Dia nacional do livro
Colunas, Livros

Você sabia que o Dia Nacional do Livro é comemorado em 29 de outubro?

O que significa, para mim e para você, um livro? Hoje é Dia Nacional do Livro!

Em uma famosa conferência, o escritor argentino Jorge Luis Borges afirma o seguinte: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso, sem dúvida, é o livro”. Ao longo da mesma conferência, Borges justifica o seu assombro. O livro, segundo sua visão, é o resultado da memória e da imaginação humanas. O encontro do leitor com um livro, conclui, é uma forma de felicidade. Eu não poderia concordar mais com isso. Outro conhecido escritor, famoso pela criação de assombros e reinos fantásticos, é o britânico Neil Gaiman. Também em uma conferência, Gaiman reflete sobre o livro e o compara a um tubarão. Faz todo sentido. Ao longo das últimas décadas, vimos o nascimento, triunfo e decadência de uma série de mídias. O vinil, o CD, o VHS, a fita K7, o blu-ray, o MP3 (lembram do Napster e do Winamp?). Enquanto isso, como um ser pré-histórico, lento, eficaz e sobrevivente, o livro observava a tudo, recusando-se, como um tubarão pré-histórico, a ser extinto.

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Tive uma breve passagem na minha carreira como vendedor de livraria. Uma vez, em uma reunião com um dos meus chefes, ouvi dele que o negócio das livrarias não era vender livros, e sim “informação”. Sem dúvidas, um livro é composto por informação, que se materializa diante de nós na tela ou em uma folha de papel. No entanto, eu creio que o livro não continua a ser amado por todos nós porque ele é pura utilidade. Não. O livro é um convite ao afeto, porque encontrá-lo é o início de um relacionamento. Assim, todos que convivemos com os livros temos ao menos um com o qual, independentemente do seu conteúdo, criamos uma relação visceral, quase amorosa. Talvez seja o primeiro livro que ganhamos, talvez tenha sido a herança de alguém que partiu da existência e não está mais entre nós, talvez seja o livro daquela nossa escritora favorita… cultivamos, ao longo da vida, projetos, amores, amizades e, igualmente, livros.

A literatura adora os livros. Escritoras e escritores ao longo dos séculos nunca deixaram de tratar dos livros como um tema apaixonante. Às vezes, na literatura, os livros nos enlouquecem, ou nos libertam das amarras sociais; outras vezes, os livros são portadores de poderes mágicos e nos transportam para novos mundos, estranhos e desafiadores; os livros podem até ser nossos primeiros amantes, como no famoso conto “Felicidade clandestina”, de uma das minhas autoras favoritas, Clarice Lispector. De minha parte, sempre adorei as obras de ficção que falam sobre livros. É como se elas se tornassem parecidas com seus próprios leitores, em um jogo secreto de cumplicidade.

Falei de autoras e autores famosos. Falei de livros como espelhos de outros livros. Falei de tubarões. Mas o que significa o livro para cada um de nós, leitores e leitoras de “carne-e-osso”, pessoas à mercê do tempo e da história? Um ex-orientando meu uma vez me confidenciou que ele era a primeira pessoa da sua família a conseguir comprar um livro. Há alguns anos, em sala de aula, levei para uma turma de Letras alguns livros de contos de fadas bem bonitos, luxuosos, de capa dura e ilustrações coloridas, papel denso, macio e cheiroso. Parte da turma folheou os exemplares extasiada. Uma aluna, no entanto, teve uma reação que nunca esqueci. Ela se recusou a tocar os meus livros. Eles pareciam, para ela, um bicho esquisito, insólito. A aluna me disse, depois, que aqueles livros lhe aparentavam ser um escândalo de luxo e preços altos. Em um país em que, a cada ano, mais e mais livrarias fecham, bibliotecas públicas são largadas às traças e em que o desemprego, a crise econômica e a violência esmagam a vida de milhões de brasileiros, o livro soa como um luxo distante, ou imerecido.

Desta maneira, livros significam para nós formas, às vezes cruéis, de distinção ou de humilhação. Livros são nossos desejos e aspirações. Ou instrumentos – nesse sentido de nenhum modo diferentes de uma faca, de um algoritmo, de um motor de automóvel – para a resolução de um problema e a obtenção de um objetivo. Nós, pessoas que caminhamos entre os livros, os manchamos, os carregamos, os rasgamos, os riscamos, os trocamos, os vendemos, os doamos, os esquecemos. Em seu ensaio “Obsessão positiva”, a grande autora de ficção científica Octavia E. Butler conta que sua mãe tinha o costume de ler para ela histórias de ninar. Com o passar do tempo, a jovem Butler passou a se interessar cada vez mais por aquelas histórias, até que sua mãe um dia lhe disse: “- O livro está aqui. Agora, leia você”. Butler, então, comenta no ensaio: “Ela não sabia o que estava tramando para nós duas”.

A lição de Butler é preciosa porque ela contém, escondida, uma grande definição do que significa um livro e o ato da leitura. Os livros são objetos cheios de tramoias, não é mesmo? É que, enquanto os lemos, eles reescrevem a nós mesmos.

E viva o Dia Nacional do Livro! 🙂

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