Livros transformam. Te fazem acreditar em tais coisas, te induzem a criar, livros são perigosos. Knight nos joga nesse emaranhado de vozes, nos cospe em um debate frenético entre sanidade e loucura, em seu romance de estreia Renée desbanca renomes. Iguala-se a estes.
O cotidiano de Catherine assemelha-se ao de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. Trabalho, casamento, filho, cansaço. Uma tela em branco que acaba sendo manchada nas primeiras páginas. O leitor perdeu sua zona de conforto em instantes. De início encaramos a Sr. Catherine Ravenscroft com diversos olhos, na verdade não queremos encara-lá de tão enfadonha que parece ser. A mulher deixa que seu misto de insegurança e medo transpasse os parágrafos e ninguém deseja sentir tais coisas, do mesmo modo que somos forçados a bel prazer a não desgrudar da obra. O livro que mudaria a história de Catherine tem como título “O Completo estranho”. Ele apareceu ali, no meio de suas coisas, entre as caixas da mudança e a falta de paciência para abri-las.
“É preciso coragem, certo? Para tirar a máscara e ver quem realmente somos.” (Pág. 222)
“O Completo Estranho” reserva surpresas, tanto para a leitora quanto para seus observadores. Catherine logo se dá conta que o que ali está escrito há anos se desgrudara das folhas, há décadas ocorrera friamente e por alguma razão fora aprisionado em mais de duzentas páginas. Propositalmente. Um livro não se escreve sozinho, assim como pessoas não se jogam no mar a toa. Catherine encara um labirinto, encara e é destinada a ele, mesmo que tema perder-se, mesmo sabendo que irá se perder entre os arbustos. Como está bem definido na sinopse do livro:
“Catherine Ravenscroft chegou à meia-idade levando uma vida perfeitamente normal: é casada, tem um filho, ama o emprego, gosta de ler nas horas vagas. Agora que o filho cresceu e seguiu seu próprio rumo, ela e o marido decidiram se mudar para uma casa menor. Em meio ao caos da mudança, Catherine encontra O completo estranho, um livro que não se lembra de ter comprado.
Intrigada, ela inicia a leitura, mas logo se dá conta de algo terrível. O que está ali não é ficção. A narrativa traz, com riqueza de detalhes, o dia em que Catherine se tornou refém de um segredo sombrio. Até então, ela achava que ninguém mais sabia o que havia acontecido naquele verão, vinte anos antes. Pelo menos ninguém ainda vivo.
Agora o mundo perfeito de Catherine está desmoronando, e sua única esperança é encarar o que realmente aconteceu naquele dia fatídico. Mesmo que a verdade possa destruí-la. “
O segredo que guardara por anos começa a ser revelado, lentamente, assim deseja o autor, a pessoa que apropriou-se de histórias alheias para aterrorizar. O mistério perdura até a última página, mesmo que tudo aparente ter sido revelado. O mistério continua vivo até mesmo após a conclusão da leitura, é algo agonizante o que Knight provoca. Os temas são lançados, navegamos do erotismo até o egoísmo, entramos na mente de adolescentes, de maridos inseguros, de filhos ignorados, é um embate filosófico sobre existência e o porque de nunca conseguirmos aproveitar tal. A autora vai até o cerne humano e crava suas unhas por meio das palavras, meticulosamente escritas e planejadas, provocativa ao extremo, Renée Knight faz o que os escritores conseguem forjar melhor: Ela atua com diversas faces, ela é e não é ao mesmo tempo seus personagens, lhes dá forma e os deixa viver nos múltiplos universos que suas mentes produzem.
“É incrível como a raiva dá forças a alguém.” (Pág. 24)
A temporização usada na obra é um ponto a ser ressaltado. O tempo presente da narração é 2013, mas constantemente vamos até 1993, ou 1998, por questões necessárias, nada como visto na maioria dos livros onde essas viagem temporais só surgem para acrescentar pontos que nem deveriam existir ou para impedir lacunas. Knight acerta em tudo, e isso é raríssimo, posso identificar um dia quem sabe erros neste livro, em uma terceira ou quarta leitura (pois é impossível ler uma só vez esse romance), mesmo que ache isso uma tarefa dificílima. A edição da Suma de Letras é impecável, da escolha do papel até a diagramação da obra. A capa permite que o leitor faça suas escolhas, assim como o livro, sobre o gênero e sobre do que se trata. A tensão começa a partir dai, o romance é mascarado, sombrio e calculado com uma frieza monstruosa.
“Há de parecer um acidente, e Catherine sabe com que facilidade os acidentes acontecem.” (Pág. 55)
Catherine parece ser o centro das atenções do enredo, surge como a esposa com um passado enevoado e como mãe displicente, é essa a imagem que temos por páginas e páginas. Com o andar das coisas fica explícito que Catherine nada mais é que uma peça entre tantas, que no tabuleiro ela se encarrega de ser a rainha, cercada por torres, bispos e um rei que necessita das mais variadas proteções. Seu marido, assim como se referiu ao próprio o autor de “O Completo Estranho”, é uma ponte entre a mulher seu filho, Nicholas. Mas pontes, quando feitas as pressas, desabam.
“E, com ela ao meu lado, não será preciso muito para levar essa espécime débil até a beira do precipício. Só preciso alimentar seu lado sombrio e levá-lo a um ponto sem volta, deixá-lo, equilibrando-se na beirada.” (Pág. 163)
O responsável pelas mudanças na vida rotineira da família Ravenscroft não demora para mostrar sua face. Não fica no escuro ocultando suas origens, suas histórias e seus desejos. Ele é melancólico na maioria das vezes e seu caráter saudosista o cega em diversos momentos, mas também o alerta no menor indício de perigo. Portador de segredos, o homem (Sim, ao menos isso posso revelar) a vida de alguns em um inferno com direito a seus nove níveis. O interessante é que em seu estado de ódio, o sujeito, por mais que tente evitar, acaba se perdendo. Acaba mergulhando neste inferno, cria sua, e ardendo nas palavras que por raiva incontrolável disparou. Sua trama difamatória nos conduz para desfechos eletrizantes. Os pontos finais da autora queimam.
“Difamação” é atípico, guiado com a sutileza de uma escritora sarcástica, levado para as livrarias com o ar que merece e que atinge a qualquer leitor. Do início ao fim a missão que Knight destinou a si mesma é cumprida, a crueza de seus capítulos surpreendem o mais bem avisado. Nada ocorre por motivos do destino na obra, a concha vai aos poucos unindo suas pontas até transformar-se em uma gigantesca rede de informações, uma rede traiçoeira, munida de verdades sobre tudo e todos. Uma partícula de humanidade foi injetada no romance, provocando assim o surgimento de muitas outras. Fica claro que não se deve, nem na mais segura situação, confiar.