Crítica: João Sem Deus - A Queda de Abadiânia (2023)
Mariana Caldas
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Crítica: João Sem Deus – A Queda de Abadiânia (2023)

João Sem Deus – A Queda de Abadiânia, dirigida por Marina Person, é a primeira série de coprodução internacional independente entre Brasil e Portugal, de Canal Brasil, Ventre Studio, Coral Europa e TVI. Em três episódios de 50 minutos, ela acompanha, pela perspectiva feminina, o escândalo que desmascarou o médium a partir de denúncias da imprensa, até sua prisão.

Eu (Gabu) sou completamente fascinado pelo caso João de Deus, ou pelo caso João Sem Deus, como diz o nome da série. Para mim, é um crime com tantas camadas, tanta podridão da existência humana que só lendo e assistindo reportagens dos mais variados pontos de vista que consigo chegar próximo de uma compreensão de que sim, isso existiu e isso aconteceu. Não é ficção. Aconteceu em Abadiânia e ainda acontece em muitos outros templos religiosos do mundo.

A série, inspirada em eventos reais, começa contando a história de Carmem, que chegou em Abadiânia com a irmã Cecília, que estava com um tumor seríssimo no cérebro e quase sem nenhuma visão. Ela é uma mulher de muita fé, que depois de “presenciar o milagre” com a irmã, acaba ficando na cidade e ajudando na Casa Dom Inácio de Loyola, formando sua família e ficando por lá. Em Abadiânia, ela se apaixona por Lindinho, o braço direito de João Teixeira, com quem tem uma filha, Ariane. Juntos, além de trabalharem na casa, eles comandam uma pousada, que é aprovada pela entidade.

A série mostra o cotidiano de Carmem, até que as primeiras denúncias sobre o médium chegam na mídia, por meio do programa de Pedro Bial. Enquanto isso, Cecília, que está completamente curada, vive em Lisboa e é convencida por uma amiga, jornalista da CNN Portugal a relatar o que ela passou nas mãos do médium. Ela não quer reviver aquilo, mas ao voltar para o inferno, como ela chama Abadiânia, sente que precisa fazer a sua parte. Encorajada por centenas de mulheres quem estão indo a público, Cecília resolve contar sua história.

Na primeira vez em que visitou A Casa, com a irmã, ela foi selecionada para um atendimento particular com João de Deus. Com a visão quase toda comprometida, foi na sala, na presença da irmã, que ela foi abusada pelo falso profeta. E é nesse ponto que a série retrata, de forma fiel e extremamente gráfica, a história de Cecília. É chocante de assistir, mas necessário para que a gente não esqueça e, acima de tudo, lute contra a impunidade que o criminoso recebe nos dias de hoje.

A sequência da série se dá com Ceci contando a história para Carmem, que não acredita, afinal, ela trabalha muitos anos na Casa, já viu curas acontecerem e nunca viu nenhum desvio de conduta de João. Mas a história começa a mudar quando Lindinho, seu marido e braço direito de João, começa a esconder provas contra o médium, a encobrir a Casa e a falar que homem é homem. Que João, é sim, médium, mas acima de tudo, é homem.

Incomodada com a forma como a Casa vem sido deturpada por conta de João, Carmem continua fiel à sua fé do que acontece ali, mas passa a ficar com um pé atrás com o João. Sentimento que é reforçado quando ela descobre que Ariane, sua filha, foi abusada pelo médium desde que era uma criança. A menina, que não havia entendido que aquilo era um abuso até o momento em que ouviu as histórias, acaba confiando e contando tudo para a tia, Cecília.

A trama se desenrola mostrando o ponto de vista diferente de três mulheres: Carmem é a fé, nos poderes de cura, na fé e no trabalho que é feito ali dentro. Cecília é a vítima que foi abusada em frente a irmã, que estava de olhos fechados e não viu, mas também demorou para acreditar na versão dela e Ariane, que é uma garota que cresce em Abadiânia e com o “tio João” e descobre que sim, aquilo que aconteceu com ela foi um abuso e ela não tem culpa e não precisa sentir vergonha.

É uma série extremamente bem produzida, com um roteiro impecável e super fiel aos fatos do caso. Obviamente que há efeitos dramáticos e há ficção ali, por ser um produto televisivo, mas a forma gráfica como os acontecimentos reais são demonstrados faz a gente questionar até que ponto falhamos como seres humanos, até que ponto a justiça foi feita ou até que ponto, deixamos o nosso fanatismo nos cegar.

