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Autoria: Cicatrizes eternas, por Milênia Aquino

Ariel morava com os pais e irmãos numa pequena cidade de Santa Catarina. Como os irmãos já trabalhavam e passavam o dia todo fora, o seu papel era ajudar a mãe na realização das tarefas domésticas e quando acabava corria para ler seus livros.

O hábito da leitura, de ler, consumia a maior parte do tempo e sempre foi um dos meios para enfrentar os problemas na adolescência. Relacionados às mudanças corporais, das novas descobertas e de relacionamento com outros adolescentes.

Certo dia, interrompendo uma das leituras, sua mãe pediu para que fosse levar alguns objetos para sua tia avó que morava na mesma rua, cinco ou seis casas abaixo. Obediente a sua mãe, o fez.

Chegando na casa da tia avó, encontrou seu tio avô e o filho do casal. Não demoraria, porém sua tia convidou para tomar um chá. Enquanto esperava, reparou o primo saindo da casa, aparentava-se inquieto e não parava de olhar para trás. A princípio Ariel achou estranho, mas como não convivia com o primo, não sabia decifrar suas ações e logo esqueceu aquilo.

Conversa vai, conversa vem, já havia se passado uma hora. Estava ficando tarde e precisava ir embora, despediu-se dos tios e seguiu rumo a sua casa.

Ao passar por um lote vazio, ouviu uma voz conhecida. Era o primo, não havia entendido direito o que queria e por curiosidade foi ver o que estava acontecendo. Mal sabia que era a pior decisão a ser tomada e que carregaria as marcas daquela decisão pelo restante da vida.

Saiu dali com as feridas abertas. Quis gritar, mas perdeu a voz. Sentia vergonha em ter acreditado. Além disso, sentia culpa, medo, perdera sua inocência. Jamais voltaria a acreditar nas pessoas. Após o ocorrido seu primo fora preso, mas as feridas abertas jamais cicatrizariam por completo.

Autorais

Autoria: Futuro ex-namorado, por Gabu Camacho

Leia ouvindo: Thinking of you, Katy Perry (Acústico)

Futuro ex-namorado,

Sei que quando você estiver lendo essa carta, já vai ter desistido de tentar entender o que está acontecendo. Tampouco vai entender porque te chamei de futuro ex-namorado. Se tudo correu conforme planejei, você agora está parado em um quiosque na entrada da praia e um garçom te entregou esse papel. Você chegou aí entrando em um Uber que mandei te buscar, falando que ia chegar em casa, mas ele seguiu direto para o litoral.

Desculpa por ter te assustado. Mas agora é hora de esclarecer algumas coisas.

Sei que você gosta de mim, não me entenda mal. Sei que você pode até me amar da sua maneira, mas não sou o amor estrela cadente da sua vida. Não sou o amor que cruza seu céu e te leva ao inferno. Não sou o amor que vai encher seu mundo de glórias. E está tudo bem. Eu amo você e só o meu amor pode justificar tudo o que eu fiz hoje.

Eu percebi que quando a gente foi no karaokê, antes da quarentena, você cantou Thinking of you da Katy Perry de uma forma muito emotiva. Eu sabia que você não estava pensando em mim. Eu sabia que era pro seu amor estrela cadente. Alguém que tinha cruzado tão rápido seu céu e que não havia sido capaz de ficar.

Eu percebi que era com ele que você sonhava todas as noites. E juro, está tudo bem. Ele é a sua pessoa. E eu ainda sei que um dia vou encontrar a minha. Espero ser tão sortudo quanto você, meu amor.

Mas agora, é a sua vez. Planejei tudo isso durante a quarentena e agora ela acabou. O coronavírus foi embora e se tem algo que a gente aprendeu com tudo isso, é a não desperdiçar mais tempo.

Se tudo correu como planejei, o Benji vai estar sentado um pouco além de você, com o pai dele, em uma mesa. Ele já contou tudo para a família. Ele sabe que talvez você apareça. Eu sei que é ele. Vai lá!

Capture sua estrela cadente. Não a deixe escapar mais. Você e o Benjamin nasceram um para o outro.

Com amor,

do seu (agora), ex-namorado.

inclusão social de surdos
Colunas

A falsa inclusão social de surdos no Brasil

Mais de dois milhões de pessoas possuem deficiência auditiva severa no Brasil, número que tende a aumentar em progressão aritmética nos próximos anos. Considerando que o país tem 207 milhões de habitantes, o número eloquente de surdos, de acordo com o censo do IBGE de 2010, corresponde à população do Distrito Federal.

Tamanha expressividade não pode ser deixada de lado e o debate da inclusão dos surdos no sistema educacional é de extrema importância, principalmente para a sociedade em que vivemos que parece estar sempre em ritmo acelerado em todos os aspectos, esquecendo-se da empatia pelo próximo. É preciso pensar que existem pessoas com necessidades diferentes da generalidade considerada “normal” e é preciso incluí-las de maneira efetiva no sistema educacional, com professores bilíngues não só na teoria, mas também na prática.

O tema já foi alvo da redação do Enem e buscou, exatamente, essa expressividade que falta para a população surda. As críticas existem, mas de maneira tão ferrenha aconteceu tão somente por conta da especificidade do tema. Mas não pode se esperar muito: pessoas que nascem com um direito social intrínseco e inextricável, jamais entendem pelo o que passa uma minoria que luta pelo o que eles julgam básico para sobrevivência.

Não se conhece o mundo de uma pessoa nessas condições só pela observação e estudo. É preciso estar inserido no meio em que vivem, e só dessa forma será possível entender suas cicatrizes e onde os sapatos apertam. Os caminhos são diferentes de uma pessoa para a outra, e todos são seres humanos, com direito a espaço, respeito e aprendizado.

No entanto, é a velha história da empatia inexistente. Não há espaço para a população surda na realidade brasileira atual. O assunto é específico e nesse mérito não podemos mexer. Mas é esta a hora de levantar bandeiras pelo o que precisa ser ouvido, e acima de tudo, entendido. Os jovens, maior público do Enem, são aqueles que irão moldar o futuro de toda uma massa e para tal, a conscientização precisa acontecer desde já.

O Brasil precisa acordar para a inclusão efetiva das pessoas com qualquer grau de deficiência, fato que é garantido pela Constituição Federal: é um dever de todos e o dever não é posto em prática sem conhecimento de causa, mesmo que de maneira superficial. É preciso saber e não fechar os olhos para a realidade.

