivi. A minha primeira aplicação, os primeiros pelos, a barba, o corpo tomando as medidas mais masculinas, de acordo com o estereótipo… Ainda é surreal quando posso me olhar no espelho e me ver inteiro”, se emociona. Mas depois de toda a adrenalina e expectativa, veio a parte ruim.

Sem retificar seu nome, Alberto* era negado em quase todas as entrevistas de emprego. “Fiquei um ano inteiro sem procurar trabalho, não tinha mais vontade de sair na rua.”, conta. Mas a coragem veio e ele enviou um e-mail. Aquele que mudaria sua vida. E de fato, veio o retorno de um parque temático próximo a São Paulo. Sua solução tinha chego, era o grande dia da entrevista.

“Primeiro tive que explicar para o entrevistador que sou um homem trans. Foi a coisa mais difícil de se falar. Ele respondeu ‘Jura? Nem parece!’ Fiquei chocado tentando entender como uma pessoa trans deveria parecer.”, comenta. Interessado no emprego, ele ignorou e seguiram a entrevista. Os cumprimentos vieram junto com as boas vindas. Alberto* havia assumido para o mundo que era um homem trans e merecia ser respeitado como tal, mesmo que ainda usasse seu nome social. Depois da entrevista, veio o treinamento e a hora de receber os uniformes. Cada pacote, com o nome do respectivo funcionário, menos de Alberto*. No dele, constava seu nome de batismo. “Fiquei muito desconfortável, o suficiente para quase desistir e voltar pra casa.”, pondera.

O uso e respeito ao nome social de pessoas trans é garantido pelo decreto de nº 9.278/18 que regulamenta a lei nº 7.116, de 29 de agosto de 1983. Alberto* tinha o direito de ser tratado pelo seu nome social, mesmo sem retificar seus documentos, e ele teve coragem de se impor.  Uma pesquisa do instituto Center for Talent Inovation descobriu de 61% dos LGBTQ+ brasileiros escondem seu gênero ou sexualidade no trabalho e de acordo com informações da União Nacional LGBT, o tempo médio de vida de um transgênero no Brasil é de apenas 35 anos. Isso coloca o país na posição de nação que mais mata transexuais e travestis no mundo. A inclusão de pessoas LGBTQ+ deve ser feita diariamente no mercado de trabalho, mas não são todos ainda que sabem disso.

Transfobia velada

Alberto* começou a trabalhar no famoso parque de diversões. Um lugar enorme, cheio de pessoas transitando a todo instante. Apenas mulheres no corpo de funcionários e alguns poucos homens. Parecia que o pior já tinha passado, mas o pior ainda estava por vir. “Uma funcionária me fez a seguinte pergunta ‘você é homem?’ E eu com a maior naturalidade do mundo, respondi que sim. Ela disse em seguida que não havia visto nenhum volume nas minhas calças e por isso havia deduzido que não”, recorda Alberto* com o rosto vermelho de vergonha e a voz quase falhando.

Para a psicóloga Denize Silva, as empresas precisam sair do formato conservador de anos atrás. “Os funcionários não são uma máquina, é preciso saber o lado pessoal e profissional. Muitas só visam seu movimento, e por isso existem altos níveis de adoecimento”, aponta.

“Nunca se teve uma reunião com todos os funcionários sobre diversidade de gênero, sobre respeito às diferenças. Nunca houve preparo.”

E ele foi atrás dos seus direitos dentro da organização. Conversou com seu superior e a resposta veio genérica: “Era só uma brincadeira”. Brincadeira que mata 1 LGBTQ+ a cada 23 horas no Brasil, segundo relatórios do Grupo Gay da Bahia (GGB). No entanto, sem saber lidar, a empresa  o indicou para mudança de loja, dentro do parque. “Lá, eu vivia dizendo que estava no céu. Enganado mais uma vez, claro”, contesta.

