Filmes

Crítica: Mustang (2015)

Esperei mil e uma coisas sobre “Mustang”, inúmeras foram as versões que surgiram em minha mente antes de ver o filme, passei dias hesitando, vejo, não vejo, vejo, enfim, o vi. Nada do que pensei sobre “Mustang” se concretizou, e posso dizer por fim que até agora estou confuso sobre o filme, não sei bem o que falar, mas falarei. Não me sinto confortável em dizer algo sobre tamanha obra, mas direi porque preciso que outras pessoas o vejam, que outras pessoas fiquem perplexos como fiquei desde a primeira cena, das garotas na praia, até a última e avassaladora cena.

Quero destacar uma coisa: O que será escrito a partir daqui é feito por uma ótica ocidental contida. Tentarei em cada palavra não expressar toda minha formação ocidental e nutrida de milhares de preconceitos, quero deixa-la de lado, mesmo sabendo que não conseguirei fazer isso por completo. Por essa questão e  tantas outras ela será como dita ali, no começo do parágrafo, contida. Visão ocidental que teima em falar por si, mas que não pode, não deve cometer esse erro.

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“Mustang” é um filme turco, realizado por uma produtora francesa, a CG Cinéma (Sendo indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro como representante da França, já que grande parte dos recursos foram postos em jogo pela produtora francesa). O longa tem por diretora a também Turca, Deniz Gamze Ergüven. Esta que elaborou o roteiro junto à Alice Winocour, francesa e também roteirista de filmes como “Augustine” e “Home”. Deniz Gamze fora nomeada no Festival de Cannes, tendo, ela, junto ao elenco principal do filme, recebido uma salva de palmas de cinco minutos. Sim, meus amigos, cinco minutos de aplausos contínuos para um só filme em Cannes, eu disse: CANNES, e nasce ai meu pé atrás para escrever uma crítica sobre algo gigantesco como “Mustang”, mas o farei e começamos de agora.

Cinco irmãs vivem em um vilarejo no interior da Turquia, com seus costumes, com sua religiosidade, com seu cotidiano. Até que em um desses dias sem muitas emoções, uma das irmãs decide que o clima está belo até demais para não ser aproveitado, no mais, elas desistem de voltar para casa de van e partem para a praia. Acompanhem comigo, sem nossa mentalidade “ocidental exacerbada”: Elas foram para a praia, com vestes curtas, em uma cidade muçulmana, e ao chegar lá acabaram por brincar junto a garotos. As meninas, com toda a inocência que a idade permite a cada, subiram nos ombros dos rapazes e começaram a “brigar”, fazendo o que habitualmente fazemos nas piscinas ou no mar. As coisas, como deixa claro a personagem-narradora, Lale,  mudaram a partir dai.

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Ao chegarem em casa a avó, interpretada por Nihal Koldaş, as espera para uma surra alimentada com fofocas da vizinhança e seu senso comum. As garotas são tratadas de um modo totalmente diferente a partir deste momento. O tio, Erol (Ayberk Pekcan, presente em “Winter Sleep”) instaura uma espécie de ditadura dentro da casa (um reforço na já existente), as garotas agora deixariam de lado o pouco de liberdade que tinham para viver vinte e quatro horas sob a vigília das tias e aprender a se portar como “Moças para casar”. Vemos uma série de mudanças no local, nas garotas, no cenário do filme, todos os objetos que poderiam “deturpar” as meninas vão sendo retirados dos cômodos (Até uma impressão da pintura de Eugene Delacroix, “A Liberdade Guia o Povo” foi tomada de uma das moças, ao meu ver poderia ser muito bem de Lale, ela tem todo o espírito da Marianne erguendo a bandeira francesa e gritando as três palavras por entre dentes cerrados). Telefones? Nunca mais. Livros que poderiam informar de qualquer modo, as moças não tocarão mais neles. Tudo que pudesse desviar as meninas do caminho comum destinado às mulheres muçulmanas fora varrido e posto a sete chaves. Mas não posso acrescentar mais sobre a trama pois isso você descobrirá, terá o prazer (e o desprazer) de ver certos momentos. É um filme para fortes.

Falemos então das moças, as que receberam o título de “Cinco graças” na tradução do filme para o português (O longa foi lançado por aqui no fim da semana passada). Comecemos pela mais velha, Sonay (İlayda Akdoğan). A garota fora a primeira a apanhar naquela surra do início do filme que acabamos de falar. Cada personagem tem suas peculiaridades, cada uma lida com suas obrigações de um modo diferente, e Sonay o faz de uma maneira peculiar, nem pulando o muro, nem descendo dele, ela fica ali, olhando para o horizonte que pode conquistar, mas escolhe permanecer com a linha que lhe foi destinada. A personagem é forte, pois inspira as outras quatro, é o coração pulsante das cinco irmãs, pois o cérebro, bem, falaremos dela por último. A interpretação de İlayda Akdoğan é de uma beleza incomum, a atriz consegue expressar bem cada sentimento e em alguns momentos, a passividade da personagem. Assim como Tuğba Sunguroğlu o faz no papel de “Selma”, a segunda irmã nesta visão decrescente. O clima irritadiço de Selma, sua mente atolada de pensamentos que resultam em poucas palavras ditas, tudo isso foi feito graças ao dom de Tuğba. Agora falemos vagarosamente sobre a terceira irmã, Ece, interpretada por Elit İşcan. Ela é responsável por uma dos momentos mais chocantes e perturbadores da trama, nos deixa de queixo caído com o que ocorre, ninguém daria nada por Ece na verdade, ninguém a notava, entre as cinco ela era a mais apagada por assim dizer, junto à quarta irmã, Nur (Doğa Doğuşlu). Mas Ece ressurge como os raios de sol presentes na maioria das cenas, aparece como não o fizera em todo o longa e isso ocorre em instantes. Em segundos ela é a estrela, a personagem principal, a dona da cena. Em instantes, como disse Lale, tudo pode mudar.