Observa-se, também, que tal comportamento é facilmente explicado pelo discurso neoliberal que a sociedade brasileira prega. Palavras bonitas de inclusão e de aceitação ao diferente são proferidas aos quatro cantos do país, mas, na hora de colocar em prática, nada, senão a hipocrisia dos olhos fechados e das críticas que recaem sobre um simples tema de redação em que a população surda conquistou para sua luta de causa, contra muitos outros que foram dados para a população considerada dentro da normalidade.

Vai muito além de conquistar uma nota máxima na redação. São vidas e sua qualidade que entra em xeque-mate junto aos dois milhões de brasileiros esperando melhorias e outros quase sete milhões de jovens que prestaram a prova.

Mais do que nunca, é necessário conquistar novos espaços. A semente foi plantada e agora precisa germinar para todos os lados. É preciso que a Libras seja disciplina efetiva e não só optativa de maneira teórica, de forma que essa conquista seja apenas a primeira batalha dessa guerra, que só é nomeada de minoria. Sempre tiveram surdos no Brasil e não são poucos. São anos de luta, de busca por reconhecimento e voz nas esferas educacionais, políticas e sociais. A causa estava invisível, pendendo inclusive para a solução inconstitucional da educação segregada, o que diminuiria ainda mais a democratização dos estudos e aumentaria a distância entre alunos com e sem deficiência.

O histórico é de violência e violação de direitos básicos. No passado, a população surda chegava a ter as mãos amarradas, para que pudessem aprender a falar e não pudessem fazer sinais. No presente, existem adeptos da oralização, que defendem que as pessoas surdas compõem uma cultura própria e precisam ser segregados. Tamanho absurdo não pode ganhar força entre as pessoas.

São vidas, pessoas com sonhos e aspirações iguais ao de qualquer outra. E, para todos, empatia é a palavra-chave. Empatia essa que vem de berço e é cultivada no dia-a-dia para disseminação do amor e da responsabilidade social. Não são mais as crianças surdas que precisam se adaptar, negar a sua identidade ou serem convencidas a viver em uma comunidade a parte, mas as escolas que precisam se modificar e se adequar para acolhê-las de maneira justa.

Histórias, Livros, Novidades

Dia do Escritor: 10 dicas para se tornar escritor

Dia 25 de Julho é comemorado o Dia do Escritor, data instituída em 1960 pelo então presidente da União Brasileira de Escritores, João Peregrino Júnior, e pelo seu vice-presidente, o célebre escritor Jorge Amado.

A data surgiu após a realização do I Festival do Escritor Brasileiro, iniciativa da UBE. O grande sucesso do evento foi primordial para que, por intermédio de um decreto governamental, a data fosse instituída com a finalidade de celebrar a importância do profissional das letras.

Poesias, romances, infantis, biografias, técnicos, livros de negócios e obras de não ficção… são diversas as categorias de livros para seguir como autor. Porém, uma carreira de escritor pode significar mais do que apenas escrever livros. Você pode se tornar um jornalista, tradutor, blogueiro, redator profissional de livros, roteirista – vários nichos de mercado precisam de escritores.

Então, se você quer seguir essa carreira, por onde começar? Sugiro algumas orientações para você começar bem:

• Leia o maior número de livros possíveis. Sua escrita só cresce ao longo do tempo se você ler, ler e ler.

• Defina quais são seus objetivos como escritor. Você quer escrever livros? Você deseja criar um blog e publicar artigos para compartilhar seu conhecimento e experiências com seus clientes? Você busca ajudar outras pessoas na escrita de seus textos?

• Participe de grupos de escritores e oficinas literárias, assim como faça cursos de redação, escrita criativa, storytelling. Tudo isso ajuda muito a melhorar a técnica e a qualidade de sua escrita.

• Crie o hábito de escrever todos os dias. Não importa, se no início, você tenha apenas 15 ou 30 minutos diariamente para dedicar à escrita.

• Comece escrevendo sobre assuntos que você goste e tenha familiaridade. É muito mais fácil criar o hábito diário de escrever quando tratamos daquilo que entendemos

• Não espere para se chamar ou ser chamado de escritor. Você não precisa ter um livro publicado para ser escritor. Você é escritor se está escrevendo – trabalhando nisso, aprendendo, progredindo. Não importa se você é iniciante.

• Não desista. Você encontrará pedras no caminho. Há dias, por exemplo, em que você sentará e produzirá pouco. É normal e acontece inclusive com escritores experientes. Sente-se na cadeira todos os dias e escreva as palavras na página. Nem todas serão perfeitas, mas escrever é a única maneira de melhorar. O importante é que você esteja determinado a escrever e coloque a escrita no centro de prioridades de sua vida.

• Estude, pesquise, trabalhe duro, aceite feedbacks e contribuições de leitores e outros escritores mais experientes e editores de livros, jornais e revistas.

• Coloque no ar o seu site de escritor com um blogue integrado dentro dele. Disponibilize lá informações sobre sua trajetória, textos, resenhas de livros que recomenda, os eventos que irá participar e todo tipo de informação que achar relevante. Convide as pessoas para acessarem, lerem seus textos e deixar comentários.

• Faça networking. Conheça pessoas da sua comunidade, se envolva, construa relacionamentos com seus leitores. Apresente-se e conheça escritores que você admira, buscando aprender com a experiência deles. Ganhar experiência não é apenas escrever; é sobre construir relacionamentos. Quanto mais pessoas você conhece, mais oportunidades surgirão no seu caminho.
Autorais

Autoria: Supermercado de sentimentos, por Gabu Camacho

Leia ouvindo: my tears ricochet, Taylor Swift

Nossos dias de semana improváveis, meu quarto sempre com a porta fechada para te preservar lá dentro.
– “Redemoinho em dia quente, Jarid Arraes

Eu não me lembro bem da sequência de fatos em que tudo aconteceu desde o supermercado. Em um momento, eu estava lá fazendo compras com a minha mãe. Eu odiava fazer compras com a minha mãe. Enquanto ela percorria todos aqueles corredores, escolhendo o menor preço de cada produto, ora pedindo minha ajuda, ora agradecendo por eu ficar o tempo todo mexendo no celular, eu sentia que uma parte de mim estava faltando. Eu entrava no perfil do Julieu, via suas últimas fotos, seus últimos tweets e sentia meu coração doer.