Na primeira semana, vários funcionários foram até seu posto perguntar se Alberto* era um homem trans. Quando não eram funcionários, eram visitantes do parque. “‘Moça, quero esse combo aqui.’ E eu com toda a educação do mundo corrigia e informava meu nome. Logo, bolei um plano de colocar um adesivo no lado esquerdo da camiseta me identificando, já que o crachá da empresa não tinha meu nome, nem foto”, revela. Deu certo e mesmo com a quantidade de transfobia no seu cotidiano, Alberto* estava se adaptando ao novo ambiente de trabalho.

PARA ENTENDER:

– Nome Social: É o nome pelo qual pessoas trans e intersexuais se autodenominam e escolhem ser identificadas em seu meio social. É reconhecido como meio legítimo de identificação de um indivíduo pelo Governo Federal;

– Transfobia: Atitudes, sentimentos ou ações negativas contra pessoas trans. Assim como a homofobia são atitudes, sentimentos ou ações negativas contra pessoas homossexuais;

– Cisgênero: Indivíduo que se identifica em todos os aspectos com seu gênero de nascença. Uma pessoa transgênero não se identifica com o gênero que nasceu;

– Heterocisnormativo: Termo usado para descrever situações que degradam ou marginalizam pessoas que estejam fora do padrão heterossexual e cisgênero. Também há a variação heteronormativo e cisnormativo.

Transfobia escancarada

Uma nova mudança de setor chegou na vida de Alberto*. “Fui fazer limpeza de pratos e utensílios de cozinha. Lá, virei pesquisa de campo das funcionárias. Me olhavam torto, outra deu em cima de mim várias vezes.”, confessa envergonhado e acrescenta, “Ela me chamou para ir numa parte de trás da cozinha, onde batíamos o ponto. Lá ela me beijou, sem eu pedir. Fiquei paralisado, eu tinha acabado de sofrer um abuso”. E era isso mesmo. O assédio sexual, por definição, ofende a dignidade, honra, o direito de preservação da intimidade e da liberdade sexual da vítima. O Direito do Trabalho admite dois tipos de assédio no ambiente laboral: por chantagem ou por intimidação. O primeiro quando alguém de hierarquia superior promete vantagens em troca de favores sexuais ao suposto favorecido. Se ele não cumpre, pode perder o emprego. O segundo, não há a presença de hierarquia superior, mas importunações vindas de incitações sexuais, físicas ou verbais. O caso de Alberto*.

E as coisas chegaram a piorar. “Chegava no vestiário masculino e em vez de me trocar na frente de todos, entrava em uma cabine que fedia a mijo. Nunca me senti seguro para usar o chuveiro. Vivia com constante medo de alguém”, denuncia o jovem.

A vítima de assédio pode pedir rescisão indireta do contrato de trabalho, com os mesmos direitos de uma demissão sem justa causa: recebe todas as indenizações previstas em lei, como multa de 40% sobre o FGTS, projeção de aviso prévio, 13º salário e férias.

O despreparo do departamento pessoal com pessoas trans

“A gota d’água foi na triagem da cesta básica”, se esgota Alberto* ao relembrar se sua jornada pelo parque. Um dia, ao buscar sua cesta, como é de direito em várias empresas, seu nome não constava na lista. Nem nome social, nem nome de batismo. “A funcionária procurou e nada. Sem sutileza, ela gritou em alto e bom tom para no mínimo 20 pessoas atrás de mim ‘ou é fulana ou é Alberto*, os dois não podem’“, suspira e questiona, “Como uma empresa que divulga ser a favor dos direitos LGBTQ+ não tem orientação com seus próprios funcionários?”

E de fato, ainda há muito despreparo por falta das empresas no âmbito de inclusão de LGBTQ+ no mercado. “O RH cobra requisitos heterocisnormativos e de difícil alcance especialmente para a população trans, como idiomas, informática, experiências prévias e afins. E por fim, quando contratados, no que diz respeito ao uso de uniformes binários e reforçadores de esteriótipos de gênero, desrespeito ao nome social, boicotes, discriminações e afins, são outras dificuldades”, aponta Felipe Daier, advogado do Núcleo de Prática Jurídico, Social e Apoio Psicológico da Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo.

