“Um de raiva delira, outro enlouquece…
Outro, que de martírios embrutece,
chora e dança, ali.Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus…Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turbaDize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!”| Trecho de “Navio Negreiro – Castro Alves”
O moço do cartório perguntou: De onde? Papai não soube responder, na verdade ele não é daqueles que tem muitas respostas. Mais perguntas que respostas. Confuso sempre foi meu pai e continuará sendo, mesmo agora que está morto, bem mais que morto, mas seus questionamentos continuam. Certa vez estávamos sentados na varanda de casa, ele com sua cadeira de balanço, cigarro na mão e uísque esquentando em um banquinho, eu com um livro no colo, se lembro bem era uma das obras de Kafka, mamãe prestando atenção no vai e vem de carros lá longe e minha irmã com o celular sendo estuprado por dedos frenéticos, neste dia papai deixou todos nós sem saber como lidar, ele pousou o cigarro ao lado do copo e disse: E quando se morre, vai pra onde? Silêncio. Cada qual com sua percepção naquele lugar. Eu, com meus anos de catolicismo, respondi que quando se morre começa o julgamento, céu, inferno ou purgatório. Mamãe, recém-convertida ao protestantismo fez questão de criar confronto, de fazer birra frente a minha visão de pós-morte. Os dedos de Alice continuaram sobre a tela do celular. Eu acho, tentava começar meu pai. Eu acho. Ninguém deixava o homem falar. Mamãe dizia que eu estava enganado, que as coisas não são só assim, que tem mais página nesse livro. No fim de tudo acabamos por esquecer a morte e o que vem depois dela e entramos em discussão cheia de entremeios, minha mãe falava Lutero e eu citava o poderio da igreja. Papai continuou no uísque, por mais que mamãe usasse a bebida e o cigarro como exemplos de que seu marido não estaria salvo.
Eu acho
Conseguiu falar papai
Que quando se morre não tem porém, não tem mundo, nem luz. Acho que morre e pronto, se vai e acabou-se.
Hoje papai está morto e não sei bem o que fazer. Não tenho respostas para ele, nem para mim. O livro de Kafka daquela manhã se perdeu há muito, deve ter sido O Processo, sim, O Processo, presente de uma namorada. De Juliana, bons tempos, ah sim. Em que ouvíamos Elis como se fosse a primeira vez, juntos e felizes. Juliana se foi como papai, para mim morreu. Depois do que fez não quero ver nem um fio de cabelo de Juliana.
Mas à hora do enterro se aproxima e olho para esse cadáver que começa a feder. Enterrem logo esse homem, pelo amor de Deus. Quero ver a terra encobrir papai, ele sufocado em sua morte lá por baixo, preso em uma cela de madeira, preso em sua inutilidade. Quero ver como papai reagirá com tudo isso e muito mais. Sinto medo do que será de nós, mas tenho raiva imensa de papai que não deveria morrer, não agora que seu neto está por vir. O velho não sabia, nem eu, nem Bárbara. Fim de mundo é o que vem por ai. Mamãe chora no canto da sala, abraçada com Beatriz, a garota não demonstra nada. Morreu como o homem. Olho para a varanda onde tanto tempo gastamos, jogando conversa fora e falando sobre vida e depois dessa. Olho para a varanda e alguém se aproxima, não consigo ver bem quem seja, mas está usando terno, com flores na mão, algum amigo do velho. O sol se despede e fica nas costas do homem, seu rosto ainda está oculto pela distância, mas depois de alguns segundos vejo a barba que tanto conheço, seu sorriso amarelo por conta da nicotina e a cabeça cheia de perguntas. Papai fica defronte com seu sósia morto, deposita o buquê próximo ao caixão. Chega mais perto, senta ao meu lado e acende um cigarro.
Dia quente não é?
Concordo com a cabeça e espero sinceramente que ele se vá antes do enterro.