Conheci Julieu em um grupo de WhatsApp que entrei. Ele mora em outro estado. Conversamos algumas vezes no privado sobre a vida. Sobre nós. Nos conhecemos e eu me apaixonei sem que ele soubesse. Sem sequer saber se ele nutria qualquer sentimento por mim além da pessoa que ele conheceu por um grupo de WhatsApp e que morava em outro estado. Já faziam dias que eu nutria meu sentimento com a imagem que eu tinha dele das redes sociais. Eu alimentava meu coração com os tweets, que eu lia com sua voz doce, eu alimentava meu sentimento com as fotos em suas redes sociais. Já ia fazer um mês. Três semanas para pensar com exatidão, que me preparo para falar com ele. Puxar assunto, ser mais presente, perguntar mais… Julieu parece uma parte do meu coração e eu nem sei como ele se tornou essa parte.

Nos meus sonhos, a gente sempre estava junto. Eu visitava sua cidade, em outro estado, e dormíamos lado a lado na cama de casal. Acordávamos juntos, olhando um para o outro, íamos conhecer a cidade, tomávamos um chocolate quente para nos esquentar do frio do sul. E depois sempre vinha a despedida, de quando eu precisava voltar. Seu sorriso ficaria guardado na minha mente pra sempre e nós faríamos juras da próxima vez em que conseguiríamos nos ver de novo. Nos meus sonhos, nossos pais aceitavam tudo. Tudo era fácil e a nossa idade era só mais um fator.

E então eu acordava. A lembrança dos sonhos da noite anterior pareciam lembranças de algo que já tinham acontecido antes. Sequer conseguia esquecer. Ah, Julieu, se eu tivesse coragem de falar tudo o que eu sinto. Se eu tivesse coragem pra ver todas as cores do mundo com você. Se eu tivesse coragem para falar, entender se era de fato recíproco e então sentir, de verdade, o cheiro do seu cabelo tocando meu nariz e provocando o meu piercing. Se eu tivesse coragem, Julieu.

“Pega a bolacha aí, coloca no carrinho.” Quando minha mãe disse isso, no supermercado, assenti com a cabeça e peguei dois pacotes de Trakinas de chocolate. Mas antes apertei enviar de uma mensagem que eu estava digitando há dias.

“Oi, Juli. Estou com saudade de você.”

Enquanto peguei a bolacha, meu celular tremeu com quatro mensagens novas de Julieu. Sorri por dentro. Cada átomo meu sorriu, mas resolvi esperar a compra acabar para responder. Ajudei minha mãe a guardar tudo no carro, sentei no banco do carona e seguimos para a casa. Tirei o celular do bolso e abri as mensagens.

“Oi, mozi. Que saudade de você também.”
“Sinto sua falta. Vamos assistir um filme juntin hoje a noite?”

Tremi, mas continuei lendo. Por que ele tinha me chamado de “mozi”? Ele nunca tinha me chamado assim antes. Seria esse o início da nossa tão sonhada reciprocidade? Será que todos os meus sonhos de conhecer o sul segurando a sua mão tão parecida com a minha se tornariam realidade?

“Por favoooooor”

E eu não demorei para responder.

“Claro!! Sinto muito sua falta. Qual filme vamos assistir?”
“Preciso deixar carregando antes com a minha internet, vc sabe”

“Um olhar no paraíso, moxi”
“É meu filme preferido da vida”
“Vai, completa o coração”

Ele mandou uma foto da sua mão, curvada, como se fosse um dos lados daqueles corações que fazemos com as mãos. Tirei foto da minha mão oposta, completando o coração, enquanto sentia o meu capotar na caixa torácica. Eu lembro dos detalhes até aqui. Depois, as coisas não são tão claras assim.

Em outro momento, eu estava vendo o filme juntin a Julieu. Comentamos, choramos, conversamos muito naquela noite até altas horas da madrugada. Eu já podia ver todas as nossas cores explodindo em alegria. Eu podia ver nossas mãos dadas no sul e as borboletas saindo do meu estômago. Certa vez li uma frase da Jarid Arraes que dizia, “você mexia com as cores das fitas, abrindo meus ouvidos avinagrados para a beleza das promessas” e eu me sentia assim. Com todas as cores do mundo.

Até que o filme acabou. Julieu dormiu. Ele provavelmente mandaria uma mensagem de madrugada se desculpando, então mandei boa noite e fui dormir também.

A mensagem não veio. Chamei no dia seguinte e Julieu não respondeu. Ele nunca mais respondeu e seus tweets tentavam adubar o meu coração que estava secando, mas não eram suficientes. Julieu nunca mais respondeu nenhuma mensagem, nunca mais sequer visualizou.

Seu Twitter ficou privado e meus galhos secaram. Meus galhos secaram um a um.

Cada dia que eu precisava colocar “Um olhar no paraíso” para rodar no computador enquanto eu tentava pegar no sono, calando todas as minhas vozes era uma estaca no meu coração cravada com o nome de Julieu. Ele não me bloqueou das suas redes sociais, mas ele me bloqueou da sua vida.

Eu precisava de notícias, então pesquisei seu nome no Google e vi que outra pessoa twittara uma foto dele, sentado na escrivaninha do seu quarto com a parede rosa, lá no sul. Pelo ângulo, a pessoa estava na cama. Julieu estava despreocupado, mexendo no celular com uma camisa de botão lindíssima, uma calça jeans rasgada no joelho e aquele tênis preto de skatista que ele sempre usava. O mesmo que ele usou nos nossos passeios oníricos. A legenda dizia “moxi está distraído hoje”.

E depois desse dia, nunca mais tive sequer uma notícia da outra parte do meu coração.

Tudo ficou preto e branco e minhas noites se repetem com o filme rodando em repetição.

Todo dia é a mesma noite para mim.

A última noite com Julieu.

Colunas, Novidades

O desafio da exigência de êxito

O famoso “Poema em Linha Reta” nos diz que todos os conhecidos do poeta eram verdadeiros campeões em tudo, sem derrotas ou fracassos. O poeta, ao contrário dos demais, experimenta todos os erros, inseguranças e medos humanos. Caso ainda não conheça esse poema de Fernando Pessoa com pseudônimo de Álvaro de Campos, vale a pena ler.

O empreendedorismo é uma ilusão que cabe certinho nas nossas fantasias de sucesso: se eu trabalhar bem e muito, serei vencedor em tudo! Há aqui uma certeza embutida de que somos os mestres de nosso próprio destino e, embora isso não esteja de todo errado, esse futuro sonhado é sempre brilhante e glorioso.

Nosso futuro é resultante de variáveis complexas atuais e de eventos passados que certamente desenharam nosso presente. Além disso, algumas dessas decisões são tomadas e ainda modificadas por cada um. O equívoco está em acreditarmos na liberdade plena da decisão consciente sobre nossos atos, já que há em nós uma faceta inconsciente que direciona nossos desejos em cada ato. A parte mais equivocada e triste: não há nenhuma garantia de eficácia e do futuro tão sonhado se concretizar do jeito que idealizamos.