Mas se o parque que Alberto* trabalhava não era preparado, ele era. No seu terceiro mês, foi até São Paulo e retificou seu nome e gênero no cartório. Depois de uma semana, com sua nova certidão em mãos, mostrou par a sua supervisora. Todos deram os parabéns, inclusive o setor de Recursos Humanos (RH), que alterou sua folha de ponto. Tudo parecia bom demais para ser verdade.

Dias antes de um evento específico que celebra a diversidade, Alberto* teve uma luxação no joelho. Foi até o pronto atendimento da empresa, tomou remédio na veia. Com muita dor, pediu para ser dispensado. Pedido negado. “Nesse dia, fui até o RH e pedi minha demissão. Justifiquei que estava insatisfeito com a empresa. No fundo, eu deveria ter dito. Eu deveria ter exposto o caso de abuso, as transfobias, o medo, os olhos constantes que me observavam, o descaso com o meu corpo, com as minhas dores. Mas eu só queria sair dali correndo. Dois dias depois, me dispensaram”, queixa-se cabisbaixo. “Nunca relatei nada disso até hoje. Só cheguei a comentar sobre o beijo. Acharam engraçado”, lamenta.

Como mudar o cenário

Alberto* não é o primeiro nem o último a não ter coragem de contar. Sua história dói na alma e a necessidade de ter um emprego muitas vezes fala mais alto. Ele diz que nunca erraram seu nome na sua frente, mas todos os funcionários sabiam seu nome de batismo. Não adianta ter uma inclusão que não sai das portas da diretoria. “Nunca se teve uma reunião com todos os funcionários sobre diversidade de gênero, sobre respeito às diferenças. Nunca houve preparo.”, ressalta Alberto*.

E se você se pergunta se é preciso ter, a história dele te responde. Sim. Ele é um personagem entre milhares de outras pessoas trans que procuram seu lugar ao sol.

É preciso ter cabines fechadas nos banheiros, principalmente se os funcionários tomam banho ou trocam de roupa na organização. Palestras sobre diversidade, inclusão de pessoas não-binárias, trans e travestis também é uma realidade, além é claro, de aplicar o respeito e passar a todas as escalas.

Érica Souza, analista de Recursos Humanos de uma grande multinacional do ramo alimentício defende a ideia de que é preciso fortalecer as diretrizes de inclusão e diversidade. “Acredito que através de feedbacks quando se vê algo que não condiz com a postura de inclusão e diversidade é muito possível”, demonstra.

Além disso, é preciso estar na cultura da empresa os princípios e valores com todas as pessoas. É preciso ter qualidade no relacionamento entre os pares de trabalho e acompanhar, mesmo pós-feedback para garantir que casos como o de Alberto* não venham a se repetir.

* O nome foi trocado para manter a identidade do entrevistado preservada.

Atualizações

“Colocando o tijolo e o cimento, dou um tapa na cara do meu passado”

Oi amô, tô pronta! Tô aqui, na pista. Foi esse um dos primeiros contatos que tive com Igor William Lopes, 29 anos, morador do Conjunto Habitacional Bairro Treze, no Rio de Janeiro. Conheci sua realidade depois que meu namorado me enviou um print de sua história, estampada em um grupo LGBT do Facebook, dando vida a Safira O’hara, uma drag queen pedreira. “Vou respondendo aos poucos, ô Jesus, ô vida. Tô aqui numa loucura, nêgo, pra terminar esse telhado, mas vamo lá!”, disse entusiasmado, mesmo depois de responder às mesmas perguntas inúmeras vezes para jornalistas diferentes.

