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Autoria: Para eu não me doer

Foi quando Iracema teve sua primeira face pintada, foi lá, que ela nasceu. Rebentou como faz menino que não avisa à genitora que está por vir, vem de lá seu rosto de índia, seu olho e pele de índia. Nativa de terras estranhas, filha de deuses desconhecidos por todos e por ela mesma, Deuses vingativos e carniceiros, esgotados de paixão e raça nas tintas e penas que se vestem. Gentios para os crentes em um só, mas guerreiros e sábios para os que em tudo acreditam. Índia que provoca guerra entre tribos e homens que qualquer pingo de honra almejam. Guerreira por ter nascido onde nascera, brotado entre as vitórias-régias que por sorte lá estavam, é uma mistura de América do Sul com Europa transcendente, trás consigo a delicadeza de Parisienses, mas quando mexem com os seus, transforma-se em onça que cruza Amazônia, Sertão, Rio e Mar. Mulher dos deuses, não, mulher sobre todos esses.

É mania sua escrever o que sente e o que não conhece, mas conhece por que acusa saber, nem que seja de um modo supérfluo, mas conhece porque afirma: Eu sei. E sabe, que de longe, entre Palmeira e Pau-Brasil, está seu sangue, cunhado de tristeza e raiva. Ódio da existência que lhe propiciou tanta maldade e rancor. Filha do fogo de Ogum, é cicatriz na história de todo um povo, vem banhada das águas de Janaína, emergindo no mar de ouro, é rainha de corações que nem ela mesmo tem conhecimento. Entre tantos reinos, os menos valiosos são seus, mas ela é flecha  certeira, sabe bem o que deseja e o que lhe motiva é nada mais que o melhor entre todos.

Quando pisaram os primeiros aqui na costa, como caranguejos sedentos de água e lama, lá estava, sobre o monte, derrubando cruz e sacerdote, lhe jogando de volta para o inferno de onde viera. Ela é problema, é mistério a ser decifrado. Mulata que aguenta meses no tronco de qualquer senhor, porque é forte como nenhum homem consegue ser. Despejo tudo que conheço sobre ela e ela repudia, menospreza o pouco saber que obtive neste tempo que Deus deu, para ela é pouco, e sabemos, é pouquíssimo para tamanha beleza, tamanha mente maquiavélica e necessitada não de profetas e ciências, mas de amor e do mais bruto. Ela é bruta como aquela pedra desprezada por alguns, mas cobiçada por milhões, pedra escura e profunda, presente na mais afogadora lagoa de toda a Bahia.

Me incomoda saber que um ser desses caminha por ai, entre todos nós, como se fosse comum termos alguém assim respirando o mesmo ar, sentindo o mesmo odor que os esgotos expelem. Me incomoda pois tenho medo de topar com essa pessoa, temo seus movimentos e suas palavras. Ela é perigosa como os raios que pendem nas noites de verão, como o sol escaldante guiado por Carcarás nos dias de inverno. Maltrata saber que ela vive por viver, desde que viera para este lugar. Não é que os compositores sejam tolos, longe disso, mas é que ela sintetiza todas as letras, transformando-se em sinfonias e xotes do mais talentoso sanfoneiro de meu Pernambuco. Ninguém consegue definir quem seja a Índia dos olhos de Índia. Olhos que reúnem paixão e desprezo, quando ela se move a terra entra em transe apenas para observar cada traço de seu corpo, moldado perfeitamente por uma natureza que não erra. Se a natureza errasse, ela seria o único acerto. Mas não, ela não consegue falhar, e toda a perfeição, todo o sincretismo de meu povo, toda a mística de São Luís até Salvador vive em seu trejeito. Meu cérebro cultiva tumores só ao primeiro rastro de sua lembrança, é devastadora como um mar de gente.

Seu rastro tem cada mulher que por aqui passou, seu passado é nutrido de histórias e histórias, não apenas suas, mas de todos, pois é seu rosto um emblema para cada Capitu. Capitu, ah, cigana dos sonhos, você é a realidade que duela com essa, você se transformou em personagem da vida, Capitu, e deixou, o pobre escritor, o desolado escritor sem reação. Cada sorriso seu brilha como os símbolos de minha bandeira, você é o Recife beijando Olinda, é a estrela que do mar nasceu, dançando entre os corais de Iemanjá, é o que de mais belo existe e que venha a existir.

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