O poder ilusório de ter o futuro nas mãos traz amarrada a certeza de amarga responsabilidade, pois se o ouro não vier, será por falta de esforço da parte do sujeito. Sabemos que as condições sociais e culturais são desiguais e que a boa vontade não é suficiente e, ainda assim, a culpa sobreviverá! E remoeremos, horas a fio, onde e como poderia ter sido feito diferente, e ensaiaremos o que deveria, o que poderia, como, e o constante ‘e se’ martelando as lembranças.

A psicanálise aposta numa determinação inconsciente e que esse é transmitido através da linguagem para além da língua trazendo consigo a cultura. Esse nos precede e nele nos enlaçamos desde o início, através do olhar e voz maternos, dos toques e cuidados que precisamos para sobreviver dada a nossa inexorável vulnerabilidade. O laço nos garantirá a vida.

Os fatos passados que hoje nos afetam podem ser interpretados e ditos de alguma outra forma e a análise se presta à escuta que tornará possível esse percurso. Ressignificar o passado é de certo modo modificá-lo na realidade subjetiva que representará uma mudança atual abrindo novas possibilidades de escolha do futuro que podemos vir a ter.

“Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”, continua o poeta mencionado no início. Na vida nós encontramos alegrias, mas também sofrimentos e sempre fazemos o que nos é possível. É preciso lembrar que sempre será o nosso melhor, dadas as circunstâncias, dadas as possibilidades, dada a nossa história que a tudo, em cada um desses atos, foi determinante. Alguma generosidade no cuidado de saúde mental pode representar uma qualidade de vida ímpar e valiosa.

Longe dessa exigência de êxito, talvez possamos considerar apenas o que nos seja melhor possível sempre. Talvez, lacrar e brilhar acima de todos não seja uma escolha tão feliz assim. Talvez, aceitar uma errância onde eventualmente se acerta possa trazer novamente gente para habitar nosso mundo atualmente pleno de pretensos semideuses. Portanto, deixemo-nos fracassar um pouco!

Montanha russa
Autorais

Autoria: Montanha russa, por Gabu Camacho

Nota de início: Montanha russa foi escrito há muitos anos. Mais de cinco. Ele está presente no primeiro livro, O garoto que usava coroa, mas diferente por lá. Na época em que o livro foi escrito, eu ainda não tinha me assumido LGBTQIAP+ e tive medo de entregar um texto explicitamente LGBTQIAP+ para ser publicado. Apesar do livro ser todo sobre essa temática, de forma mais sutil, eu tive medo na época e por isso, fiz a Stephenie Meyer e troquei o gênero dos personagens. Essa aqui é a versão real. Boa leitura!

Afiadas são as flechas de um coração partido.
— Cassandra Clare, “Cidade do Fogo Celestial”.

Minha animação estava ridiculamente alta. Minha avó havia me chamado para dormir em sua casa neste fim de semana que precedia o natal, afinal, meu primo Matthew chegaria com seu pai Pily do interior, na madrugada. Segundo ela, nós éramos grandes amigos na infância, eu não me lembrava disso, só me lembrava dele, e da sua presença onipresente em meu Facebook.

— Ele disse estar ansioso para te ver, Edmundo. E vocês podem aproveitar o parque de diversões aí na frente. Tudo bem se ele ficar no seu quarto? – Minha vó era muito preocupada em acomodar bem as pessoas.

— Tudo bem sim, vó. – Concordei rapidamente e voltei meu olhar para a janela, que dava numa movimentada avenida, e além dela, havia um terreno baldio, do tipo que circos e parques de diversões se instalavam em datas sublimes. Um parque estava lá agora, e eu via crianças felizes com seus ursos enormes e outras mais felizes ainda com pequenas bolinhas pula-pula.

— Bom, podemos dormir. Quando chegarem, saberemos. Já deixei o café pronto. – A preocupação pelo bem estar era uma coisa que me fascinava na minha avó. Apenas acenei em concordância e segui para o meu quarto, fechando a porta. Tinha duas camas, uma box de casal e outra de solteiro. Deixei-a preparada para Matthew, meu primo, que apesar de exalar uma aura mais velha, tinha quase a minha idade.

Sentei-me a beira da minha cama, olhando para o nada, enquanto retirava o meu colar cujo pingente era uma chave, do pescoço, e me deitei rapidamente olhando para o teto. Peguei no sono em algum momento despercebido, mas pareceu apenas um piscar de olhos quando uma buzina irrompeu em minha mente. Chegaram.

Um micro-ônibus estava parado em frente à casa da minha avó, com todos da família do interior descendo, gradualmente. Ela e meu avô estavam emocionados pela surpresa e eu estava ao canto, com meu cabelo negro desgrenhado cobrindo os olhos, esperando por um rosto que pudesse ser conhecido.

— ED! Como você está lindo, garoto! – Era minha tia Lucie, com seu jeito todo espevitado. Era uma das únicas que gostava e realmente conhecia do interior.

— Ahn, obrigado tia… – Mas ela já tinha saído para abraçar as pessoas entre si. Entrei na casa e me sentei no canto do sofá, querendo me tornar invisível enquanto tentava não ser mal educado e voltar para o quarto. Coloquei a mão involuntariamente no meu pingente de chave, já havia se tornado algo que lhe trazia calmaria.

— Hmm, oi? – Reconheci seu rosto imediatamente. Queimava em vermelho, parecia estar tímido, assim como eu.

— Oi, Matthew. Como está? Tio Pily, oi. – Levantei-me do sofá e abracei ambos. Matt tinha um cheiro masculino adocicado, meu tio cheirava a álcool.

— Grande homem, Ed. Pode ajudar Matthew com as malas e mostrar onde ele deve dormir? Já está com sono. – O tom dele não transmitia orgulho.

— Claro. Vamos, Matt… Matthew. – Droga, estava corando e nem sabia o porquê.

Pegou a maior mala e seguiu o corredor até seu quarto, nos fundos, onde se sentou na cama mais uma vez.

— Quer dar uma volta? – Eu estava ciente da hora, mas o parque de diversões ainda estava aberto.

— Claro. – Ele passou a mão nos seus cabelos negros, que se misturavam arrepiados de maneira preguiçosa.

Atravessamos a rua e fomos juntos para o parque, conversando sobre coisas aleatórias. Dez minutos depois, já éramos melhores amigos de infância. Matt tinha um jeito de criança, no portar assim como no pensar. Parecia um bebê em corpo de adolescente de dezessete anos, e era isso que talvez houvesse me cativado.