Igor e sua drag, Safira, ficaram conhecidos em abril de 2019, após a mesma postagem viralizar e rodar o Facebook milhares de vezes. A drag queen pedreira. Várias reportagens nos mais diversos sites. “Isso é algo motivacional. Uma quebra de estereótipos da sociedade, né? Drag pode tudo. Somos seres humanos, somos seres normais. Somos pessoas. Porque não, entendeu? Cada tijolo que eu coloco, é como se eu desse um tapa na cara do meu passado. É isso aí, vamos construir.”, relata emocionado com a possibilidade de inspirar pessoas. E construir sua história sem depender de ninguém.

“Vítima é o caralho. É partir pra cima, entendeu? É meter a mão na massa, botar o tijolo e vambora, vambora.

Igor foi expulso de casa aos 19 anos pelos familiares. Mas, como ele mesmo diz, são coisas do passado, como todo LGBT vive e conhece. Viveu 10 anos morando de aluguel, mas sempre sonhou em ter sua casa própria. “Acho que todo LGBTQI+ tem que ser sua casa própria pra ter suas liberdades, para que sua felicidade possa habitar”, confessa. Na época, já fazia teatro e nele, conheceu a arte transformista. Diz que já era transformista antes mesmo de ser. Foi se apaixonando, descobrindo sua sexualidade e se entregando a arte cada vez mais, dentro do período da expulsão. Mas frisa que não foi por isso. Foi por conta de sua sexualidade. “Aí eu tive que me virar, né? Há 10 anos, só tinha computador na lan house a um e cinquenta. Era você mesmo e se vira”, relembra Igor.

Os dias que vieram depois, não foram nada fáceis, principalmente no começo. “Tive que sair montada de casa, e isso era outro preconceito que eu sofria. Tipo assim, ‘porra, a gente tem que aturar o gay, agora tu tá virando mulé?’. Pensavam que eu tava virando mulher trans e coisas e tal”, conta de queixo erguido.

Candomblecista, o filho de Logunedé, nessa época, morava de aluguel em uma casa de pessoas evangélicas, parceria que não deu certo por muito tempo. Mudou-se após pedirem a casa, e foi em busca de outra, caindo aos pedaços, como William mesmo descreve, porém com aluguel em conta. “Mas eu sonhei em ter minha própria casa, né? E as casas eram num valor acima de setenta mil e eu nunca terei esse valor”, pondera. Mas, se tem uma coisa que Igor e Safira sempre souberam fazer é dar tempo ao tempo. E apareceu Rodrigo Miller, grande amigo, que conseguiu um terreno para eles. “Desde então, eu venho construindo a minha casa. Na vida, a gente não constrói nada sozinho”, ressalta e acrescenta emocionado, “Eu tenho ajuda, e tem histórias que me motivam. Eu vi relatos de mulheres que são pedreiras. Então por que eu também não posso ser? Se elas aguentam o rojão, por que eu não vou aguentar?”

E Igor aguenta. Sua história já chegou em grandes portais de notícia como OGlobo, Uol e Razões para Acreditar. Já recebeu milhares de histórias no Instagram de LGBTs que acreditavam que pedreiro não era profissão para eles. “Eu fiquei muito feliz, porque com isso, eu vi o relato de um menino no Instagram que é auxiliar de pedreiro, e ele chegou pra mim emocionado, falando ‘nossa, tudo bem que eu já imaginava encontrar um gay nessa profissão, mas não uma drag queen… Isso me emocionou muito, porque eu achava que trabalho de gay é cabeleireiro, maquiador, artista, balé, essas coisas assim’. Então é isso, motivar as pessoas. Motivar os LGBTs para eles terem a casinha deles.”, relembra cheio de energia para colocar o próximo tijolo.

Porra, a gente tem que aturar o gay, agora tu tá virando mulé?

