Desprenda-se de tudo e de todos, lance no mais profundo rio seus prazeres e seus fetiches, não se vista com o orgulho ou soberba que por dias lhe consomem, por ser quem é. Desista dessa falível encenação e pare, pense sobre tudo isso e por fim aperte o play. Só assim, se martirizando de início você não sofrerá o que todos nós sofremos ao assistir “Winter on Fire”. Minto, você sofrerá, mas não portará esse sentimento de incompetência e inutilidade que aquele que assiste o documentário comumente carrega. Não sei quando o efeito do filme irá passar, não faço a mínima ideia, mas tenho toda a certeza que levarei lições concretas para a toda vida depois que vi tremenda produção.
A Ucrânia encarou sua independência em 1990, de lá para cá o país enfrenta mudanças drásticas e uma delas é o tema central do documentário “Winter on Fire”. Quando o então presidente Viktor Yanukovytch assume seu cargo de comandante do país as expectativas caiam justamente na questão de que tal assinaria o acordo que colocaria a Ucrânia na União Europeia. Que tornaria de fato o país em um país europeu. Mas Yanukovytch não ascendera ao poder com tal objetivo, o imã deste era atraído pelo outro lado da história. O presidente negara tal acordo e mostrou sua real face ao se esgueirar para cumprimentar com toda alegria e satisfação a Rússia de Putin. A partir deste momento as coisas começaram a acontecer na Ucrânia. Milhares de jovens se reuniram na Praça da Independência em 2013, estes carregavam bandeiras do país e da União Europeia, simbolizando o anseio popular por tal junção. Esses mesmos estudantes acompanhados de outras esferas populares foram brutalmente agredidos pela polícia, mesmo estando desarmados, mesmo estando protestando da forma mais pacífica possível.
Após o ocorrido em “Maidan” (A Praça da Independência) o perfil das manifestações foi se fortificando, até chegar a um número gigantesco de mais de um milhão de pessoas juntas naquele lugar, tudo isso por conta da atitude ditatorial do estado frente aos protestos . Estamos falando deste quantitativo de pessoas:
A partir dai uma guerra toma conta de Kiev e de toda a Ucrânia. Conflito marcado pela covardia militar em atacar pessoas que até então estavam desarmadas, marcado por ser o estopim de uma das atuais revoluções e representar toda a revolta do povo Ucraniano, na verdade, esta é a personificação da ira causada pelos anos de repressão encoberta que acabou por atingir níveis inimagináveis a medida em que o povo saia às ruas. O documentário é de nacionalidade Ucraniana, mas tem a Netflix como detentora e produtora, este concorre com outros dois documentários da netflix (Amy e What Happened, Miss Simone) e com Cartel Land e The Look of Silence. Esta é uma categoria perigosa, a de Melhor documentário em longa-metragem, porque ao assistirmos cada longa acabamos por adentrar naquela situação, acabamos por sentir uma parcela mínima do que aquelas pessoas sentiam, e todos os indicados se encarregaram de fazer isso de uma forma espetacular. No filme que conta a história de Nina Simone observamos aquela loucura, aquela delírio provocado por sua dedicação extrema à arte e à luta. Isso se repete em Amy, em The Look of Silence e em Cartel Land, mas em minha humilde opinião, Winter on Fire consegue provocar o espectador de um modo que os outros documentários não conseguem. É de uma mortalidade que nos transporta para outros lugares, para a Ucrânia, para Maidan e nos faz erguer a bandeira bicolor e gritar “Glória aos heróis”. A forma como as imagens foram captadas transparece isso. Estamos em uma zona de conflito onde viver é a menor das certezas e perder sangue em prol da nação é ato inquestionável.
A luta ucraniana posta em cena só nos causa vergonha profunda, nos deixa desnorteados pois reclamamos de pouca coisa, não agimos por grandes mudanças e achamos que dedicar nossas forças em coisas muitas vezes inúteis se constitui em atos de heroísmo. Um misto de sensações se apossam de quem vê tamanha barbárie, tamanha coragem dos filhos de um país recém-liberto que não admitem serem escravizados à leis desumanas. O mundo presencia novas ondas de liberdade, igualdade e fraternidade, novos homens e mulheres que não se satisfazem com assistir o acontecimento e apenas isso. Eles precisam ir para o centro de tudo, precisam ser agentes de seu próprio destino. “Winter on Fire” traduz tudo isso em quase duas horas de filme. É um filme que nos lança para o inferno chamado totalitarismo, para ao chegarmos lá, vermos que não existe outro caminho a não ser lutar e mostrar as garras. É impossível não se emocionar com o documentário, impossível assistir “Winter on Fire” e continuar a mesma pessoa, com mesmos conceitos e medos. Quando o longa acaba um pedaço do espectador se encontra modificado, atônito e sem ar.
Glória à Ucrânia
Glória aos Heróis