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O crítico e o diretor: os dois cinemas de Ozualdo Candeias

O início da carreira de Ozualdo Candeias, um dos mais importantes diretores do cinema brasileiro, deu-se de forma curiosa. No final dos anos 1940, trabalhando como caminhoneiro e viajando por todo o país, Candeias decidiu compra uma câmera com o objetivo de registrar discos-voadores.

Tal objetivo nunca foi alcançado, mas se iniciou aí uma carreira no cinema que muito tem relação com essa origem: o cinema de Candeias muitas vezes se propôs a mostrar o lado feio, sujo e pobre do país, aquele encontrado pelas suas andanças como caminhoneiro. Em entrevista, disse certa vez que fazia filmes que precisavam ser feitos: aqueles que mostram o Brasil e personagens que vivem às margens.

Foi considerado por muitos o mais marginal dos diretores e teve participação ativa nas produções da chamada Boca do Lixo, o principal centro de produção cinematográfica de São Paulo entre os anos 1960 e 1990. A Boca reunia produtores, atores, atrizes, diretores e técnicos e tinha como rua principal a Rua do Triunfo, no bairro Santa Ifigênia, e como ponto de encontro o Bar Soberano, onde muitos projetos foram concretizados e equipes formadas.

A importância de Candeias é tamanha, que muitos críticos o consideram o precursor do Cinema Marginal com seu filme A Margem, de 1967, obra que também seria responsável pelo nome do movimento.

O CINEMA POLÍTICO E SOCIAL DE CANDEIAS

Durante sua carreira no cinema, Candeias exerceu 14 funções diferentes. São elas: diretor, roteirista, produtor, ator, diretor de fotografia, cinegrafista, editor, diretor e gerente de produção, desenhista (de cenários e de roupas), diretor de segunda unidade, fotógrafo de cena e assistente de direção.

Considerando apenas as obras em que trabalhou como diretor/roteirista, temos 20 produções entre curtas, médias e longas metragens, tanto de ficção quanto de documentário. Dono de um cinema que ele mesmo chamou de “vanguardista”, as obras de Candeias se caracterizam pelo pouco uso de diálogos, poder de expressão do olhar das personagens, montagem fragmentada e poder dos enquadramentos.

Ozualdo rejeitava o epíteto de cineasta “intuitivo” e dizia que seu cinema era produto de muito estudo e dedicação, produto do uso de técnica, não de intuição. Por isso a valorização da montagem, da experimentação e do poder dramático dos enquadramentos e objetivas.

Assim como outros diretores da Boca do Lixo, alguns filmes de Candeias não chegaram a ter lançamento comercial (como o caso de As Bellas da Billings, 1987) sendo as exibições restritas a universidades, cineclubes e cinematecas. Mesmo assim, suas fitas ganharam alguns prêmios, como: Coruja de Ouro (direção, música e atriz coadjuvante – A Margem), Festival do Cinema Brasileiro de São Carlos (menção honrosa por Meu nome é Tonho), Air France e Governador do Estado de São Paulo (pela direção de A Herança), entre outros.

Em Candeias temos não só a importância da linguagem e técnica cinematográficas, mas também da temática de seus filmes. Em vários deles vemos histórias que discutem a violência, a prostituição, a pobreza, a presença do negro na sociedade, a desilusão, a burguesia, o caipira, a cidade, o sertão, o governo, o operário, o explorado, entre outras questões e personagens que compõem a realidade nacional, mas que são esquecidos ou não problematizados, são deixados à margem. Segundo o próprio Candeias:

“Reconheço que meus filmes não são bonitos nem engraçados e não me interessa fazer fitas que as pessoas vão ver pra rir, chorar ou levantar o pinto. Eu procuro outro tipo de reação em outro tipo de plateia” (REIS, 2010, p.78).

