Quando duas queridinhas do público como a Marvel e a Netflix, notoriamente conhecidas pela qualidade de suas produções, se juntam no desafio de adaptar uma HQ, não é possível esperar algo menor do que grandeza. Sabe aquele filme de 2003, com Ben Affleck? Já podemos esquecê-lo. A série conta a história do Demolidor como deveria ter sido desde o início e cria um novo patamar para séries de super-heróis que será difícil superar.
O primeiro destaque a ser dado à produção refere-se ao seu clima bem mais sombrio do que vemos em outras adaptações da Marvel para a TV e, inclusive, para as telonas. A fotografia, praticamente cinematográfica, não nos deixa esquecer disso em nenhum momento. Hell’s Kitchen é uma cidade doente, suja, e logo descobrimos que isso não se limita apenas ao visual. Em suas entranhas, o crime e a corrupção crescem desenfreadamente. Polícia, juízes, jornalistas, todos estão à mercê dessa infecção.
Em meio ao caos, Matt Murdock mantém a esperança de que tudo pode mudar. Vivendo em dois mundos, durante o dia Matt recorre à justiça para ajudar aqueles que necessitam de auxílio. A justiça, entretanto, é cega (sem trocadilhos) e muitas vezes somente ela não basta. É à noite, então, que o advogado recorre a meios pouco convencionais para combater aquilo que considera errado. Assim nasce o mascarado que trará dor de cabeça para os criminosos que espalham seus domínios.
A construção dos personagens é extraordinária. O próprio formato, diferente de filmes, já permite explorar melhor a humanização e a complexidade dos mesmos. O destaque reside justamente no protagonista e no antagonista da história. O desenvolvimento de ambos, seus medos, suas angústias, seus desejos, suas dúvidas e, até mesmo, o que possuem em comum (o amor pela cidade e a visão individual de como transformar o lugar onde moram em algo melhor) é sem igual. O passado dos dois é carregado de acontecimentos traumáticos, que nos auxiliam a entender quem são. Aliás, flashbacks são cirurgicamente incluídos, sem excessos, para ajudar na construção e no crescimento da história de cada um.
O trio principal funciona muito bem quando está junto. Enquanto Foggy é impulsivo e traz um alívio cômico à série, Matt é calculista e contido, muitas vezes responsável por frear algumas das atitudes do parceiro. Karen Page, por sua vez, chega de maneira tímida e logo começamos a perceber que existe muito mistério por trás daquele rosto bonito. Os outros integrantes do mundo do crime (como Gao, Leland e Vladimir), são pouco desenvolvidos e ficam eclipsados pela figura de Wilson Fisk (ou Rei do Crime para os mais íntimos), fato totalmente compreensível. Fisk é a perfeita representação do instável e imprevisível em contraste com certa inocência e delicadeza. Sua mente é bem complexa e Vincent D’Onofrio soube incorporar muito bem as nuances do personagem.
Os embates psicológicos de Matt ao lidar com sua atual situação reforçam sua humanização e o tornam mais crível, simples, por assim dizer, em um mundo onde Os Vingadores cuidam do plano geral. O advogado está sempre se questionando sobre seus limites e possui uma forte vertente religiosa como pano de fundo.
Falando em Os Vingadores, referências não faltam ao universo cinematográfico da Marvel, principalmente em relação à batalha de Nova York, que trouxe destruição também para Hell’s Kitchen. Portanto, já ficou bem claro que Daredevil agradará aos exigentes fãs das HQ e dos filmes.
Entretanto, se você não conhece ou não gosta do formato, não se preocupe. A série vai além de apenas uma adaptação e pode ser apreciada por todo tipo de público. Nela encontramos drama policial, elementos de advocacia e muita ação. Pode ser pesada algumas vezes, com violência e muito sangue. As cenas de luta possuem uma coreografia magistral, em grandes planos-sequência que são capazes de deixar qualquer um com o queixo caído.
Mas não pense que Daredevil escapa de clichês já comuns quando se trata de justiceiros mascarados. Temos a questão do sigilo da identidade, da vida dupla, da polícia como inimiga, o afastamento de conhecidos, enfim, coisas que parecem inevitáveis em uma temática como essa.
A narrativa é quase sempre tensa, e se arrasta em alguns poucos momentos. Tudo flui para um clímax incrível. Mesmo assim, a temporada deixa diversas pontas soltas sem um devido encerramento, que nos deixam ansiosos para a segunda temporada.
A espera definitivamente será longa. Mais uma vez a Marvel e a Netflix mostraram que quando se trata de qualidade, elas entendem.