Há muito tempo acredita-se que “o olho é a janela da alma”, a ponte para o outro lado, a porta de entrada para tudo o que acontece durante a vida. Claro, para os de fé mais religiosa esse tipo de ditado tem grande peso na forma de se interpretar o mundo ao redor. Mas, será que possui o mesmo peso para aqueles que creem na verdade física, concreta, que aceitam apenas fatos e não suposições ou superstições? Poderia o olho, tão simples e complexo ao mesmo tempo, ser o ponto de ligação entre duas vidas? Questões como essas ecoam em debates espirituais sobre a vida humana, seu passado e seu caminho futuro. Essas questões ecoam também durante todo o diálogo em I Origins, o mais novo filme de ficção roteirizado e dirigido por Mike Cahill (Another Earth, 2011).
Ian Gray (Michael Pitt) é um biólogo molecular que estuda o olho humano em busca de uma forma de provar, cientificamente, que o homem não precisou de um “designer inteligente” para ser criado. Em seus estudos Ian utiliza o olho como a cobaia principal e procura um gene de origem para que assim possa criar o órgão a partir do zero, tal como o Criador – seja ele de qualquer religião – fez no “início de tudo”.
O discurso “ciência versus religião” está presente durante as duas fases do filme. A primeira, que se passa antes do prólogo apresentado logo nos primeiros minutos do longa, em que Ian, o jovem biólogo, conhece os olhos que vão mudar sua vida. E a segunda, sete anos depois, quando já é um renomado cientista e vê seu filho se tornar objeto de estudo de um projeto com o mesmo ideal que o seu, abrir a visão do mundo a respeito do olho, mas trabalhado por um ângulo completamente diferente.
“Você já sentiu que, ao conhecer uma pessoa, é como se ela preenchesse um buraco dentro de você e, quando ela se vai, você sente aquele espaço dolorosamente vago?”
Durante uma festa, Ian conhece uma garota com quem tem logo uma conexão estranha e inexplicável. Por costume, pede para tirar uma foto de seus olhos para guardar em seu registro pessoal – que já conta com centenas de fotos de olhares, os mais diferentes possíveis. Após essa noite, Ian não consegue se esquecer da jovem vestida de pássaro que conheceu na festa e utiliza a única chave que possui para encontrá-la: os olhos.
Após encontrar a jovem Sofi Elizondo (Astrid Berges-Frisbey) num enorme anúncio de outdoor, a vida de Ian passa por inúmeros contextos e momentos. Sofi tem um lado espiritual bem carregado e acredita que ela e Ian estão conectados por alguma força anterior a eles e em diversos momentos tenta explicar ao biólogo as razões metafísicas de estarem juntos.
Enquanto leva a vida feliz ao lado da modelo, sua vida profissional dá um salto quando sua assistente Karen (Brit Marling) acaba por descobrir a origem da formação do olho, através do gene que Ian vem trabalhado durante toda a vida e assim podem seguir com o trabalho de construir um olho a partir do zero, misturando e recombinando as mutações presentes nos diversos tipos de olhos existentes.
“A melhor coisa de viver como um rato de laboratório é que às vezes, poucas vezes, você realmente descobre algo e na noite da descoberta, quando você está deitado na cama, é a única pessoa no mundo a saber da verdade.”
A trama transcorre lentamente até que um acidente marca a vida de Ian e abre sua mente a pensamentos subjetivos a respeito da própria origem, científica e espiritual. A partir de então a atmosfera do filme muda completamente dando início ao que citei anteriormente como segunda parte, a narrada após o prólogo do filme.
Visualmente o longa-metragem se permite a essa tal divisão, mesmo que de forma subjetiva, em uma metade de escuridão e outra de clareza, tanto no lado científico quanto no “espiritual”. Em certa cena, quando Sofi está junto de Ian no quarto e começa sua lição sobre “aquilo que não se vê”, ela cita a porta como o meio de passagem de um lado para o outro, tendo a imagem do quarto escuro sendo iluminado por um feixe de luz que entra por uma fresta na porta. Essa visão é finalmente quebrada ao final do filme quando o biólogo atravessa uma porta de vidro, bem iluminada e quase de todo transparente.
Esse tipo de observação se dá conta pela excelente fotografia presente no filme. Uma espécie de filtro carrega as cenas com um ar melancólico e reflexivo, ótimo para quem tem essa sensibilidade visual e gosta de apreciar a arte em forma de imagem e luz.
Continuando uma análise mais técnica de I Origins, o clima do longa-metragem se deve não só de sua atmosfera mórbida – e ativa ao mesmo tempo, mas também pela trilha sonora. A música da festa em que Ian conhece Sofi gira numa espécie de eco aos ouvidos do telespectador. Ao ser reproduzida outras vezes é possível sentir a carga emocional que o som unido às cenas traz aos sentidos de quem as assiste.
Não só a trilha como a própria sonorização produzem um efeito quase que alucinógeno, tanto que pode – e deve ser – ouvida por qualquer pessoa em qualquer situação. Esse texto, por exemplo, foi escrito em sua maioria ao som de “Lucky Elevens”, uma das músicas tocadas para ambientação da trilha original.
“O olho é o ponto de discórdia que as pessoas religiosas usam para desacreditar a evolução.”
Toda a sequência de cenas tem sua origem na análise da visão não como sentido único, mas subjetivo. Seja a visão física, aquela por onde a luz refletida nos entra pelos olhos e forma a imagem em nosso cérebro, ou a visão “lateral”, aquela que permite ao homem enxergar “aquilo que não se vê”, ou seja, uma forma mais mística e além da física. O lance da sombra e luz, citado anteriormente, se repete do início ao fim do filme e é perfeitamente percebido nesses dois extremos. Na festa, escura, quando Ian, como biólogo cético, desenvolve seu interesse por uma desconhecida; até a saída do mesmo biólogo, agora com o esclarecimento margeando seus sentidos, de um hotel na Índia em direção à luz.
I Origins é um filme que provoca a reflexão e age em todos os sentidos. Mike Cahill assina seu nome numa lista de referência no gênero da ficção trabalhada com jogadas de fé e religiosidade – já presentes em outro filme do diretor. O longa tem seus aspectos bem trabalhados e pode ser interpretado de diversas formas dependendo do pensamento que o espectador tenha, seja baseado em crença ou ciência. Entretanto, se não for visto com uma certa distância, pode se tornar um nó na cabeça de quem não espera ter suas convicções contestadas, mesmo que por meio de uma obra não real, e ser o início de longas discussões a respeito da nossa origem, do nosso presente e do nosso destino como ser humano, físico ou não.