A primeira edição de The Wicked + The Divine foi lançada oficialmente no Brasil graças à Geektopia, selo de quadrinhos da Editora Novo Século. A edição conta com os 5 primeiros capítulos lançados pela Image Comics nos Estados Unidos em 2014; foram publicados lá, até agora, mais de 20 volumes. A HQ, que ganhou o British Comic Awards como Melhor História em Quadrinhos, além de ter sido indicada ao Eisner Awards 2015 nas categorias Melhor Série Inédita, Melhor Artista e Melhor Colorista, foi anunciada como próxima estreia do selo durante a última Comic Con Expierence, que ocorreu em São Paulo no início de dezembro de 2016. A edição é linda, ainda que seja bem curta. E apesar de ser recente o lançamento nacional, alguns sites já disponibilizam a HQ online. Nessa resenha apenas os capítulos recentemente publicados no Brasil serão tratados, mas em breve teremos mais textos dedicados aos outros volumes da saga. Então vamos lá.
A HQ escrita por Kieron Gillen e ilustrada por Jamie McKelvie, que já haviam trabalhado juntos em Young Avengers e em Phonogram, une em seus personagens elementos aparentemente opostos: a juventude contemporânea de uma grande cidade, e deuses mitológicos das mais diversas origens.
O livro retrata, basicamente, a história de 12 deuses que ressurgem a cada 90 anos, assumindo os corpos de jovens com cerca de 17 anos que vivem naquele período; no caso do ressurgimento de 2014, sobre o qual lemos no quadrinho, esses deuses se tornam ídolos pop. Eles vivem 2 anos de fama e luxúria, até que morrem para ressurgir 90 anos depois. Temas como vida e morte e o caráter efêmero da fama perpassam a história, que cria uma metáfora interessante ao dizer que se os deuses voltassem em 2014, eles voltariam como ídolos da indústria musical. Além disso, é inteligente fazer com que a existência mundana desses deuses dure apenas dois anos, ainda que em essência sejam imortais. Vejamos um pouco mais da narrativa.
A história se passa em Londres, na Inglaterra, e nos é contada por Laura, uma garota de 17 anos que se mostra logo nas primeiras páginas como uma fangirl. Após a primeira parte do livro, que funciona como uma introdução mostrando o momento em que os deuses do panteão encerram sua jornada, em 31 de dezembro de 1923, voltamos à 2014 para encontrar Laura no banheiro de uma boate, se preparando para ir a um show. Tudo parece bem usual, até percebermos que as emoções e sensações provocadas pelo show de Amaterasu, uma das deusas do Panteão, não são exatamente as mais comuns ou esperadas. A partir daí, e até o fim do volume, temos uma sequência frenética de acontecimentos, com direito a tiroteio, incêndios e cabeças explodindo, tudo sempre envolvido por um ar de sensualidade. Tudo isso é desencadeado após o show já mencionado, quando Laura conhece uma jovem deusa andrógina e arrogante que se apresenta como Lúci. Por estar presente no que se tornou uma cena de crime envolvendo deuses e pessoas comuns, e pelo laço quase imediatamente estabelecido com Lúci, Laura se vê do outro lado, conhecendo e convivendo com os seres que idolatra e com os quais se identifica, intensificando o seu desejo de se tornar um deles.
Em uma de suas primeiras falas, ao ser questionada quanto a tranquilidade que aparenta ter mesmo sabendo que por se tornar uma Deusa seu corpo morrerá antes de completar 20 anos, Amaterasu coloca que “você passa a vida desejando ser especial. E um dia você descobre que é. Mas tudo tem um preço” (p. 27). Em outro momento, podemos acompanhar os pensamentos de Laura, que deixam claro o seu desejo e a sua profunda identificação com os jovens do Panteão: “pra quê perder tempo planejando meu futuro quando não quero um? Meu futuro é futuro nenhum. Meu futuro é este ou meu futuro é nada” (pág. 50). Nesses dois momentos a metáfora fica especialmente clara. Gillen evidencia aqui, sendo esse seu desejo ou não, os princípios que marcam a juventude contemporânea. Não se pode generalizar, é claro, mas os valores mais facilmente observáveis nessa geração nascida na segunda metade da década de noventa ou no começo dos anos 2000 são a supervalorização da aparência, a intensificação do consumo de produtos culturais, a necessidade de atenção e a impaciência. O “ser especial” e a própria felicidade aparecem ligados as ideias de intensidade, efemeridade, prazer a qualquer custo, que se opõem à perenidade, à tradição, à valorização da própria vida e das relações humanas. Não há um fundo de caretice nisso, por mais que possa parecer. Essa valorização da vida vai no sentido de simplesmente respeitar a si mesmo e aos outros indivíduos.
O primeiro volume da história lançado no Brasil não nos permite dizer o que Gillen fará dessa metáfora. Ainda assim, parece bastante pertinente ao que o autor trabalha na história a reflexão quanto ao estilo de vida predominante atualmente, formado a partir daqueles valores já citados e que não é exclusivo da juventude, ainda que nela fique mais intenso e evidente. É possível, portanto, ler The Wicked + The Divine e ver ali apenas uma narrativa interessante e atual, de leitura fluida e grande qualidade gráfica. Para além desses elementos, no entanto, podemos refletir sobre nossa forma de vida e sobre como gastaremos nosso tempo aqui.