Filmografia

  • Tambaú, Cidade dos Milagres , P&B, 14 min (1955).
  • A Margem , P&B, 96 min (1967).
  • O Acordo, P&B, 42 min (1968).
  • Meu Nome é Tonho, P&B, 95 min (1969).
  • A Herança , P&B, 90 min (1971).
  • Uma Rua Chamada Triumpho, P&B, 11 min (1969/70) e P&B, 9 min (1970/71).
  • O Desconhecido, P&B, 50 min (1972).
  • Zézero , P&B, 31 min (1974).
  • Caçada Sangrenta, cor, 90 min (1974).
  • Candinho, P&B, 33 min (1976).
  • A Visita do Velho Senhor , P&B, 13 min (1976).
  • Boca do LixoCinema ou Festa na Boca, P&B, 35 min (1977).
  • História da Arte no Brasil , cor (1979).
  • Aopção ou As Rosas da Estrada, P&B, 87 min (1981).
  • Manelão, o Caçador de Orelhas, cor, 81 min (1982).
  • A Freira e a Tortura , cor, 85 min (1983).
  • As Belas da Billings , cor, 90 min (1987).
  • Senhor Pauer, cor, 15 min (1988).
  • Lady Vaselina, cor, 15 min (1990).
  • O Vigilante, cor, 77 min (1992).

A MARGEM (1967)

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Em depoimento para o jornalista Moura Reis, Ozualdo justifica a temática de A Margem: “resolvi então fazer um filme sobre uma realidade nossa, principalmente paulistana” (REIS, 2010, p.69). Com roteiro escrito a partir da observação das pessoas que passavam pela margem do rio Tietê em São Paulo e também a partir das notícias que lia nos jornais, Candeias criou uma história que pretende falar da realidade nacional, do lado “feio”, pobre, violento, recusando o cinema que se debruça sobre um Brasil rico, branco e de natureza exuberante.

Por isso uma protagonista negra, para falar “da presença e importância do negro na formação do Brasil” (REIS, 2010, p.71-72). Por isso um burguês desesperançoso que caminha pelas margens e aos poucos transforma seus belos trajes em farrapos. Por isso também um homem meio louco que se apaixona por uma vendedora de café. Por isso personagens marginais: para falar sobre um Brasil marginal.

O filme se inicia com a passagem de um barco pelo rio e nos mostra a reação das quatro personagens principais ao vê-lo. Nesses planos iniciais já temos contato com duas características que irão aparecer por todo o filme: as tomadas subjetivas e a falta de diálogo, dando grande importância às expressões das personagens.

A Margem apresenta uma narrativa fragmentada com planos que não mostram uma ligação lógica. As personagens andam a esmo, sem destino certo, pelas margens do rio Tietê. Nessas andanças, os espectadores se deparam com a miséria, a fome, a prostituição, a violência, a desigualdade e a loucura.

O fim inevitável é a morte, simbolizada no filme por uma mulher, “guia” daquele barco que vemos no início. Ainda que Candeias tenha negado a referência nas entrevistas que deu sobre a obra, impossível não associarmos a barca ao Mito de Caronte, o barqueiro do Hades, na mitologia grega, que transporta as almas dos recém-mortos.

Numa atmosfera realista (com toques surrealistas) o filme apresenta a morte como o momento de libertação no qual as personagens podem sorrir e correr livremente para um destino comum e, talvez, de esperança.

A obra, com um baixo orçamento, foi rodada toda em locações e se passa basicamente em dois ambientes: as margens do rio e algumas (poucas) cenas pelas ruas de São Paulo. A precariedade da produção acarreta em um momento cômico na obra, quando o louco e uma grávida brigam, o preenchimento da roupa desta, o qual fazia às vezes de barriga, cai no chão.

O crítico Jean-Claude Bernardet, ao comentar sobre a obra de Candeias, menciona que encontrou “dois cinemas” nesse diretor:

Um deles eram os filmes que ele fazia, com suas preocupações. Outro, eram os filmes que nós víamos. Esses dois cinemas ficavam superpostos, mas não se entrelaçavam necessariamente. Pouco nos importavam as recomendações morais (BERNARDET, 2002).

Seja pela temática de engajamento e denúncia social da obra, valores importantes para o diretor, ou pelas técnicas de filmagem e montagem, importantes para o crítico, a obra de Ozualdo Candeias é inegavelmente um marco no cinema nacional.

REFERÊNCIAS

BERNARDET, Jean-Claude. O filme de lugar nenhum. Folha de São Paulo: 2002. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2807200204.htm>. Acesso em 27/11/2015.

REIS, Moura. Ozualdo Candeias: pedras e sonhos no cineboca. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.

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