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Crônica: Um estranho rapaz

Um primo meu, um distante, é escritor. Ele só vem aqui nas férias, nos fins de ano, vez ou outra. Chega e vai logo fazendo questão de não está aqui, sempre grudado a um caderno, geralmente eles são diferentes dependendo da época. Já vi de tudo, não sei porque ele ainda aparece, sai da sua toca, mas ele vem e trás presentes ainda mais, para mamãe, papai, vovó, para mim, um dos motivos para que eu não reclame de sua presença. Tenho raiva dele na maior parte do tempo, porra, não fala com ninguém, não escuta ninguém, para que ele serve então? Acho que é gay, provavelmente, não temos notícias de namoradas, é meio obvio, não? Se não tem namorada, tudo indica que tenha namorado, e se não tiver, bem, que merda. Tenho raiva dele porque não entendo a utilidade disso tudo, dessas noites sem dormir, dessas ligações que ele faz para conseguir apoio de editoras, para ver se alguém publica algo seu em um jornal, revista, bula de remédio.

Ocorreu que nesse final de semana, ele chegou. Dessa vez não trouxe caderninho, mas sim um notebook, o teclado manchado de refrigerante e algum doce que grudou ali e não saiu mais, a cara cansada, parece que morreu e não avisaram para ele  a hora do enterro. Um defunto desavisado, por ironia isso ocorrera em nossa família. Uma tia nossa morreu, até ai tudo bem, mas mandaram apenas o caixão. Ela era rica, tinha duas casas em Boa Viagem, uma em Cabo Branco e outras no interior de Pernambuco e da Paraíba, até apartamento em Salvador a mulher comprara, pois bem, assim que morreu fomos ler o seu testamento. Não deixava nada para seu ninguém, tudo seria doado, mas ela tinha um último pedido, um caixão de ouro. O infeliz já estava comprado, ela só queria que carregássemos. Lá foram todos os homens da família carregando aquilo às duas da tarde, era tão pesado que não notaram a ausência do corpo. Minha avó chorou por horas, minha mãe queria se jogar na cova. Dois dias depois alguém do necrotério liga para mamãe: “Esqueceram alguém aqui”. Titia faltou ao enterro.

Meu primo escritor chegou assim, andando porque era necessário. Estava perto de terminar seu segundo livro, ele dissera. O primeiro tinha sido publicado virtualmente, vendera poucas cópias e este foi obrigado a trabalhar em um bar. O que ele queria? Ficar rico vendendo livros? Pois bem, uma memória fraca ele tem, porque isso é Brasil, para se ficar rico é preciso diversos talentos, burlar as regras, ser a regra na mais verdade. Mas ele tem esperanças, quer ser o novo Assis, ou Amado, pra ele qualquer um serve, mas quer ser reconhecido. Está disposto a ficar semanas acordado, alternando entre banheiro e notebook. Emagreceu demais, por sinal, está parecendo que vai desaparecer, só não desapareceu ainda porque quem não ver aquela cara morta está cego por demais.

Vou passar o final de semana, titia. Ele disse. O infeliz vai ficar no meu quarto, se bem que quando ele cair na cama não levanta mais. No sábado almocei antes dele e voltei para meu quarto. Lá estava a criança ainda debruçado sobre o teclado. Vai comer, falei. Ele me olhou dos pés a cabeça e foi. O notebook ficou aberto sobre a cama e não consigo evitar a curiosidade. Não sou muito de ler romances como certas pessoas, mas folheio um vez ou outra. O título desse é “Navegar é preciso”, por Meu Primo. Leio o primeiro capítulo, ele ainda está almoçando. O segundo ,terceiro, quarto, lá se foram cinquenta páginas e estou boquiaberta em frente à tela. Para você que teve a sorte de não ler aquilo, vou contar o enredo. Um garoto se apaixona por uma garota, eles são primos. Eles transam. Ele mata a garota. Não sei se foi proposital mas a garota, a tal de Juliana, tem cabelos ruivos feito os meus, sua pele é igualzinha à minha, suas frases prontas, bem, criações patenteadas de minha pessoa. Meu primo voltou para o quarto.

Nervoso, vermelho, queria saber o que estava fazendo ali. Você leu meu livro, sua doente? Ele gritou. Olha quem fala, olha quem é o doente nisso tudo. Não li, respondi no mesmo tom, disse que estava vendo o facebook. Não sou boa em mentir, mas desgrudei do computador e pulei para o colchão estirado no chão. Anos depois ele publicou aquele livro, me mandou um exemplar autografado e tudo. Ninguém na família associou o quão real aquele livro era, o que tinha de verdade no plano de fundo, porque ninguém leu. Meu primo não vem aqui desde aquele final de semana, não sei o porque, mas acho que ele descobriu que eu tinha lido o início do livro, ou não sei, ele me mandou aquele negócio tempo depois. Mas foi divertido ver sua reação no domingo a noite, quando esperei todos irem dormir e começar a colocar em prática o que planejei. Vesti pouca coisa para dormir, entrei no quarto e ele me olhou. Voltou a focar no notebook. Cheguei perto dele, a atenção ainda era toda para o notebook. Empurrei a máquina para o lado e me agachei sobre ele. “Eu sou gay, pronto, é isso”, ele gritou. Veja bem, eu sei das coisas. Pensei que seu livro fosse retrato fiel das coisas, mas bem, uma vez  teria que errar para não parecer que a vida é algo controlável. Os anos passaram, o dinheiro foi se acumulando, meu primo virou aquela tia. Mas existe uma coisa no mundo chamada jornalista, e jornalista é ferrenho, não sei porque não me procuraram antes, mas um dia chegaram por aqui. Câmera, repórter e a pergunta que todos os leitores daquela criatura queriam fazer: Você é a prima do livro? Vocês tiveram um caso? Bem, não se deve mentirar na televisão, disse sorrindo para a câmera. Meu primo é gay, não tem prima alguma.

Mas meu primo era vergonhoso, era cheio de seus segredos. Contratara até uma mulher para fingir ser sua esposa em frente aos flashes que recebia todo santo dia. Fui invejosa sim, queria mostrar que ele era mentiroso sim. Uma pena isso ter custado as décadas que eu ainda poderia ter pela frente. Pois em um final de semana desses ele voltou para a casa de mamãe, eu também estava lá, ele veio com uma arma e brincou de ser realista. Fez de fantasia, retrato da verdade. Meu primo é dos bons, sabe como terminar uma boa história.

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