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Enfim, Lale. O que vemos é o que Lale enxerga, sua ótica é a visão guia para todos os telespectadores. Por ser a mais nova entre as cinco irmãs, sua mentalidade parece “aos cegos” um olhar esperançoso do mundo. Tudo vai acontecer, imagina Lale, tem que ocorrer, diz Lale, mesmo sem pronunciar. Ela é aquele tipo de personagem que te cativa no primeiro instante, que te diz: Olha, eu sou o que você deseja ser. Agora me veio a mente, no meio desta crítica eu falei que Lale poderia ser a Marianne da pintura de Delacroix, que poderia ser a moça guiando seu povo, mas não, pensando bem, Lale não deve ser Marianne, ela tem que ser, porque é, a Gavroche de todo o filme. É ela que organiza os motins, que nada contra a corrente, que nota quando as coisas estão erradas, mesmo sendo ensinada a encarar aquilo como frívolo. Gavroche é Lale, Lale é Lale e isso tem que ser visto como algo sério, algo que falarão daqui a vinte, trinta anos. Ela é de uma originalidade tão grande que chega a ser comparada à grandes alegorias. A moça escolhida para dar vida à Lela fora Güneş Şensoy em seu trabalho de estreia. Şensoy brinca com naturalidade em frente às câmeras, desdenha dos padrões sociais, é livre em seu mundo teatralizado. Tem o dom a criança e o deixa se libertar a cada cena, é lindo de se ver alguém tão jovem atuar com uma maturidade tremenda, sacar uma personagem como essa e a encorporar com tamanho êxito. A menina, Lale é o cérebro das cinco, é a mente que observa toda a cena atrás das cortinas e aparece para ser o clímax da apresentação. Bravo, para Lale e Şensoy, duas em uma, uma que encanta e provoca inveja nos sem coragem.

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Lhe conduzo agora para uma das mais belas fotografias do Oscar 2016. As tomadas do filme devem ser observadas como um manual de como “fazer cinema”. É algo límpido, sem a necessidade de efeitos aqui ou ali, é pura luz natural entrando pelas janelas, portas, entre as grades que prendem as cinco garotas, é de uma ambientação tremenda. O título do filme se deu por conta desta busca por liberdade, por essa ambição por aquilo que lhe é realmente destinado mas que aos poucos, ou abruptamente, é retirado por uma sociedade fincada entre golpes machistas e religiosos. “Mustang” deriva dos cavalos Mustangues presentes nos EUA, na tradução histórica, tendo suas raízes no espanhol arcaico, significa algo entre “sem dono” e “selvagem”. É um título que caiu bem até demais para a história. Mustang está em cada parte das cinco garotas, elas almejam por isso, por não terem donatários em suas vidas. Elas e milhares de outras mulheres espalhadas mundo a fora. Não pensemos que isso só ocorre nas sociedades do Oriente Médio e circunvizinhas. O senso de dominação enaltecido pelo homem da “família tradicional” transpassa fronteiras e atinge de Ocidente a Oriente. O erro que não podemos cometer a assistir “Mustang” é dar gargalhadas, como qualquer ocidental desinformado daria. Como fizeram os franceses ao assistirem as primeiras cenas de “Que horas ela volta?”. Não podemos rir de uma realidade que está tão próxima, de uma submissão que se enraiza em tantas mentes. Não podemos pensar com ocidentalismo ao encarar o medo, o trauma, a falta de vida que é imposta a cada mulher muçulmana, desde sua infância até sua precoce idade adulta. Mustang é ao mesmo tempo um grito de liberdade e de socorro. É o porta-voz de mulheres que nada podem fazer. A diretora, Deniz Gamze Ergüven, vivera esta realidade. As cinco atrizes vivem esta realidade. Nós não vivemos tamanhas atrocidades, nós nos horrorizamos com certas cenas do filme, mas o que fazemos? De que modo tentamos modificar isso? Bem, ai já é outra história para outro momento, o que temos que colocar aqui é a mensagem passada pelo longa: Salvem-(nos)-se. Existe uma barreira que separa religião, política e arte. “Mustang” conseguiu rompe-la com êxito.

A seriedade relatada na garra de Lale, o medo impregnado no corpo de Ece, a inquietação que corre por entre as veias de Sonay, tudo isto se une para formar um grandioso filme. Uma obra de arte digna, não de cinco minutos de aplausos, mas uma salva eterna de elogios e agradecimentos. Agradecimentos sim, para as pessoas que compuseram tal obra, e pedidos de perdão para aquelas que não podemos auxiliar.

“Mustang” é parecidíssima com aquela pintura de Delacroix que dá o ar de sua graça no início do filme, consegue captar momentos específicos do atual, para que seja visto por todo um tempo inesperado pelo autor. É um filme próprio das grandes premiações,  dos públicos que decidem pausar um pouco suas vidas para viver a de outros. Viver, chocar-se e despejar todo um sentimento frente à telas de computadores. Belo e digno de todas as homenagens, que venha a noite maior e que se consagre dono da tão desejada estatueta. Nos resta ansiedade, nos resta ver “Mustang” novamente, e novamente, até se revoltar mais e mais, até se esgotar de ver tanta brutalidade, tanta realidade em um só filme.

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