Energia que ele transforma para ir pra cima dos desafios, acordando dia após dia, superando todos os seus problemas, depois das injustiças do passado. “Lá no meu trabalho tinha uma menina que o marido dela era pedreiro e ela era ajudante dele, e eles construíram a casa para morar com os filhos. Por que que eu não vou meter a mão? Vou sim. Então é bom que eu colocando o tijolo, colocando o cimento na parede, eu dou um tapa na cara do passado. Porque eu acho que o passado foi muito injusto comigo, entendeu?”, se emociona ao lembrar, mas logo se recompõe dizendo que nós, LGBT, devemos ir para cima. “Vítima é o caralho. É partir pra cima, entendeu? É meter a mão na massa, botar o tijolo e vambora, vambora. Surgiu a oportunidade, agora é construir a casa.”, retruca.

E de fato, Igor William não deixou nenhuma oportunidade escapar. Hoje, mantém uma relação saudável com a mãe, mas cortou laços com grande parte de sua família. “Eles lá e eu cá. Minha mãe não é mais aquela pessoa de 10 anos atrás e nem eu. Ela me apoia e hoje estamos bem melhores, né? As coisas mudam, nada melhor que dar tempo ao tempo”, suspira e finaliza, preocupado. “Espero que você tenha gostado da minha história, que eu tenha te interessado. Estamos aí, tamo junto!”

Sim, Igor! Estamos todos juntos nessa.

Montanha russa
Autorais

Autoria: Montanha russa, por Gabu Camacho

Nota de início: Montanha russa foi escrito há muitos anos. Mais de cinco. Ele está presente no primeiro livro, O garoto que usava coroa, mas diferente por lá. Na época em que o livro foi escrito, eu ainda não tinha me assumido LGBTQIAP+ e tive medo de entregar um texto explicitamente LGBTQIAP+ para ser publicado. Apesar do livro ser todo sobre essa temática, de forma mais sutil, eu tive medo na época e por isso, fiz a Stephenie Meyer e troquei o gênero dos personagens. Essa aqui é a versão real. Boa leitura!

Afiadas são as flechas de um coração partido.
— Cassandra Clare, “Cidade do Fogo Celestial”.

Minha animação estava ridiculamente alta. Minha avó havia me chamado para dormir em sua casa neste fim de semana que precedia o natal, afinal, meu primo Matthew chegaria com seu pai Pily do interior, na madrugada. Segundo ela, nós éramos grandes amigos na infância, eu não me lembrava disso, só me lembrava dele, e da sua presença onipresente em meu Facebook.

— Ele disse estar ansioso para te ver, Edmundo. E vocês podem aproveitar o parque de diversões aí na frente. Tudo bem se ele ficar no seu quarto? – Minha vó era muito preocupada em acomodar bem as pessoas.

— Tudo bem sim, vó. – Concordei rapidamente e voltei meu olhar para a janela, que dava numa movimentada avenida, e além dela, havia um terreno baldio, do tipo que circos e parques de diversões se instalavam em datas sublimes. Um parque estava lá agora, e eu via crianças felizes com seus ursos enormes e outras mais felizes ainda com pequenas bolinhas pula-pula.

— Bom, podemos dormir. Quando chegarem, saberemos. Já deixei o café pronto. – A preocupação pelo bem estar era uma coisa que me fascinava na minha avó. Apenas acenei em concordância e segui para o meu quarto, fechando a porta. Tinha duas camas, uma box de casal e outra de solteiro. Deixei-a preparada para Matthew, meu primo, que apesar de exalar uma aura mais velha, tinha quase a minha idade.

Sentei-me a beira da minha cama, olhando para o nada, enquanto retirava o meu colar cujo pingente era uma chave, do pescoço, e me deitei rapidamente olhando para o teto. Peguei no sono em algum momento despercebido, mas pareceu apenas um piscar de olhos quando uma buzina irrompeu em minha mente. Chegaram.

Um micro-ônibus estava parado em frente à casa da minha avó, com todos da família do interior descendo, gradualmente. Ela e meu avô estavam emocionados pela surpresa e eu estava ao canto, com meu cabelo negro desgrenhado cobrindo os olhos, esperando por um rosto que pudesse ser conhecido.