— Quero uma bolinha pula-pula do Homem Aranha. – Ele disse certa hora, olhando para mim.

— Vou conseguir uma pra você. – Eu sorri, mas perdi todo meu dinheiro tentando acertar o alvo, e ainda assim não havia conseguido o prêmio. Matt parecia desapontado, mas seguimos para minha avó, mais uma vez. Todos já dormiam, então fomos para fazer o mesmo. Deitei na grande cama de casal e acordei no dia seguinte, já de tardezinha, com meus braços apoiados em um saco que parecia respirar…

Não era um saco. Era Matthew.

Levantei-me silenciosamente e coloquei meu celular na tomada, depois de tirar uma foto do rosto inocente que havia passado a noite ao seu lado. Comecei a me sentir mal desde então, odiava me apegar às pessoas. Eles sempre iam embora, depois. O celular vibrou com a chegada do conselho diário:

Você pode estar em um relacionamento por dois anos e não sentir nada. Você pode estar em um relacionamento por dois meses e sentir tudo. Tempo não é uma grandeza de qualidade, de paixão ou de amor.

Sorri pro meu primo deitado na cama e fui tomar café, com as mãos para dentro da manga longa do pijama comprido.

— Quer voltar ao parque? – Matt chegou pouco tempo depois na mesa de café. — Podemos ir à montanha russa hoje.

— Claro que sim! – Eu estava adorando passar tempo sozinho com Matthew, nossas conversas eram únicas e parecíamos ser irmãos. Isso me deprimia. Sabia que logo depois ele voltaria para a cidade e então, nunca mais nos veríamos.

Nós fomos, brincamos, corremos. Matthew conseguiu uma bolinha do Homem Aranha e logo voltou para a casa. Fiquei no parque mais uns minutos, queria um presente mais especial para ele. Quando voltei, a casa era só berro.

— DELINQUENTE! NÓS VOLTAREMOS PARA CASA AINDA HOJE! – Era meu Tio Pily.

— Calma, Pily… Não precisa tratar o garoto assim. – Minha vó estava calma.

Entrei correndo na casa, mas fui impedido pelos meus pais na cozinha, para chegar até a porta.

— Ed, pegue suas coisas. Estamos indo embora. – Minha mãe soava séria.

— Devo falar com Matt antes?

— Claro, Edmundo. – Meu pai estava compreensivo, como sempre ocorria quando se tratava de sua família.

Entrei no banheiro, mas Matthew não estava para conversa, então logo saí e voltei ao quarto, em prantos, fingindo arrumar minhas coisas, enquanto caçava por um pedaço de papel. Estavam gritando para que eu fosse embora, quando meu tio esmurrava a porta do banheiro querendo que Matt saísse. Tirei meu colar de chave, envolvi em um papel e escrevi no meu garrancho:

Chave para os seus sonhos.

Deixei onde sabia que ele veria, e fui embora. Não sabia o que significava aquele gesto, mas agora não importava mais.

Então, fui embora convicto de que Matthew jamais veria minha carta.

Convicto de que jamais veria Matthew novamente.

Convicto de que meu melhor primo jamais abriria os olhos novamente.

Convicto, de que Matthew havia se suicidado no banheiro da minha avó.

Autorais

Uma crônica sincera sobre acreditar

Eu nunca acreditei muito em mim mesmo. Apesar de saber disso, afinal, eu é quem não acreditava, eu só me dei conta agora. Sim, agora. Terminar a faculdade é uma jornada de autodescoberta tremenda. Começar a faculdade também é.

Quando saí do ensino médio, minha mãe deixou que eu ficasse seis meses em casa, decidindo o que eu queria ser e descansando um pouco. Ela sabia que eu tinha dado tudo de mim estudando de forma integral por três anos, com um técnico em informática junto.

Nesse meio tempo, eu criei um blog. O Ink Nightmare, que veio a ser o Beco Literário depois. Não sei de onde veio o nome, só veio. Eu me dediquei a literatura nesse tempo. Acabei entrando em Engenharia depois. Não tinha uma única pessoa, um único dia que não tenha me dito que eu estava desperdiçando meu talento naquela faculdade. Troquei para Jornalismo. O Beco Literário cresceu. Era o projeto da minha vida.

Eu sonhava em escritórios enormes, pessoas trabalhando e uma super empresa… de literatura. Conheci muita gente. Confiei em muita gente. Tentei de todas as formas fazer o Beco “acontecer” como empresa. Nunca implementei uma ideia que tenha sido genuinamente minha. Sempre tinham interferências no caminho.

O Beco entrou pelo beco escuro e se perdeu. Hoje vejo que era óbvio que isso aconteceria. Na época, eu ainda não sabia. Desisti de tudo inúmeras vezes. Eu não quis mais saber.

Falei para todo mundo que o Beco Literário faliu. Fechou. Que eu nunca mais ia voltar. Eu tinha vergonha dele. Achava que não me encaixava naquilo. Fiquei quase um ano com ele fechado, achando que era definitivo.

E da mesma forma que as coisas deram errado antes, continuaram dando “errado” depois. Nunca consegui cancelar a hospedagem, fechar o site, excluir as redes…. Nunca deixaram de me chamar de “Gabu Camacho do Beco Literário”, mesmo me enveredando por outro nicho. Era parte de mim.

Todo mundo acreditava no Beco mais que eu mesmo. Nem todos de forma positiva. Alguns eram gananciosos e com olhar de inveja. Mas acreditavam. Todos, menos eu.

Todo mundo me desencorajava com ele e eu resolvia parar, mas ao mesmo tempo o mundo não deixava com que eu parasse…. Impasse. Havia algo que eu precisava transpor.

O acreditar. Acreditar em mim mesmo. Acreditei e cá estou eu, tentando de novo. Dessa vez, 100% do meu jeito. Como eu acredito que deva ser. Se não der certo, pelo menos, eu sei que a culpa é minha agora.

Mas eu acredito, pela primeira vez, eu acredito.

Colunas, Livros

Como incentivar os jovens para que leiam mais livros?

As palavras têm muita força. Por isso, devemos prestar atenção quando falamos algo, já que uma opinião inadequada sobre algo pode desestimular o processo de cada um. Isso acontece muito durante os incentivos que despertamos em nossos filhos ou na falta dele, no decorrer do aprendizado ou interesse por determinada atividade, principalmente a leitura de livros.

