Resenhas

Resenha: A Instrução da Noite, Maurício de Almeida

É raro conseguir ler literatura brasileira no Brasil, principalmente a atual literatura. É difícil encontrar Brasil nos livros lançados nos últimos anos. Resultado de toda uma transformação do mercado literário, isso é óbvio, mas na contra-mão vem outro movimento, um vestígio de mudança, mostrando que ainda se escreve sim a literatura que de tanto sonharmos tornou-se utopia, é de uma coragem fora do normal a adotada por Maurício de Almeida em “A Instrução da Noite”. O leitor corre o risco de ser atingido a cada frase bem calculada, de se perder em tamanho labirinto lógico criado pelo autor, tudo isso para ao chegarmos no fim da obra nos sentirmos os mais enérgicos e culpados seres humanos. Existe uma troca intensa de esforços, entre o leitor e a história e isso é água no deserto que estabeleceu-se em nosso cenário.

“… na sua boca cabe um inferno inteiro.” – página 104

O livro retrata a volta de um pai e como a família reage frente ao acontecimento. Temos como guia a visão do filho, aquele que ficou com toda a carga da família como sua responsabilidade, que tomou conta da mãe e da irmã, Teresa, a qual este dita cada erro e acerto que transpassa em sua mente. Teresa se fora e assim um novo vazio criou-se no íntimo do homem, duas partidas, a da irmã e de seu pai, que fazem do personagem uma pintura meticulosamente planejada, que o coloca na posição de qualquer leitor, que o transforma em narrador e espectador, fazendo de nós, desavisados, vítimas dessa história que utiliza uma poesia impecável. Se perde o ar entre as páginas de “A Instrução da Noite”. O álcool e a nicotina são essenciais para o desenvolvimento da trama, estão lá, presentes como oxigênio e hidrogênio, causando as mais variadas reações. Os acontecimentos seguem uma linha não convencional, somos jogados para um lado, para outro e estamos felizes com isso, ficamos encantados com a forma com que o autor se apropria do tempo e espaço e nos deixa próximos até demais do personagem, nos colocando naquela situação e nos fazendo em alguns momentos julgar, em outros apenas ouvir e obedecer. O livro sacode o ingênuo leitor e o transforma em sentinela constante, dos atos e dos homens, é mar bravio entre barcos desnorteados e isso torna a obra algo breve mas impactante, pequena mas de uma imensidão literária que nos espanta, já que acostumados com a escrita padronizada, vemos tal regresso autoral e nos espantamos.

“… e aquele baque que deveria ser rápido e seco reverberou num longo impacto que denunciou o insensato de minhas expectativas e explicou ser assim que as coisas se resolvem: caindo.” – página 27

É um livro que vai até o mais profundo pensamento humano e revela o que nele existe, que não tem medo de se apossar de temas desconcertantes muito menos de invadir o inabitável do ser, é belo e massacrante e o modo como isso é posto por Maurício de Almeida transforma a história em um marco. A obra é dividida em três partes: Alcoólica, Baldio e Noturno. Entre essas vemos o talento do autor ao colocar tanto significado nos espaços, no que sobra para alguns, para a escrita de Almeida é lacuna necessária para se preencher. Nós sabemos que o livro é de uma singularidade sem tamanho ao notarmos, quase no meio deste, que entre um “tudo bem?” e um “sim, pai.” existem oceanos a serem explorados, e isso é feito com uma maestria dificilmente vista. O comando principal da obra consegue nos transportar para lugares nunca vistos, incrível e poética é a história retratada.

“… o fato de que fui vítima de uma esperança risível: acreditar que estava prestes a algo que jamais terei.” – página 23

A caracterização dos personagens ocorre de forma gradual, não encontramos aquela feição pré-estabelecida, jogada para o autor abarcar e só, nada disso, vemos personagens flutuando frente a visão do ledor e nós conseguimos captar a medida em que o livro transcorre características, vícios e desejos. Uma redoma se cria no enredo de “A Instrução da Noite”, cobertura de realidade e receio, de medo e bravura, de um misto de sentimentos que acaba por deixar o leitor embriagado, por tanta verdade exposta em um só lugar.

“… o tempo é hiperbólico no abandono.” – página 24

Os anseios humanos desfilam e castigam os personagens, os temores e tais vontades são combustíveis necessários para termos tamanha narrativa. Reafirmo, Maurício de Almeida nos presente-a com o novo calcado no passado, a forma de se fazer literatura inspirada nas Clarices e Buarques marca-ponto na forma como o livro foi estruturado e isso agrada qualquer admirador da arte crua e verdeira, sem os modismos impostos pela indústria ou seu modelo pré-fabricado, é uma obra isenta de medos, mesmo os tratando, não apresenta falhas evidentes, ao mesmo tempo que invado o íntimo do homem e o estraçalha. Impecável e brilhante, uma teia de histórias que ao se unirem transformam o livro em algo inesquecível.

 

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