“Se há homens que a pátria agradecida confere oficialmente o título de grande de Pai, eu creio, Senhor Presidente, que nosso idolatrado Brasil viu a luz uma mulher de tal modo excepcional na sua época, de tal modo ilustre(…), que bem merece, agora que seu corpo terreno se desfaz em pó que vejo e que o espírito liberto luminosamente se lhe integra na alma nacional, o título mais que qualquer outro enaltecedor, entre todos belo título de Mãe da Pátria.”
Trecho do discurso de posse de Afonso Lopes de Almeida, filho de Julia, na Academia Carioca de Letras em 1939
Qual desfecho possível para uma trama que envolve o furto de moedas de um cofre em que a única guardiã da chave é a maior interessada em manter os bens a salvo e portanto a única que não pode ser acusada do delito? Essa é a pergunta que norteia o enredo de “O Funil do Diabo” (Janela Amarela Editora, 191 pág.), o último romance da carioca Julia Lopes de Almeida, falecida em 1934. É a primeira vez que a trama é apresentada nos formatos de livro e digital — anteriormente foi publicada como novela no Jornal do Commercio. A obra está em pré-venda pelo site de financiamento coletivo Catarse. Somente 100 cópias numeradas serão disponibilizadas na plataforma, com previsão de envio aos apoiadores a partir da segunda quinzena de junho. Posteriormente, o livro será disponibilizado em formato físico e digital nas principais livrarias e marketplaces.
O lançamento é mais um passo no resgate da bibliografia de uma das autoras de maior relevância do cenário nacional, patrona da cadeira 26 da Academia Carioca das Letras e idealizadora da Academia Brasileira das Letras. A escritora viveu e criou sua extensa bibliografia entre os séculos 19 e 20, num mundo em profunda transformação. Temas que pautaram a discussão política e social naquele momento, como educação feminina, divórcio e abolição do regime escravocrata estavam presentes em suas obras.
Vale ressaltar que a intelectual atravessou também os principais movimentos literários brasileiros como o Romantismo, Realismo e Pré-Modernismo. Em especial “O Funil do Diabo” é escrito na migração para o Modernismo, e isso parece ter contribuído para acentuar algumas das características literárias da época, como o interesse pela psicologia e a crítica à elite burguesa.
No livro, Juliana, uma jovem-adulta casada e sem filhos, se vê diante de um mistério a princípio insolúvel: dos 12 rolos de Libras (moedas inglesas) que sua mãe pediu para ela guardar no cofre, seis desaparecem sem deixar vestígios. A personagem mantém o fato em segredo e tenta descobrir o autor do crime. O marido, a mãe, o padrasto, os sobrinhos e a prima-empregada da protagonista são envolvidos na trama. A história se passa em um bairro afastado do município do Rio de Janeiro, longe da movimentação do centro urbano, na década de 1930.
Um dos méritos da obra é colocar a suspeita do furto ora em um, ora em outra personagem. Dessa forma o leitor acompanha, pelo olhar da protagonista, a caracterização e ambições de cada um ali. Juliana, e posteriormente a mãe, vão pouco a pouco duvidando das próprias certezas nessa busca pelo ladrão. Assim como nos thrillers de suspense que inevitavelmente apontam ao final para alguém que estava no rol de personagens centrais, aqui, somos levados a crer que um familiar é o responsável pelo delito, ainda assim, o desfecho da história tende a deixar atônitos não só a jovem vítima da ação criminosa mas também o leitor.
A importância do resgate e lançamento da obra agora, 90 anos depois de ter sido veiculada em jornal, é tanto conduzir o público a essa volta no tempo para os arranjos sociais e modos de vida daquele período do país, quanto apresentar a engenhosidade e criatividade da escritora.
Nascida para a pena e o papel
Julia Lopes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro em 1862 e ainda pequena mudou-se com a família para Campinas (SP). Passou a infância e juventude na cidade paulista, depois retornou a então capital do país, sua cidade de nascença. Em 1887, aos 25 anos, casou-se com o poeta português Francisco Filinto de Almeida. Juntos tiveram seis filhos, dois deles falecidos ainda crianças. A escritora morreu em 1934, aos 71 anos, por complicações da malária.
Proveniente de uma família da elite com pai e mãe dedicados à literatura e canto, respectivamente, desde pequena Julia foi incentivada a ingressar no universo das artes. Aos 19 anos publicou seu primeiro texto, uma crítica, no Jornal Gazeta de Campinas, e a partir daí entregou-se ao ofício. Julia tem uma produção literária ampla que contempla crônicas, contos, peças teatrais, novelas e romances. A composição literária que inicia essa jornada pode ser lida ao final do “O Funil do Diabo”, como anexo do livro.
Mais dois textos compõem esse epílogo e são assinados pelos filhos da escritora. O primeiro é um trecho do discurso de posse de Afonso Lopes de Almeida na Academia Carioca de Letras em 1939, na qual Julia foi homenageada sendo patrona da cadeira 26, ocupada por seu filho. Na fala, Afonso elenca, em ordem de publicação, as obras da mãe e as descreve evidenciando a inventividade e talento da autora carioca.
O outro texto, escrito por Margarida Lopes de Almeida em 1962, revela momentos significativos da vida e obra da autora. Ali estão as influências e inspirações, o encontro de almas e casamento com o poeta Filinto e a participação ativa de ambos na promoção da cultura. Eles, junto a outros intelectuais, foram os idealizadores da Academia Brasileira de Letras, fundada em 1987. Inspirada na Academia Francesa, que não permitia mulheres em sua composição, só o marido recebeu uma cadeira como acadêmico. Ainda assim, a filha elenca os inúmeros reconhecimentos que Julia teve ainda em vida por sua bibliografia e relevância no cenário nacional.
Esses três textos a mais que fazem parte de “O Funil do Diabo” retratam o esmero e cuidado que a editora Janela Amarela tem com a obra da autora carioca. É a 14ª produção da escritora que a editora leva ao público. A novela foi encontrada no Jornal do Commercio depois de uma intensa busca. O processo de revisão e atualização textual contribuem para aproximar o leitor da obra. O empenho demonstra, acima de tudo, o reconhecimento da produção assinada por mulheres como parte fundamental da diversidade e riqueza da literatura brasileira.
“Estava certa: se confessasse ao marido as suas desconfianças ele as rebateria com veemência ou com uma gargalhada. Seria até capaz de as comunicar ao padrasto… e ela ficaria na humilhante situação de uma doente…Estaria louca realmente? Por que torturar sua pobre cabeça com pensamentos tão confusos?…Confusos…sim…mas que não tinham germinado de pura fantasia, mas de alguma coisas igualmente imponderável, mas de uma realidade tremenda. As suas percepções vagas e indecisas começavam agora a ter um ponto de apoio. A ameaça de um perigo ignoto, que pressentia de longe, tomava uma forma positiva de perseguição. Quem poderia negar que ela tivesse sido roubada Quem poderia negar que esse roubo não tinha sido cometido por dinheiro, mas como um aviso de intuitos misteriosos?”
Trecho do Livro (pág. 30)
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