A leitura quando inserida desde cedo aflora a criatividade e o desenvolvimento cognitivo, além de nos ajudar a estabelecer outro nível de qualidade de interação com o nosso entorno. A última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, de 2016, revela que crianças, adolescentes e jovens concentram as maiores proporções de leitores na população. Na faixa de 5 a 10 anos, 67% são leitores; o topo do índice está na faixa de 11 a 13 anos, com 84%; 75% entre os jovens de 14 a 17 anos; e 67% são leitores na faixa de 18 a 24 anos .

Diante do cenário de um mundo cada vez mais conectado, o trabalho dos pais em incentivar a conexão dos filhos com os livros fica cada vez mais desafiador, principalmente da adolescência em diante, como aponta a pesquisa. Porém, uma vez que o hábito de leitura seja inserido desde cedo, e os filhos sejam estimulados a ler não só livros recomendados por pais e professores mas também aqueles de sua livre escolha, há muito boas chances do gosto pela leitura perdurar por toda a vida. Por exemplo, temos visto um interesse crescente e espontâneo da juventude pelas obras de ficção de fantasia e thrillers.

Um dos grandes dilemas dos pais atualmente é conciliar a rotina de home office com as necessidades dos filhos. Nesse contexto, pode passar despercebida a necessidade de contribuir para que eles não percam o interesse pela leitura durante esse momento de pandemia, visto que em casa existem outras possibilidades de entretenimento (TV, videogames e internet). Assim, dialogar com os filhos é fundamental: converse com eles, fale sobre alguns de seus livros favoritos, o que aprendeu com eles, como a sua leitura mudou a sua vida para melhor; e demonstre interesse genuíno pelos livros que seus filhos estão lendo nesse momento .

Outra dica é organizar uma agenda em comum acordo com os filhos. Separe o horário da lição de casa, dos videogames, da conversa em família e da leitura. Sugiro também você se lembrar daqueles livros que te marcaram na adolescência e juventude e presentear seus filhos com eles. Você pode, inclusive, ler alguns deles junto com eles. Além de criar um vínculo maior pai/mãe-filho, também é uma estratégia interessante para despertar a curiosidade, potencializar a imaginação e ajudar no desenvolvimento deles para que se tornem seres humanos e cidadãos melhores.
Autorais, Livros

Conto: Pronome relativo invariável, por Gabu Camacho

Se eu me perdi em outros lábios, foi pra te prender me odiando. Foi um grito, ainda te espero pra escrever latino-americano. Eu tento, mas nunca me lembro do que eu era antes de você….

– “:( (Nota De Voz 8)”, Jão

O ensino médio não é aquilo que a gente espera. Desde que comecei, quase dois anos atrás, minha vida virou de cabeça pra baixo. Me mudei para os dormitórios da escola. Sim, eu nem sabia que a escola tinha dormitórios. Eram pequenos apartamentos, em que eu era obrigado a dividir com mais dois meninos e mais três meninas. Cada um tinha seu quarto, mas as áreas comuns eram um verdadeiro inferno.

Prazer, me chamo Filipe. Moro com Marcela, Ariana e Yuko, três meninas da minha sala e com João e Guilherme, dois meninos do terceiro ano. Marcela tem a minha idade, 17 anos, Ariana e Yuko devem estar perto dos 19. As duas começaram a namorar no final do primeiro ano e desde então viraram uma coisa só. Aparecem em casa só para dormir e de vez em quando, dar um oi para a gente. João tem 23 anos e está tentando a carreira de músico. Ele repetiu os últimos semestres por conta disso, e por isso ainda não conseguiu se formar. Ele começou a namorar recentemente com Guilherme, que deve ter uns 20. Não me dou muito bem com ele, nem Marcela. De família rica, seus pais já produziram shows de vários artistas famosos como Ivete Sangalo, RBD e Demi Lovato. Acho que ele usa isso para aproximar João dele.

– E aí, cóe a boa para o final de semana? – Marcela interrompeu meu diálogo interno, se sentando no sofá amarelo ao lado do meu. Cores da escola, que me dão nervoso.

– Nenhuma. Eu acho que quero ficar em casa mesmo. – Falei, olhando para as minhas mãos, torcendo para que ela não percebesse. Mas ela percebeu.

Ihhh, tem coisa aí! Me conta! – Ela sorriu, se ajeitando no sofá e olhando para o meu rosto, se sentando em cima das próprias pernas cruzadas.

– Ah, não é nada…. – Hesitei, sentindo meu rosto arder. Droga, eu devia estar corando.

Huuuum, você está vermelho. Desembucha! – Marcela era a minha melhor amiga. Na nossa situação atual, eu só podia confiar nela e ela em mim. O resto dos nossos amigos (ou parceiros de casa) estavam namorando entre si.

– Ontem o João chegou de um show, sozinho…. E eu estava acordado. ­– Comecei, com a voz baixa, mesmo sabendo que não tinha ninguém em casa além de nós dois.

AI MEU PAI! E aí? – Ela gritou.

– Calma! – Eu ri. – Nós ficamos conversando sobre planos futuros, sobre a vida. A gente já fazia isso quase todo dia antes do… bom, antes do Guilherme e ele acontecerem, sabe… – Falei com dificuldade. Marcela olhou para mim desconfiada.

Arrã.

– Ontem ele dormiu, no meu colo. Eu estava fazendo cafuné no cabelo dele. ­– Falei rápido demais, me arrependendo logo em seguida. Agora que eu tinha falado em voz alta, aquilo parecia mais real.

– JESUS, o Guilherme vai surtar se descobrir! – Ela mudou de postura. – Mas achei fofo, vocês combinam. – Ela sorriu.

– É, eu gosto dele, mas… – Comecei de novo, mas a porta de casa escancarou em um baque ensurdecedor.

– Ah, você está aí! – Era Guilherme, apontando para mim. Ele era magro, bem magro, daquele jeito feio. Muito alto, com cabelo espetado para cima, castanho claro e com luzes loiras na ponta. Muito branco. O tipo de pessoa que tinha tudo para ser bonita, mas por alguma ironia do destino saiu feia. Tremi. Marcela assumiu sua pose de pavão pronto para a briga. Ela era barraqueira.

– Que foi? – Consegui falar, baixo demais para o que eu queria.

– Como assim, o que foi? – Ele riu, irônico. – Fica longe do João, ouvindo? – Ele apontou o dedo para mim. – Eu vou dar um futuro pra ele como músico. Meus pais já estão tramando tudo. Além disso, a gente se ama. Não preciso de um pirralho no meu caminho.

– Pirralho? Se enxerga aí, Guilherme! – Marcela falou, rindo dele. – Se o Filipe é uma ameaça pra você, mesmo com tudo isso aí… – Ela gesticulou, se referindo a ele e suas posses milionárias que ele fazia questão de colocar em qualquer assunto que falasse. – Talvez não tenha tanto amor assim.

