Resenha: A coragem de não agradar, Ichiro Kishimi e Fumitake Koga
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Resenha: A coragem de não agradar, Ichiro Kishimi e Fumitake Koga

Talvez a minha resenha de A coragem de não agradar não te agrade. Mas, de forma alguma quero te desencorajar a leitura. Ler coisas que são contraditórias, que não fazem sentido ou que partem de um pressuposto de senso comum, como eu vejo este livro também é importante. Então, sim. Considero esse livro essas três coisas, com pouquíssimas passagens que salvam ou que conseguem trazer um pouco mais de reflexão pessoal. Mas, faço uma ressalva: sou psicanalista e estudante da teoria de Freud e Lacan há anos. Não tenho conhecimento sobre a teoria Adleriana e não me interesso em ter, principalmente após a leitura. Essa análise vai ser pautada em um comparativo sobre o que o autor fala de Freud e como ele coloca Adler de forma superior (o que eu discordo).

+ Resenha: Caro Dr Freud, Gilson Iannini (Org.)

A coragem de não agradar é um livro em formato de diálogo, entre um jovem e um filósofo. O filósofo tem o objetivo de explicar a psicologia adleriana ao jovem, que não acredita e tem como premissa derrubar todos os argumentos do filósofo. Obviamente, ele não consegue derrubar todos, afinal, como eu disse, há coisas a se aproveitar no livro, mas acho que, conforme o final vai chegando, aquele jovem questionador também vai ficando mais conformado e foge do seu objetivo inicial. Sim, ele aceita fácil demais.

Na leitura, me vejo e me identifico mais com o jovem que com o filósofo. Creio que essa seja a premissa para todos os leitores. Mas, conforme avança, os questionamentos rasos que ele passa a fazer para questionar o filósofo não são nada além disso: rasos. A psicologia adleriana me parece um embrião de coaching. Com a ideia de negar o trauma, transformar a etiologia freudiana em teleologia adleriana o livro, de leitura cansativa e arrastada, faz uma visão simplista da vida e que muitas vezes, culpa a vítima pelo seu sofrimento psíquico. Dizer, por exemplo, que Freud é uma “psicologia da posse” enquanto Adler é uma “psicologia do uso” chega a ser cômico.

Como psicanalista freudiano, talvez as ideias de Adler não sejam mesmo para mim. Mas, a forma como elas são postas no livro como ultrapassadas são dignas de alguém que sequer leu Freud além do senso comum. Ele diz no livro que o trauma é determinista, que a psicanálise freudiana vê o trauma dessa forma e disso eu discordo piamente: o trauma acontece no seu passado e é apesar e a partir dele que você vive sua vida agora. E dizer isso, não significa que você use seu trauma como muleta ou como artifício de vitimização – significa que você constrói uma nova narrativa de vida a partir disso. E sim, é sua responsabilidade lidar com as consequências do trauma na sua vida adulta. Não é algo que você vai carregando, como diz o filósofo para colocar Adler em pé de superioridade a Freud. Psicanálise é buscar a sua libertação. Como o autor então nega que você não toma suas próprias decisões em um processo psicanalítico?

Resumir o Complexo de Édipo freudiano a uma “atração anormal” do menino pela mãe ou da menina pelo pai é, no mínimo, irresponsável e digno de alguém que sequer se debruçou a entender a teoria psicanalítica, de forma que, não há condição de colocar outra em pé de maioridade. O autor em inúmeras passagens usa do depreciamento de outras teorias psicológicas, para favorecer a teoria Adleriana. Com tantas décadas de estudo de variadas linhas psicológicas, quando se sabe a importância de cada uma delas, precisamos disso a essas alturas? Não acho que precisamos.

No geral, o livro traz muito de senso comum de auto-ajuda camuflado em ideias revolucionárias de um novo sistema de psicologia “individual”, que ainda não foi descoberto por ninguém. E sem justificativas a altura. Não quero ser como o autor que usa ideias em detrimento de outras mas, ler a forma como a psicologia adleriana é posta no livro me faz pensar porque de fato ela não tem seu valor no dia de hoje.

