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O Jongo vive: da senzala às grandes comunidades

Durante um estágio na Secretaria de Cultura de Guaratinguetá, no interior do estado de São Paulo, recebi na minha escala de trabalho a missão de cobrir um evento em junho de 2018, a “Festa do Jongo”, no bairro Tamandaré. Nunca sequer tinha ouvido falar sobre isso, mas percebi que a festa ocorria todo ano na região. Fui perguntar para algumas pessoas que conheço, e elas não souberam me explicar, disseram que não era algo do bem. “Como assim existe algo que não é do bem para algumas pessoas, e para outras sim?”, essa foi a pergunta que me fez ficar refletindo por alguns minutos, até que resolvi fazer uma rápida pesquisa do que era o Jongo.

Descobri que o termo se refere a uma dança de origem bantu – região que atualmente abriga grande parte do território da República de Angola – e que chegou ao Brasil no período colonial, quando os negros dessa área eram trazidos como escravos para o trabalho forçado nas fazendas de café do Vale do Rio Paraíba, entre os estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, e também nas de Minas Gerais. Com sentimentos de alegria, partilha e confraternização, os escravos tinham a permissão de seus senhores para dançar o Jongo nos dias dedicados aos santos católicos, gerando um momento único. Mesmo sendo considerada profana, a dança incorporava algumas atitudes religiosas, e, por isso, jovens ficavam de fora da roda, apenas observando, já que eram julgados pelos mais antigos por não usufruírem de respeito e de dedicação suficientes para entender os segredos que o Jongo e os fundamentos dos seus pontos traziam.

Jongo

Os pontos de Jongo nada mais são do que provérbios e crônicas dirigidos de maneira poética e musical entre os jongueiros – como é chamado quem dança o Jongo – comentando a vida cotidiana, o passado e o presente de forma metafórica, muitas vezes sendo uma maneira de planejar fugas no período do Brasil Colônia, sem que os senhores e capatazes os compreendessem. Os jongueiros se desafiavam para saber quem tinha mais sabedoria, e buscavam encantar o outro por meio destes pontos. Quem recebesse um ponto enigmático tinha que decifrá-lo na hora e respondê-lo, ou seja, “desatar o ponto”. Caso contrário, ficava enfeitiçado, “amarrado”, chegava a desmaiar, perder a voz, se perder na mata, ou até mesmo morrer instantaneamente. Hoje em dia, isso não acontece mais.

Várias tradições permeiam até os dias atuais nas comunidades jongueiras. Por ser uma dança ligada aos ancestrais, alguns jongueiros dizem que quem possui “vista forte” consegue enxergar um falecido jongueiro – em muitos casos preto-velhos escravos, pertencendo à “linha das almas” – se aproximando da roda para relembrar a época em que a frequentava. Outros costumam dizer que, à meia-noite, uma muda de bananeira era plantada no terreiro, crescendo e dando frutos, os quais eram distribuídos para os presentes.

Buscando me aprofundar mais sobre o Jongo no Brasil, fui atrás de respostas concretas com minha companheira de trabalho, Aline Damásio, secretária de Cultura de Guaratinguetá. “O Jongo é minha raiz. Me representou na infância, na adolescência e representa na fase adulta”, garante Aline.

“O Jongo é minha raiz. Me representou na infância, na adolescência e representa na fase adulta.”

Participante da comunidade do Jongo da Tamandaré, um dos grupos jongueiros mais tradicionais do território nacional, ela conta que as manifestações culturais que pertencem a determinadas comunidades possuem maior facilidade para criar uma rede amiga e participante dentro do próprio bairro ou região da cidade. “Ter lideranças articuladas também é um diferencial para continuidade e fortalecimento”, completa Aline. Além da Tamandaré, o Jongo da Serrinha, Pinheiral e Valença também são referências no país.

Apesar de não ser de conhecimento por grande parte da população, o Jongo é reconhecido patrimônio imaterial do brasileiro pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Para Aline, o reconhecimento do Jongo por parte de uma instituição que preza pela história e pela arte da nossa cultura é um grande avanço para continuar a jornada nessa difícil estrada. “Divulgação, reconhecimento e espaço na cena cultural certamente são fortes ferramentas para a continuidade da tradição”, acrescenta.

O preconceito e a intolerância que conhecemos também afeta a vida na comunidade, principalmente por ser relacionada às matrizes africanas e por ser confundida com religiões da mesma descendência. “Certamente, muita gente não frequenta por achar que o Jongo é religião. O que acho um erro. O Jongueiro Jefinho costuma dizer uma frase interessante: ‘O Jongo não é religião, mas muitas pessoas que frequentam o Jongo são da religião’. As pessoas não enxergam a diferença”, aponta Aline.

Como atuante nas áreas da educação e da cultura entre os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro e também no Distrito Federal, Aline ressalta que todo órgão público – federal, estadual e municipal – deveria dar apoio à tradição e à cultura da sua região, ajudando a fortalecer cada vez mais nossas raízes.

Por fim, todas as palavras inferidas sobre o Jongo anteriormente foram descontruídas da minha mente na noite em que visitei a comunidade jongueira do Tamandaré. Comidas como cachorro quente e pipoca, e uma bebida feita de cravo, canela, erva doce, noz moscada e cachaça, chamada canelinha eram distribuídos com afeto entre os integrantes. Um sentimento de alegria e de partilha permeava a festa com pessoas dançando em volta de uma fogueira, cantando, sorrindo e confraternizando naquele momento único, representando toda a tradição vinda das senzalas.

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1 comentário

  • Responder Wilderlane 06/08/20 em 17:12

    Excelente!
    Fico fascinada com as heranças de matrizes africanas. Ricas culturalmente e esteticamente. Infelizmente paira muitos preconceitos, de forma que as pessoas julgam algo como “inapropriado” sem nem ao menos conhecer.

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