Nesse momento, eu vi seus olhos crescerem como fogo. Um lampejo de raiva passou pela sua face dura e eu podia jurar que ele ia avançar para cima de nós dois de uma vez só e dar uma surra. Mas não. Ele virou de costas e saiu, batendo a porta e os pés.

– Porra, o que o João vê nesse menino? – Desabafei, me sentando no sofá de novo, sem reparar que eu havia levantado.

– Interesseiro o João não é, tenho certeza. Mas eles fazem muito barulho de madrugada. – Marcela riu, mas o comentário dela me atingiu como uma faca na boca do estômago. Senti vontade de chorar, mas me limitei a levantar e ir para o meu quarto, enquanto Marcela foi para a cozinha, lavar a louça.

Peguei meu celular e liguei para a Ariana. Ela poderia me ajudar em uma coisa que eu precisava muito.

– Ari? Oi, sou eu. Filipe. – Falei, assim que ela atendeu no terceiro toque.

– Fala, Fi! Precisa de alguma coisa? – Sua voz estava preocupada. Eu nunca tinha ligado antes.

– Preciso saber se tudo o que o Guilherme fala que fez é verdade. Pode me ajudar? – Minha voz estava mais desesperada que eu gostaria. Mas sei que Ariana e Yuko eram um túmulo e sabiam muito de computadores. Poderiam rastrear a vida dele em segundos.

– Podemos. Yuko também dentro. Exposição é com a gente mesmo. – Senti uma pontada de esperança dentro de mim.

– Beleza. Obrigado, Ari. – Falei, mais aliviado. – Vou cuidar do resto, beijo. – Desliguei o telefone e voltei para a sala, no balcão que a separava da cozinha.

– Cela, pode alugar a tela e o Datashow da escola e trazer aqui em casa hoje? Quero fazer uma noite do cinema. – Falei, cínico, esperando que ela comprasse minha ideia. – Ari e Yuko vão estar com a gente. Vou convidar o Jô.

– Jô, hein? Que fofo. – Ela disse, olhando para mim enquanto secava um prato. – Deixa comigo que eu já busco. O Robson vai liberar. – Ela sorriu maliciosamente. Marcela estava pegando o professor Robson já tinha uns três meses. Saí da sala e voltei para o meu quarto, pensando em continuar meu plano.

Liguei para João.

– Jô? Oi! Sou eu, Filipe! – Ok, agora minha voz estava mais entusiasmada que o necessário. – Pode falar?

– Claro, Fi. Manda! – Sua voz era serena, tranquila. Guilherme não deveria estar por perto.

– Estamos organizando uma noite do cinema hoje aqui em casa. Com Datashow e tudo. Bora? A gente te espera. – Falei, tentando passar a sensação de que não me importava tanto assim com a presença dele.

– Ah, Fi, obrigado! – Sua voz ponderava e ficou em silêncio por alguns minutos.

– Pode chamar o Gui, também, claro. – Falei, com toda a falsidade que habitava em mim, para que ele não descobrisse o que tinha acontecido hoje mais cedo.

– Estarei aí. – Ele respondeu finalmente e fez silêncio de novo. – Guilherme não vai, não.

– Aconteceu algo? – Minha preocupação era genuína.

– Te conto de noite. Um beijo.

– Outro. – Respondi, delirando, ao mesmo tempo em que desliguei o celular e Marcela abriu a porta do meu quarto de forma abrupta.

tudo aí. – Ela disse. – Vamos fazer nossa ceia de Natal hoje? Eu preparo as comidas. ­– Rolê para a Marcela não era rolê sem comida e daqui a algumas semanas era no Natal de verdade. Todo mundo iria para a casa dos pais assim que as aulas terminassem e só voltaríamos a nos ver no próximo ano. Alguns, com sorte, não veríamos mais.

Bora! – Respondi, gostando da ideia de verdade. – Vou procurar minhas luzinhas para enfeitar tudo. – Eu adorava luzes de Natal.

– VOCÊ É TÃO GAY! – Ela disse, jogando os braços para cima, rindo e fechando a porta do meu quarto. Meu celular começou a tocar. Era Ariana.

– Fi? – Ela falou, quase na mesma hora em que apertei aceitar.

– Oi. – Respondi, aflito.

– Conseguimos algumas coisas. A família do Guilherme não trabalha com música. Na verdade, eles têm um bufê de casamento. – Ela começou a falar e me senti aliviado, ao mesmo tempo em que algo dentro de mim realmente se sentia mal. E se Marcela tivesse razão? E se João realmente gostasse do Guilherme? Se ele não estivesse nessa só por desespero ou interesse de fazer sua carreira musical acontecer? – Além disso, eles são bem conservadores. Tem uma foto que mostra o Gui ao lado de uma menina, dizendo que eles são prometidos um para o outro. – Ok, esse era um bom material.

. Achei ótimo. Mas será que consigo expor ele com isso? – Ponderei.

– Só com isso, não tenho certeza. – A voz de Ari era séria. – Mas Yuko ligou para ela. Eles têm casamento marcado para depois do Natal, depois que o Guilherme terminar a escola.

– ISSO SIM É MARAVILHOSO! – Gritei. – Acha que consegue me mandar tudo isso pra eu editar nosso filme de hoje a noite? – Ri de forma maliciosa.

– A noite estarei aí, com o DVD. Deixa a pipoca pronta. – Ariana era escorpiana, assim como eu, só um pouco mais vingativa pelo ascendente em áries.

– Marcela vai fazer ceia de natal. – Respondi, aliviado.

– Amei. Beijos. – Ela desligou antes que eu pudesse responder.

O resto do dia passou arrastado. Deixei minhas luzes separadas, ajudei Marcela com as comidas da ceia de Natal e estava tudo pronto quando Ariana e Yuko chegaram. Só faltava o João.

– Olá, sumidas! – Marcela disse, comemorando, dando um beijinho em cada uma. Segui o gesto.

– Migo, aqui está o devê – Yuko me entregou uma capinha azul com um CD dentro. Ela era chinesa, ainda estava aprendendo a falar as palavras em português.

– Deu tudo certo? – Eu perguntei, apreensivo, olhando para as duas.

– Deu. – Ariana respondeu, seca.

Que que tá rolando? – Marcela entrou no meio da gente, com seu sotaque carioca.

– Vamos expor alguns hoje. – Sorri, de forma maliciosa.

– QUEEEEE? – Ela surtou. – E você nem disse nada! Traidor. – Achei que ela estava brava de verdade, até que explodiu em gargalhadas. – Mal posso esperar.

