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Julia Ducournau

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Crítica: Raw (Grave, 2016)

Outubro é o mês do Halloween, e com ele vem festas de Dias das Bruxas e maratonas de filmes de terror. E para ajudar nessa difícil missão de escolher os filmes de terror ou que tenham como temática o Halloween, que me proponho até o fim desse mês, fazer críticas de alguns filmes de terror (ou similares) que assisti e assistirei esse mês.

Imagem: Divulgação

 

O primeiro deles é Raw (Grave), filme de horror francês da diretora e roteirista Julia Ducournau que tem como tema o processo de tornar-se mulher, que todas nós, mulheres, passamos na puberdade. Tudo sob uma perspectiva feminina, mostrando o processo de autodescoberta de uma jovem de 16 anos, em uma sociedade com altas expectativas sociais e culturais, e que impõe regras e padrões difíceis de se alcançar, principalmente para as mulheres. Ah, e canibalismo!

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A história segue Justine — genialmente interpretada pela jovem atriz, Garance Marillier — uma jovem educada no vegetarianismo que acabou de passar para o curso de veterinária na faculdade, curso que seus pais prestaram, e que sua irmã mais velha já está cursando. Adiantada para sua idade, Justine se vê agora diante da perspectiva de enfrentar a faculdade: morando longe dos pais, com colegas hostis e competitivos e professores que não dão a mínima para ela. E os famosos trotes. Em um deles, a menina é obrigada a comer carne pela primeira vez, e partir de então começa a ter uma fome descontrolada por qualquer tipo de carne. Incluindo a humana.

ATENÇÃO ALGUNS SPOILERS ABAIXO

Imagem: Divulgação

Raw causou polêmica no Festival de Cannes 2016 (onde foi premiado na Semana da Crítica como Melhor Filme pela FIPRESCI) e posteriormente no Festival do Rio 2016, pois não era para pessoas de estômago fraco. “Membros do público desmaiaram”, era uma das manchetes sobre o filme, e por isso o filme logo me chamou a atenção e fiquei com altas expectativas, que foram supridas satisfatoriamente.

Eu adoro terror e horror, e um subgênero que me agrada muito é o gore. Gore ou Splatter é um subgênero do terror/horror, que deliberadamente, se concentra em representações gráficas de sangue e violência. No entanto, poucos filmes categorizados como gore utilizam a violência gráfica de forma inteligente e condizente com a história que está contando, tornando a violência gráfica uma violência gratuita e de mau gosto; fazendo com que as produções desse subgênero sejam taxadas de ruins. Um gore bem feito para mim, é aquele que causa a agonia e repulsa necessárias no telespectador e não risadas, e para isso é necessário que o diretor utilize a violência gráfica no momento certo em que a narrativa pedir, e não a todo momento, apenas para chocar o público.

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E isso, Julia Ducournau fez com maestria, utilizando de situações normais, como por exemplo, uma cena de depilação, e tornando-a uma das cenas mais agonizantes de todo o filme. Utilizando uma paleta de cores frias para constatar com as cenas mais sangrentas, uma abordagem parecida com os filmes da cineasta Claire Denis, também francesa (inclusive, acho que o cinema de horror francês sabe trabalhar melhor o gore do que o americano).

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A câmera é focada em closes na protagonista, para passar a sensação necessária de agonia e claustrofobia, para sentirmos todas as transformações que Justine passa junto com ela. Justine se sente deslocada e apreensiva o tempo todo: ela é considerada um gênio, por isso passou no vestibular mais cedo do que os outros, e agora terá que viver longe dos pais nos alojamentos da faculdade. Na faculdade, todos estão preocupados consigo mesmos, e sendo uma caloura é obrigada a passar por todos os tipos de trotes que os veteranos inventarem. Ao mesmo tempo, ela está tendo o seu despertar sexual— e em meio as festas regadas a bebidas e sexo — Justine, virgem e tímida, e com um mega crush em seu colega de quarto que é gay; ela não sabe lidar com o que está acontecendo consigo mesma.

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Sua família é de vegetarianos, então ela nunca comeu carne. Mas, em um dos trotes, é obrigada pela própria irmã, Alexia, a comer carne de ovelha. Alexia também foi criada como vegetariana, mas longe dos pais, seus hábitos mudaram. Após ingerir a carne de ovelha, Justine tem uma reação alérgica, em uma cena que pode ser trigger/gatilho para pessoas que com alergias, por isso recomendo que pulem. A cena é longa, com super closes na protagonista, causando uma agonia no telespectador, a mesma agonia que a protagonista está sentindo.

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Justine, então, passa a sentir uma fome incontrolável por carne, desde hambúrguer e até mesmo carne crua. Até que, após um acidente, onde o dedo de sua irmã Alexia (Ella Rumpf, outro grande destaque do filme) é decepado, e Justine sente um desejo incontrolável de comê-lo. Justine passa então a desejar carne humana, que vai muito de encontro aos seus próprios desejos sexuais, fazendo-a desejar comer, literalmente, Adrien (Rabah Nait Oufella), seu colega de quarto.

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O roteiro de Julia Ducournau usa muito bem a metáfora do canibalismo como o despertar sexual de Justine como mulher, ambos considerados, em níveis diferentes, tabus da sociedade. Outro ponto é a boa utilização dos personagens, a história em si gira em torno de Justine, mas todos os personagens e tramas são importantes, e todos são desenvolvidos. Destaque para a relação de Justine e Alexia: a irmã mais velha é o perfeito contraponto de Justine. Também canibal, Alexia se entregou de corpo e alma a esse estilo de vida primitivo e animalesco, e incentiva Justine a fazer o mesmo.

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A relação das duas é complexa e real, como relacionamentos fraternos geralmente são: ao mesmo tempo que querem matar uma a outra, são as primeiras a se ajudarem. Ella e Garance ficam muito bem juntas em cena, com Alexia sempre sendo mais explosiva e animalesca, enquanto Justine é mais retraída, tentando reprimir a todo custo a si mesma.

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Devo destacar também a trilha sonora: a comercial possui músicas maravilhosas e que casam perfeitamente com a cena e a construção da personagem- destaque para Plus Putes que toutes les Putes de Orties. Mas é a trilha instrumental, maravilhosamente composta por Jim Williams, que é o grande destaque da trama, aparecendo em pontos chaves do longa, como quando Justine come carne humana pela primeira vez, ou a impactante cena final (tornando-a ainda mais impactante, deixando o espectador de boca aberta).

Raw é um filme agonizante e realmente não é para quem tem estômago fraco. Julia Ducournau utilizou muito bem o gore para contar a puberdade e o despertar da sexualidade de uma jovem mulher. Também não é um filme que te dá respostas, se é isso que você busca, não o assista achando que o roteiro explicará do porquê Justine tem instintos canibais, pois esse não é o ponto. É um filme maravilhoso, mas não recomendo para quem tem triggers/gatilhos com sangue ou alergias.

Raw (Grave) já está disponível no catálogo da Netflix.

ATENÇÃO: O TRAILER POSSUI CENAS QUE PODEM SER GATILHOS COM SANGUE OU ALERGIAS!