Querido Ex, (que acabou com a minha saúde mental, ficou milionário e virou uma subcelebridade) é um livro do autor brasileiro Juan Jullian que tive o prazer de ler e analisar nas últimas semanas. Surtos à parte, vou me concentrar aqui nesse texto em fazer uma análise psicanalítica da obra, com alguns pontos que pude observar e achei importante trazer à luz, principalmente com a observação que dá título ao meu texto.
Querido ex é uma obra de escrita terapêutica do nosso protagonista, que não sabemos o nome até então, em sua batalha por ressignificar afetos de um relacionamento tóxico do passado, enquanto passa pelas fases do luto ocasionado pelo término repentino. O livro é como se fosse uma sessão de análise. Ele escreve cartas para o seu “Querido ex”, relembrando do passado enquanto apresenta seu presente e se projeta para o futuro.
Logo no começo do livro, sabemos que ele está claramente passando pelas fases do luto. Em alguns momentos, a negação está mais explícita, em outros, há a raiva, mas ele se percebe, na maior parte do tempo, na barganha. Aquela fase em que pensamos no que poderia ter sido feito de outra forma, no que poderia ter sido diferente. A narrativa se desenrola aqui, apesar de percebermos alguns momentos de depressão e por fim, a aceitação.
Mas, vamos começar falando do relacionamento abusivo que o nosso protagonista estava inserido com o seu “Querido ex”. Logo nos relatos iniciais, percebemos um chiste muito forte. E, segundo Freud, ele é uma das formas que o inconsciente encontra de escapar seus conteúdos recalcados, escondidos. E há muitos abusos disfarçados de chiste: você deveria fazer academia! Calma, é só uma brincadeirinha. Sabe aquele ditado que diz que toda brincadeira tem um fundo de verdade? Essa é a raiz do chiste, que está explícita bem quando começamos a conhecer o relacionamento entre os dois.
Em suas viagens entre passado e presente, percebemos também alguns momentos de negação. Ele chega a duvidar de sua percepção, dos seus sentimentos… Será que o Querido ex era abusivo assim mesmo? Será que as coisas foram dessa forma? Ou será que estou exagerando? E esse é um comportamento muito presente no abuso, principalmente sob a forma de gaslighting.
É então, que chegamos na parte que mais gostei de analisar do livro todo: o recalque. O protagonista se reconhece como recalcado em vários momentos da narrativa, mas sem saber, inconscientemente, que ele de fato, é recalcado sob a ótica da psicanálise. Ele tenta esconder várias coisas no seu inconsciente, fingir que algumas situações não aconteceram. E como isso se chama? Recalcar. Mas, essas coisas que ele gasta tanta energia tentando esconder, hora ou outra escapam e querem ser resolvidas. Seja por meio dos seus pensamentos destrutivos, seja por meio da conversão somática (ele tinha ansiedade e de vez em quando, seu sonambulismo voltava). É o que chamamos de retorno do recalcado. Tudo o que ele tenta jogar pra baixo do tapete, volta. Sempre volta. Sua analista no livro aponta essa questão de forma primordial com a frase: “Os traumas que você finge não existir.”
Durante toda a narrativa em que vamos conhecendo o Querido ex, é impossível não perceber uma inversão de papéis muito grande, que também é percebida pelo nosso protagonista em algumas horas: seu ex-namorado assumindo papel de seu pai. Ele constrói suas frases com tons paternalistas, sempre tentando repreendê-lo. O pai, na psicanálise, é aquela figura que impõe a ordem, que castra, impõe os limites e consequentemente, contribui para a formação do nosso superego. E o Querido ex assume esse papel. Ele castra a todo momento o narrador.
O Querido ex exerce para o protagonista um papel extremamente machista e falocêntrico, que condiz com o patriarcado. Por ser o ativo da relação, ele se acha o “mais macho” ou então, o “menos gay” e se vê na posição de castrar o nosso narrador, também por conta dele se achar superior por ser branco. De exibir um papel de poder, de impor regras, limites, morais… Esse poder excede a simples inversão de papeis que vemos no desenrolar da história e chega numa posição de ser uma herança social.
O falo, na psicanálise, representa o poder da superioridade masculina, o poder que um homem acha que exerce sobre alguém por ter um pênis (falo). O engraçado é que na relação que se desenrola no livro, ambos possuem o pênis (teoricamente, o falo), mas um acha que tem o poder sobre o outro só por ser o ativo da relação. O quanto isso diz sobre várias relações homoafetivas entre homens cisgênero por aí?
Além de todos esses pontos, ainda podemos observar mecanismos de defesa do ego do protagonista entrando em ação em diversas passagens do livro. Ele usa do humor e dos trocadilhos em vários momentos, anulando seu ego em função do princípio de prazer. Ele recusa a realidade, afirmando-se contra as circunstâncias reais e se refugiando no chiste. Ele também desloca sua tristeza para os fetiches, para as fantasias e ainda trilha uma longa jornada até entender que o desejo é uma coisa normal do ser humano e que seus pensamentos não são seus inimigos.
Falando em pensamento, percebemos sua subjetividade um pouco neurótica (talvez até mesmo obsessiva-compulsiva), quando ele acredita que seus pensamentos são capazes de mudar o mundo exterior. O animismo. Ele acredita, por muito tempo, que se chegar até o final da rua em dois minutos, vai passar na prova, por exemplo. Ou que se olhar para algum homem no carnaval, vai ter todos os seus relacionamentos arruinados…. Ele demora a perceber que todos os excessos fazem mal.
Enfim, Querido ex é uma ótima obra de ficção, com grande verossimilhança e que nos traz importantes reflexões sobre como os relacionamentos, sobretudo, os gays entre homens cisgêneros, são constituídos em nossa sociedade. Erra quem diz que só por ser gay, é desconstruído. Ainda há muita herança falocêntrica, patriarcal e racista (como no caso desse livro) que reflete dentro desses relacionamentos. Nos resta perceber.
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