Apesar disso, A coragem de não agradar ainda tem pensamentos que te fazem refletir, mas que partem de um ponto de senso comum, ou seja, qualquer livro de auto-ajuda poderia te dar o mesmo embasamento. Por exemplo, quando ele diz que precisamos cultivar uma mentalidade que somos iguais aos outros e não que existem pessoas superiores umas as outras. Só que toda essa linha de raciocínio boa logo é quebrada com alguma falácia qualquer sobre negar sentimentos como raiva pessoal e indignação. Aparentemente, para Adler, alguns sentimentos são mais valiosos que outros e não a junção deles que nos faz humanos.

Sem falar das contradições em A coragem de não agradar que fazem o filósofo dar palpites arbitrários na vida do jovem sem sequer entender as teias que são compostas os seus relacionamentos interpessoais, de onde ele diz sair a base de toda a sua teoria. É como se o jovem a todo tempo tentasse encaixar aqueles conselhos dentro de sua vida pessoal, mas nunca conseguisse porque a caixinha da teoria adleriana é pequena demais ou grande demais e é você que precisa mudar sua vida para conversar com a teoria e não a teoria que precisasse dizer como é ser humano e explicar as complexidades da mente.

Acho que nesse ponto, enquanto escrevo minha resenha, fica difícil lembrar de pontos positivos do livro, porque sim, em retrospectiva é uma leitura que considerei ruim. Só terminei de ler o livro para dar minha opinião mesmo porque sinceramente, as boas ideias se perdem nessa maré de tantas falácias que me deixam indignado. Como no trecho em que o autor parece relativizar o abuso dentro de uma relação pai e filho. Sim, vou reproduzir a frase abaixo:

Filósofo: Mas se eu penso: Ele me batia, por isso nosso relacionamento ficou ruim, estou recorrendo à etiologia freudiana. A posição teleológica inverte completamente a interpretação de causa e efeito. Ou seja, eu trouxe à tona a lembrança de ter sido espancado porque não quero que o relacionamento com o meu pai melhore.

Jovem: Então primeiro você tinha a meta de não querer que o relacionamento com seu pai melhorasse e não querer consertar as coisas entre vocês.

Filósofo: Isso. Para mim, foi mais conveniente não consertar o relacionamento com o meu pai. Eu poderia usar o meu pai como desculpa para o fato da minha vida não andar bem.

Ou seja: meu pai é um babaca abusivo e lembrar que ele me espanca é apenas uma desculpa que eu dou para mim mesmo porque não quero ter um bom relacionamento com o meu pai. Gente?????????????? Isso me parece falar que a culpa do abusado ser abusado é dele porque ele precisa de um argumento para não se relacionar com o abusador. Que em vez disso, é preciso deixar essas diferenças de lado, para então, o abusado consertar um relacionamento fadado ao fracasso. Se isso não é culpabilização de vítima, eu não sei o que é. O relacionamento com o pai ficou ruim porque ele era um abusivo. Isso não é sequer um relacionamento. É um jogo agressivo de poder.

Eu poderia passar aqui o dia todo citando mais exemplos de como considerei esta leitura leviana e o quanto me deixa surpreso, mas não muito, o tanto de gente que gostou. Porque a nossa sociedade é doente dessa forma: a gente está organizado de uma forma a entender e manter o poder na mão desses abusadores e por isso, é tão conivente que toda a responsabilidade esteja com a gente de consertar relacionamentos falidos. É nisso que a gente acredita. E quando um autor coloca tudo isso aliado à uma teoria, em uma linguagem científica com a falácia da superioridade, afinal, é um filósofo conversando com um simples jovem sobre uma teoria psicológica que foi negligenciada, nós temos a tendência a acreditar.

Desconfie. E, se eu comecei falando para você ler o livro, não perca seu tempo. Gaste seu dinheiro com obras melhores e que te trazem pensamento crítico. A coragem de não agradar não é um desses livros, definitivamente.

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