João chegou logo em seguida, sozinho. Seu cabelo preto estava um pouco desgrenhado, enrolado. Estava sem barba. Seus olhos eram negros feito jabuticaba e seu rosto era muito branco e angelical. Sua voz deveria ser linda cantando.

– Oi. – Eu disse, tímido.

– E aí? – Ele respondeu, meio desanimado. – tudo bem com você? – Sua preocupação parecia genuína.

– Está. Por quê? – Falei, preocupado, ao mesmo tempo em que me toquei que sequer tinha trocado de roupas.

– O Gui disse que passou por aqui hoje a tarde e você estava abalado… – João falou, sério. Eu ponderei e resolvi que não falaria nada para ele. Mas era tarde demais. Marcela já tinha começado a falar.

– O Guilherme é surtado! – Ela gritou. O semblante de João ficou duro, bravo. – Veio aqui hoje a tarde e falou poucas e boas para o Filipe. Acabou com ele, por sua causa, João… e tem mais!

– Marcela, para! – Gritei, e ela percebeu que tinha falado demais.

– Isso é verdade, Filipe? – Ele olhou fundo nos meus olhos. Não respondi. – Isso aqui é algum tipo de pegadinha contra meu namoro? – Ele estava mal-humorado agora. – O Guilherme jamais faria isso! Ele é uma pessoa boa e está me ajudando muito, ao contrário de todos vocês, que sempre me tacharam como um relé repetente! Ele acredita no meu talento! ­– João estava vermelho, de tanto gritar.

– João, eu acredito em você…. – Comecei, mas era tarde demais. João estava com lágrimas nos olhos.

– Não, não acredita. Ninguém acredita! – Sua raiva era misturada com frustração. – Não quero ficar para a tal ceia e cinema…. – Ele se virou para sair do apartamento, mas Ariana e Yuko foram mais rápidas. De repente, a luz da casa estava apagada e o telão exibia cenas dos pais de Guilherme falando do seu trabalho para um vídeo do Youtube.

“Olá! Somos Antônia e Augusto, donos da Casamenteria, o melhor bufê de casamento do Brasil. Estamos há mais de 30 anos no mercado….”

O semblante de João parou, incrédulo. O vídeo continuou e se transformou em um clipe de prints e fotos. Os pais de Guilherme montando casamentos. Fotos em família. Guilherme e uma menina da sua idade. O print mostrando que eles se casariam no final do ano.

– O que…. Não entendo. Isso é montagem? – João olhou para mim, como uma criança indefesa. Antes que eu pudesse responder, o vídeo se transformou em uma tela de ligação do Skype, que mostrava Yuko e Ariana em uma telinha pequena, ao canto, e a garota da foto, falando na tela, maior.

“Sim, nós vamos nos casar após o Natal. Estou grávida de Guilherme….”

Neste momento, João saiu do seu estado de estupor e deixou o apartamento. Fui atrás e o encontrei sentado no chão, perto da janela do hall de entrada.

– Ei, Jô. – Falei, em pé, antes de me ajoelhar. – Você está bem?

– Estou, Fi. – Sua voz era fofa, como sempre. Não parecia estar com raiva de mim. – Como eu pude ser tão burro? Tão interesseiro? – Ele falava alto, enquanto chorava.

– Você não é nada disso. – Falei.

– Sou sim. Eu nem amo o Guilherme. Ele ia me ajudar e eu entrei nesse relacionamento, mesmo gostando de outra pessoa, e…. – Ele percebeu que falou demais e parou, com a cabeça apoiada nos joelhos dobrados.

Guilherme saiu do elevador e se assustou com a cena. Ele empalideceu e avermelhou, em frações de segundos.

– Que palhaçada é…. – Ele começava a falar, mas João se levantou, na altura do seu rosto e o interrompeu.

– Eu é que te pergunto, Papai. Achou que ia me enganar por quanto tempo? – João gritou. – Achou que eu não ia encontrar na internet? Que eu não ia descobrir que você nunca teve nada relacionado a música na sua família? – Guilherme se desarmou.

– É, tem razão. Fui um idiota. – Sua voz parecia ter uma pitada de arrependimento. – Me deixa explicar, João. Eu sou um fodido. Mas eu gosto de você de verdade, eu quero te ajudar…. – O arrependimento se transformou em desespero.

– Fora daqui. Agora. – João esticou o braço para o elevador. Eu fiquei parado, perto da parede oposta. Guilherme olhou com raiva para mim e entrou no elevador. João se jogou no chão mais uma vez.

– Estou aqui. – Falei baixinho.

– Eu sei, você sempre está. ­– Ele voltou a chorar. Eu o abracei, de uma forma desajeitada, enquanto tentava consolar. – É por isso que eu deveria ter ficado com você, desde o início. ­– A frase saiu, sem que ele permitisse.

– Comigo? – Falei, confuso.

– É. Eu amo você, Filipe. Desde que você chegou nessa casa. – Fiquei confuso. Pela manhã, João era só um sonho distante. Pela noite, ele estava se declarando para mim.

– Calma, você está confuso. – Falei, incrédulo. – Posso ir ali dentro buscar uma coisa? – João assentiu.

Me levantei e entrei no apartamento. As meninas estavam na cozinha, como se nada tivesse acontecido. Peguei meu conjunto de lâmpadas de Natal, embolei na mão e troquei de roupa. Levei as luzes acesas para fora, onde João estava sentado da mesma forma, com a cara de choro, olhando para mim.

– Vamos começar do zero. – Falei.

– Eu adoraria. – Ele respondeu, sorrindo, em meio ao seu rosto vermelho e sua voz de choro. – Vem, me abraça de novo. – Corri, com as luzes vermelhas iluminando meu rosto e as coloquei no chão, para que pudesse iluminar seu rosto angelical também. Ele abriu seu braço e eu me sentei dentro deles, no chão, ao seu lado. Passei meu braço pela sua barriga, abraçando-o, colocando meu rosto na altura do seu coração. – Você me abraçou assim para me cumprimentar quando chegou em casa, lembra?

– Lembro. Gosto de cumprimentar com abraços. – Falei, tímido.

– É. Estou bem informado sobre isso. – Ainda saíam lágrimas dos seus olhos. – Vamos… com calma?

– Arrã. – Falei, sem me soltar do abraço, apertando um pouquinho mais. – Prazer, eu sou Filipe.

– Muito prazer, Filipe. Este chorão aqui é o João. – Ele sorriu com os olhos.

– Prazer, João. – Falei, com minha boca bem próxima da dele.