— ED! Como você está lindo, garoto! – Era minha tia Lucie, com seu jeito todo espevitado. Era uma das únicas que gostava e realmente conhecia do interior.

— Ahn, obrigado tia… – Mas ela já tinha saído para abraçar as pessoas entre si. Entrei na casa e me sentei no canto do sofá, querendo me tornar invisível enquanto tentava não ser mal educado e voltar para o quarto. Coloquei a mão involuntariamente no meu pingente de chave, já havia se tornado algo que lhe trazia calmaria.

— Hmm, oi? – Reconheci seu rosto imediatamente. Queimava em vermelho, parecia estar tímido, assim como eu.

— Oi, Matthew. Como está? Tio Pily, oi. – Levantei-me do sofá e abracei ambos. Matt tinha um cheiro masculino adocicado, meu tio cheirava a álcool.

— Grande homem, Ed. Pode ajudar Matthew com as malas e mostrar onde ele deve dormir? Já está com sono. – O tom dele não transmitia orgulho.

— Claro. Vamos, Matt… Matthew. – Droga, estava corando e nem sabia o porquê.

Pegou a maior mala e seguiu o corredor até seu quarto, nos fundos, onde se sentou na cama mais uma vez.

— Quer dar uma volta? – Eu estava ciente da hora, mas o parque de diversões ainda estava aberto.

— Claro. – Ele passou a mão nos seus cabelos negros, que se misturavam arrepiados de maneira preguiçosa.

Atravessamos a rua e fomos juntos para o parque, conversando sobre coisas aleatórias. Dez minutos depois, já éramos melhores amigos de infância. Matt tinha um jeito de criança, no portar assim como no pensar. Parecia um bebê em corpo de adolescente de dezessete anos, e era isso que talvez houvesse me cativado.

— Quero uma bolinha pula-pula do Homem Aranha. – Ele disse certa hora, olhando para mim.

— Vou conseguir uma pra você. – Eu sorri, mas perdi todo meu dinheiro tentando acertar o alvo, e ainda assim não havia conseguido o prêmio. Matt parecia desapontado, mas seguimos para minha avó, mais uma vez. Todos já dormiam, então fomos para fazer o mesmo. Deitei na grande cama de casal e acordei no dia seguinte, já de tardezinha, com meus braços apoiados em um saco que parecia respirar…

Não era um saco. Era Matthew.

Levantei-me silenciosamente e coloquei meu celular na tomada, depois de tirar uma foto do rosto inocente que havia passado a noite ao seu lado. Comecei a me sentir mal desde então, odiava me apegar às pessoas. Eles sempre iam embora, depois. O celular vibrou com a chegada do conselho diário:

Você pode estar em um relacionamento por dois anos e não sentir nada. Você pode estar em um relacionamento por dois meses e sentir tudo. Tempo não é uma grandeza de qualidade, de paixão ou de amor.

Sorri pro meu primo deitado na cama e fui tomar café, com as mãos para dentro da manga longa do pijama comprido.

— Quer voltar ao parque? – Matt chegou pouco tempo depois na mesa de café. — Podemos ir à montanha russa hoje.

— Claro que sim! – Eu estava adorando passar tempo sozinho com Matthew, nossas conversas eram únicas e parecíamos ser irmãos. Isso me deprimia. Sabia que logo depois ele voltaria para a cidade e então, nunca mais nos veríamos.

Nós fomos, brincamos, corremos. Matthew conseguiu uma bolinha do Homem Aranha e logo voltou para a casa. Fiquei no parque mais uns minutos, queria um presente mais especial para ele. Quando voltei, a casa era só berro.

— DELINQUENTE! NÓS VOLTAREMOS PARA CASA AINDA HOJE! – Era meu Tio Pily.

— Calma, Pily… Não precisa tratar o garoto assim. – Minha vó estava calma.

