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Crônica: Questão de rotina.

A reunião começou tranquilamente. O orador daquela noite era um vizinho meu, o Euclides. Nunca vi o seu Euclides tão bem vestido como ele está hoje. Uma camisa social azul claro, com listras finas, cabelo bem penteado e sob o braço um volume do Evangelho. Ele começou a falar;

“Meus irmãos, que a paz de nosso senhor Jesus Cristo esteja conosco hoje e sempre.

Todos nós respondemos em coro.

“Que assim seja.”

“Iremos abordar hoje o capítulo XV, ‘Fora da Caridade não há salvação'”.

Cada qual abriu seu Evangelho. Dona Mirtes passou alguns minutos procurando a página, até que seu neto sacou o livro e colocou na seção certa para a ocasião. Quando nos acomodamos, Euclides prosseguiu com a palestra. Foram belos sessenta minutos, todos prestando atenção, um silêncio absoluto. O relógio bateu oito e meia e quem iria tomar passe foi até a sala ao lado para entrar na fila. Eu estava bem ali, não queria ser mais uma e congestionar a fila, sem contar que ao chegar em casa ainda tinha um trabalho para digitar e enviar para o professor. Decidi por fim que seria melhor voltar para casa. Fui andando, até topar com o ponto de ônibus. Estava lotado e algumas luzes quase piscavam anunciando que a qualquer momento poderiam apagar de vez. Vi no meio das pessoas o meu vizinho, seu Euclides. Pensei em acenar, parabenizar pela palestra, dizer que gostei muito, mas ele estava concentrado demais olhando para o nada. O homem já tinha uma certa idade, mamãe dizia que ele era mais velho que ela uns vinte anos. Nas minhas contas isso dava cinquenta e alguma coisa. Mas lá estava ele de cabeça erguida, pensando em diversas coisas, imagino. Alguém foi se aproximando de seu Euclides, era um senhor que mal se aguentava em pé. Sua camisa pelo que consegui ver tinha alguns rasgões e seu rosto era invadido por uma barba densa.

O homem maltrapilho estendeu a mão para Euclides, ele respondeu com um olhar desconfiado. O homem continuou com a mão estendida, mas nada de Euclides lhe dizer nem que sim nem que não, até que o senhor encostou em meu vizinho, para tentar lhe chamar atenção. Seu Euclides renegou o ato se afastando do homem, lhe disse algumas palavras nada felizes que de onde estou não consigo entender.

O ônibus chegou. Bairro das Indústrias, 104. O meu. O de Seu Euclides, que apressado para fugir do velho correu e foi o primeiro a entrar. Eu subo quase por última, passo o cartão no leitor e vou andando entre o aperto do ônibus e o mal humor das pessoas. Acabo parando defronte a seu Euclides que naquele momento está observando a rua. Faço o mesmo, dou as costas para ele e fico olhando a lagoa, os prédios que a circundam, dez minutos se passam e o ônibus está mais lotado, não consigo mover nem um dedo do pé.

Alguém encosta em mim por trás, não para passar ou descer do coletivo, nada desse gênero, sinto uma mão tocando minha cintura e descendo até pressionar o lado esquerdo de minha bunda. Paraliso. Não sei como reagir, não consigo falar. Penso em gritar, mas ninguém acreditaria em mim. “Eu só resvalei em você, garota”, a pessoa diria. Penso em virar e bater no cretino, se for o caso de ser um homem, mas todos olhariam para mim como se fosse louca. Não sei o que fazer. Meu evangelho cai. O livro rola e vai parar ao lado do meu pé esquerdo. Olho para ele e vejo sapatos sociais pretos, vou subindo o olhar enquanto aquele toque vai ganhando proporções maiores, encontro uma calça também preta e a mais para cima uma camisa azul, com listras finas. Ele me faz ficar colada ao apoio de ferro do ônibus. Ninguém está vendo isso? Ninguém?

Minha parada está chegando. Aguente. Aguente. Cinco, quatro, três, um minuto. Quando penso em sair dali, poder correr para chegar em casa, a mão desgruda de mim. Aquele maldito corpo descola do meu.

Olho para frente e vejo seu Euclies descer, com seu livro debaixo do braço e um sorriso no rosto.

Eu descerei na próxima parada, é melhor. Chegarei em casa, dormirei, é melhor. Nada além disso. No fim, bem, eu não deveria estar ali, certo?

Certo?

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