O termo “histeria” é datado de mais de 2000 anos. Tendo passado por várias transformações ao longo dos séculos, saiu de significado para enfermidades do útero até para categoria descritiva de condições psíquicas. O fato é, ele foi empregado de diversas maneiras ao longo da história, por isso, entender histeria corresponde a entender um pouco da história etimológica e etiológica do termo.
Hoje, vivemos na sociedade da informação e cada vez mais, movimentos contra o machismo e o patriarcado tem ganhado forças, com razão. Uma das pautas desse movimento corresponde ao paralelo que traçarei nesse texto, entre histeria e gaslighting, já que, um homem com opiniões fortes é alguém socialmente importante, e uma mulher, que se porta da mesma maneira, é tida como “histérica”.
A histeria
Supõe-se que o termo “histeria” tenha sido usado pela primeira vez por Hipócrates, considerado por muitos como o “pai da medicina”. O termo originou-da palavra grega “hysterikos”, que se referia a uma condição clínica peculiar a mulheres, causada por enfermidades no útero. Acreditava-se, nessa época, que a causa da histeria fosse um movimento irregular de sangue do útero para o cérebro.
Foi então, que no final do século XIX, Jean-Martin Charcot, neurologista francês, passou a empregar a hipnose para estudar a histeria, demonstrando que o quadro histérico acontecia por causas psicológicas e não físicas, como se acreditava até então. Sigmund Freud, pai da psicanálise, estudou um tempo com Charcot e seus métodos hipnóticos e posteriormente, compreendeu e postulou que a histeria era uma neurose causada por um trauma psíquico na infância cuja representação se separava do afeto aflitivo causado pelo trauma e vinha a trazer sintomas somáticos aos pacientes (o que ficou conhecido como conversão histérica).
A histeria foi o que permitiu Freud a dar seus primeiros passos para criar a Psicanálise e o que hoje conhecemos como cura pela fala. Dando um pequeno salto temporal, hoje, é sabido que a histeria não é uma neurose que acomete somente as mulheres, isto é, ela também pode estar presente nos homens, no entanto, devido a grande popularidade que o termo ganhou com o passar dos anos, ele não é mais usado na psiquiatria contemporânea, por exemplo, por estigmatizar pessoas, sobretudo, mulheres.
O termo hoje pode causar confusões diagnósticas e por isso, alguns especialistas denominam a histeria como um “transtorno dissociativo”, ou seja, os sintomas quando não advém de um quadro orgânico, possivelmente vem de um quadro psiquiátrico com bases mais severas, como a depressão, por exemplo. Além disso, a classificação internacional de doenças (CID-10), divide a histeria em vários grupos diagnósticos, como o “Transtorno de Personalidade Histriônica”.
Concluímos que o termo histeria, apesar de ser usado para caráter de estudo e compreensão, deve ser utilizado com cautela e sempre especificado de acordo com o que é compreendido nos dias de hoje para evitar a estigmatização que já é tão presente em nossa sociedade como compreenderemos ao final deste texto.
O gaslighting
“Gaslighting” é o termo inglês usado para designar uma forma de abuso psicológico que, basicamente, faz as vítimas duvidarem de si mesmas e das informações que possuem. Também popularizado simplesmente como “manipulação”, está muito presente em relacionamentos abusivos, principalmente, mas não exclusivamente, entre homens e mulheres.
O termo surgiu com a peça teatral “Gas Light”, de 1938, em que havia uma manipulação psicológica intensa utilizada pelo protagonista com a sua vítima. O enredo fala de um marido que tenta convencer sua esposa de que ela é louca, manipulando pequenas coisas, insistindo no seu erro, nas suas incoerências e enganos, quando ela percebe. Esse breve resumo da peça, por si só, é um exemplo clássico de como o gaslighting pode acontecer dentro de relacionamentos afetivos.
O abuso psicológico acontece na distorção. O abusador distorce informações, omitindo ou inventando de forma sutil e seletiva para o seu próprio favorecimento, de forma com que a vítima passe a duvidar de sua própria memória, percepções e sanidade mental. Ele pode acontecer de forma mais simples, com negações do agressor sobre abusos anteriores (um exemplo famoso é o “isso não aconteceu dessa forma, você percebeu errado…”) até de formas mais severas como a desorientação total da vítima (por exemplo, esconder objetos, apagar provas concretas e coisas que possam comprovar a percepção do sofredor).
A estratégia do gaslighting é fazer com que a vítima se sinta paranoica. Todos os seus pensamentos, ações, emoções e percepções são reduzidos a fantasias, coisas que só acontecem em sua cabeça, segundo o abusador.
O gaslighting e a histeria: conclusão
O machismo ainda é muito presente em nossa sociedade. Por muitos anos, o mundo se construiu em uma sociedade totalmente patriarcal, em que a mulher era tida somente para servir ao homem. Essas morais foram passadas de geração para geração, sem perceber que os tempos mudaram. As mulheres não são inferiores aos homens e essa é uma luta encabeçada diariamente pelo movimento feminista, que busca a equidade entre os gêneros. Equidade para que as mulheres tenham e sejam vistas de forma correspondente aos homens, fato que não acontece na maioria das vezes, sobre tudo nessa ótica em que analisaremos a histeria e o gaslighting.
O termo “histeria”, como apresentamos, era destinado, há dois mil anos, para designar patologias relacionadas a mulheres. Isso mudou, mas os estigmas permaneceram. Hoje em dia, mesmo com todos os adventos informativos, um homem que se impõe, mostra opiniões fortes e agressivas de forma inesperada e repentina, é alguém que tem a personalidade forte.
Mas, e a mulher? A mulher que precisa se impor devido ao machismo diário da sociedade, que precisa aumentar o tom de voz para ser ouvida e muitas vezes, ser agressiva, é tida como histérica. O homem é alguém de personalidade forte (o que muitas vezes é proferido em tom positivo, de elogio), já a mulher, é uma pessoa histérica (com tom pejorativo, negativo).
O discurso de quem comete o gaslighting, principalmente em relacionamentos heterossexuais, é de que a mulher é histérica. Que as coisas não aconteceram daquela forma que ela relata, denuncia. Que ela está louca. Que ela está exagerando. E a vítima, acaba por parar e pensar “Será que estou mesmo louca? Será que as coisas realmente estão exageradas agora na minha mente?”
A nossa percepção é única e quando alguém nos faz duvidar dela, é hora de dar um passo para trás e compreender da forma mais fiel possível o que estamos sentindo e o que queremos denunciar. O gaslighting é uma estratégia perversa, sutil e muito ardilosa. Ele é uma forma de abuso disfarçada de brincadeira, de confusão. Você dificilmente estará errado ou errada com a sua percepção. Mas, o abusador quer que você se questione. Ele quer que você duvide de si mesmo e comece a ter cada vez menos autoestima para que seus abusos se tornem cada vez mais fáceis e imperceptíveis.
Vale a pena ressaltar que, apesar do exemplo citado ser em um relacionamento heterossexual, com o abusador sendo um homem e a vítima, uma mulher, o gaslighting pode acontecer em qualquer tipo de relacionamento, seja afetivo ou não. Ele pode estar presente em um relacionamento entre dois homens, duas mulheres, ou então, a vítima pode ser um homem e a abusadora, uma mulher. Além disso, ele também pode estar presente numa relação entre mãe e filho, pai e filho.
É preciso conhecer e tirar estigmas para que cada vez menos vítimas sejam encarceradas por esse tipo de abuso.