Entrei correndo na casa, mas fui impedido pelos meus pais na cozinha, para chegar até a porta.

— Ed, pegue suas coisas. Estamos indo embora. – Minha mãe soava séria.

— Devo falar com Matt antes?

— Claro, Edmundo. – Meu pai estava compreensivo, como sempre ocorria quando se tratava de sua família.

Entrei no banheiro, mas Matthew não estava para conversa, então logo saí e voltei ao quarto, em prantos, fingindo arrumar minhas coisas, enquanto caçava por um pedaço de papel. Estavam gritando para que eu fosse embora, quando meu tio esmurrava a porta do banheiro querendo que Matt saísse. Tirei meu colar de chave, envolvi em um papel e escrevi no meu garrancho:

Chave para os seus sonhos.

Deixei onde sabia que ele veria, e fui embora. Não sabia o que significava aquele gesto, mas agora não importava mais.

Então, fui embora convicto de que Matthew jamais veria minha carta.

Convicto de que jamais veria Matthew novamente.

Convicto de que meu melhor primo jamais abriria os olhos novamente.

Convicto, de que Matthew havia se suicidado no banheiro da minha avó.

Autorais

Uma crônica sincera sobre acreditar

Eu nunca acreditei muito em mim mesmo. Apesar de saber disso, afinal, eu é quem não acreditava, eu só me dei conta agora. Sim, agora. Terminar a faculdade é uma jornada de autodescoberta tremenda. Começar a faculdade também é.

Quando saí do ensino médio, minha mãe deixou que eu ficasse seis meses em casa, decidindo o que eu queria ser e descansando um pouco. Ela sabia que eu tinha dado tudo de mim estudando de forma integral por três anos, com um técnico em informática junto.

Nesse meio tempo, eu criei um blog. O Ink Nightmare, que veio a ser o Beco Literário depois. Não sei de onde veio o nome, só veio. Eu me dediquei a literatura nesse tempo. Acabei entrando em Engenharia depois. Não tinha uma única pessoa, um único dia que não tenha me dito que eu estava desperdiçando meu talento naquela faculdade. Troquei para Jornalismo. O Beco Literário cresceu. Era o projeto da minha vida.

Eu sonhava em escritórios enormes, pessoas trabalhando e uma super empresa… de literatura. Conheci muita gente. Confiei em muita gente. Tentei de todas as formas fazer o Beco “acontecer” como empresa. Nunca implementei uma ideia que tenha sido genuinamente minha. Sempre tinham interferências no caminho.

O Beco entrou pelo beco escuro e se perdeu. Hoje vejo que era óbvio que isso aconteceria. Na época, eu ainda não sabia. Desisti de tudo inúmeras vezes. Eu não quis mais saber.

Falei para todo mundo que o Beco Literário faliu. Fechou. Que eu nunca mais ia voltar. Eu tinha vergonha dele. Achava que não me encaixava naquilo. Fiquei quase um ano com ele fechado, achando que era definitivo.

E da mesma forma que as coisas deram errado antes, continuaram dando “errado” depois. Nunca consegui cancelar a hospedagem, fechar o site, excluir as redes…. Nunca deixaram de me chamar de “Gabu Camacho do Beco Literário”, mesmo me enveredando por outro nicho. Era parte de mim.

Todo mundo acreditava no Beco mais que eu mesmo. Nem todos de forma positiva. Alguns eram gananciosos e com olhar de inveja. Mas acreditavam. Todos, menos eu.

Todo mundo me desencorajava com ele e eu resolvia parar, mas ao mesmo tempo o mundo não deixava com que eu parasse…. Impasse. Havia algo que eu precisava transpor.

O acreditar. Acreditar em mim mesmo. Acreditei e cá estou eu, tentando de novo. Dessa vez, 100% do meu jeito. Como eu acredito que deva ser. Se não der certo, pelo menos, eu sei que a culpa é minha agora.

Mas eu acredito, pela primeira vez, eu acredito.