João de Deus usou da fé humana para ludibriar, para enganar e para manipular centenas de milhares de pessoas em todo o mundo. E não são apenas pessoas com baixo grau de instrução, pessoas devotas ou pessoas sem pensamento crítico: todo mundo caiu em sua lábia. Até que ponto um mestre, um guru, ou um médium é tão poderoso assim a ponto de ser colocado em um pedestal e responder de lá de cima? Até que ponto vamos nos colocar em posição de inferioridade para essas figuras, deixando-as em uma posição de que elas sabem mais que nós? De que suas intuições são mais valiosas que as nossas?

É um ponto de reflexão sobre a nossa fé, mas que, de forma alguma, deve ser usado como forma de culpar as vítimas. Um ser humano em fragilidade é capaz de qualquer coisa para salvar sua vida. O ser humano é movido por uma pulsão de vida, por um instinto de sobrevivência, então sim, a gente se entrega e só depois é que somos capazes de dar conta do que aconteceu. E quando isso acontece, achamos que a culpa é nossa. Cecília chegou a pensar isso na série. Ariane disse que não sabia direito o que tinha acontecido e que achava que pudesse até ter gostado… Vítimas são vítimas. Não importa o quê.

“As três protagonistas representam as mulheres reais que começaram o escândalo: Carmem representa a fé nos poderes de cura de João de Deus, Cecília representa as vítimas de abuso e Ariane (filha da Carmem) faz o papel de uma menina que só percebe que foi abusada após a fala de outras mulheres”, explica a diretora Marina Person.

Marco Nanini é o antagonista da trama: “O convite para participar de ‘João Sem Deus’ me fez mergulhar na história que inspira a série, que conta com um roteiro excelente, uma diretora muito talentosa e um grupo de atores que admiro”, diz o ator.

A atriz Karine Teles interpreta Cecília, a irmã que sofre abuso sexual: “Precisamos falar sobre abuso de poder, mentiras e ganância, mais do que nunca. Essa história é próxima da gente aqui no Brasil, mas é tristemente universal. Aceitei participar desse projeto delicado e difícil porque acredito no poder restaurador da arte. Espero que chegue nas pessoas e provoque reflexões em cada um de nós”.

Já Bianca Comparato vive a protagonista Carmem, a irmã que acredita nos poderes do médium: “O que me atraiu nesse projeto foi a abordagem para contar a história da queda de João de Deus, mas pela perspectiva feminina. Até o começo da série, a minha personagem, Carmem, está cega em relação aos relatos de abusos, mas, aos poucos, vai entendendo o monstro que está ao seu lado. Ela chega a se perguntar a quem ela foi devota por todo esse tempo, a Deus ou ao diabo? É sobre essa dúvida de Carmem e sua dificuldade de aceitar que ela não ajudou mulheres abusadas”.

A produção de “João Sem Deus – A Queda de Abadiânia” tem a predominância feminina na equipe, principalmente nas posições de liderança, nas quais as decisões criativas e executivas são tomadas por mulheres. O projeto teve acompanhamento da Bem Querer Mulher, iniciativa de acolhimento integral a mulheres que sofrem violência no Brasil, para a leitura sensível dos roteiros e apoio presencial no set durante as filmagens das cenas mais delicadas.

“Sou sobrevivente de abuso sexual, então esse tema me toca muito. Tivemos um cuidado e sensibilidade enormes na sala de roteiro por se tratar de vidas reais dessas mulheres, traumas que ainda não cicatrizaram para elas. Um desafio grande foi ter empatia com as mulheres que estavam ao lado do João, trabalhando dentro da Casa. Mas sempre acreditamos que o ponto de vista delas merecia ser contado e honrado. Elas também foram vítimas em muitos níveis”, pontua Patricia Corso, roteirista e cocriadora da série.

“A trama nunca é contada sob o ponto de vista do abusador, mas das sobreviventes que enfrentaram a rede de proteção e o silenciamento que permitiu que esses abusos continuassem por tanto tempo. É uma história, infelizmente, ainda muito relevante no Brasil – tanto pela perigosa associação entre fé e política, quanto pela cada vez mais frequente utilização de discursos morais e religiosos para acobertar estupros, misoginia, usurpação financeira e exploração sexual”, afirma Leo Moreira, roteirista e cocriador da série.

João Sem Deus – A Queda de Abadiânia” foi gravada em Portugal e no Brasil e o set teve apoio da ONG Cinema Verde. Essa é uma iniciativa que visa reduzir o impacto ambiental causado pelas produções audiovisuais. As vendas internacionais são lideradas pela Onza Distribution e começaram em outubro, na MIPCOM.

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